'Quais são as principais questões que devemos resolver no XVII Congresso?' (Gabriel Lazzari)
Haverá diversos debates que ainda não teremos condições de chegar a grandes conclusões em nosso XVII Congresso – e não devemos ver isso com maus olhos. Ao contrário, devemos trabalhar para desenvolver o Partido sobre bases teórico-políticas sólidas.
Por Gabriel Lazzari para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Nota introdutória
“Uma luta aberta e livre! As opiniões são ventiladas. Os matizes de opinião se revelam. Manifestam-se grupos. Levantam-se as mãos. Uma decisão é anotada. Deixa-se para trás uma etapa. Para a frente! – eis do que eu gosto. Isto é a vida. Não se trata de uma interminável e aborrecida discussão em que tudo são palavras de intelectuais e que se encerram não porque se tenham resolvido uma questão, mas simplesmente porque as pessoas cansaram de falar…” [Lênin, no Jornal Novos Rumos, nº 2, 1959]
Este ano, antes da crise que cindiu o PCB ao meio, um camarada me fez uma pergunta sobre minhas tribunas ao XVI Congresso Nacional do PCB. Ele disse que estava relendo todas e viu uma mudança de foco nos temas que eu busquei abordar entre as duas “fases” das tribunas. Para aqueles que não viveram esse processo e não tomaram nota posterior dele, o XVI Congresso teve suas tribunas “suspensas” (claro, sem qualquer justificativa) depois das etapas regionais, no começo da pandemia, só sendo retomadas mais de um ano depois, em agosto de 2021. Na primeira fase, me disse o camarada, eu escrevi principalmente sobre aspectos mais organizativos e pontuais (finanças, organização, publicações e trabalhos específicos em categorias específicas); na segunda, na reabertura das tribunas, eu teria escrito mais sobre os temas políticos, estratégicos, táticos, ideológicos.
Ele me perguntou por que eu havia feito isso. Eu não soube responder. Olhando em retrospectiva, o próprio processo da luta ideológica no PCB, com seus diversos descaminhos e contradições, havia mudado minha percepção do que estava em jogo naquele Congresso. Num primeiro momento, eu compreendia alguns temas estratégicos e táticos em questão, mas os julgava por absoluto consensuais (ou amplamente majoritários), e meu foco estava, digamos, em “ajustar o que falta”, “aparar as arestas”, “corrigir os desvios pontuais”. Com o avanço do governo Bolsonaro-Mourão (período em que as tribunas estiveram fechadas), ficava cada vez mais claro o objetivo da maioria do CC do PCB (o anterior ao Congresso): operar mudanças significativas de estratégia e táticas do Partido; flexibilizar balizas ideológicas fundamentais para a revolução socialista no Brasil; recuar no que o processo da Reconstrução Revolucionária havia dado como mais valioso – a autocrítica do Partido em relação a sua história e o apontamento de como retomar o rumo da revolução.
Me parece que ainda no esforço de nosso XVII Congresso, há camaradas que buscam dar “um passo atrás” nessa compreensão (a da determinação política de nossos temas organizativos), como é o caso, por exemplo, do texto do camarada Corsa, “XVII Congresso, para além da necessidade política”.
A tribuna que enviei, quase a título de “arquivo”, há algumas semanas tem como objetivo expor algumas das questões que julguei, à época, como centrais para a discussão do XVI Congresso. Era preciso diferenciar entre as mais diversas questões em jogo no Congresso quais questões eram principais, referenciadas nos princípios que devem guiar a prática comunista em nosso tempo histórico, e quais questões eram secundárias, conjunturais, de melhor aplicação deste ou daquele princípio, ou ainda de tática etc. Como podem ver na minha tribuna, havia grande confusão sobre esses aspectos.
Claro que esses aspectos são tão mais confusos quanto nós os confundimos. No XVI Congresso, diversas mudanças bruscas na política partidária foram propostas pelo CC do PCB: a mudança nas relações internacionais e o abandono do internacionalismo proletário, da construção do bloco revolucionário do MCI, por uma senil “disputa pela ONU”; o decreto (sem balanço, sem colocar os termos da discussão) sobre a “ultrapassagem” (!) da Reconstrução Revolucionária; o recuo nas formulações sobre o Poder Popular e a Ditadura do Proletariado, constantes do XV Congresso; entre outras. Em nenhum desses casos, houve qualquer apontamento da direção do Partido sobre quais seriam os temas mais importantes, em suas opiniões, para o nosso Congresso. Essa é uma das tarefas mais importantes de um Congresso – saber definir os seus temas centrais de discussão. E defini-los não significa selecionarmos arbitrariamente quais são os temas mais “em voga”, mas compreender, na própria realidade, quais são os pontos de choque mais agudos das lutas de classe, materialmente falando; quais são as mediações teóricas, as formulações, que decorrem das posições das diferentes classes na sociedade capitalista; qual é a posição que corresponde aos interesses objetivos do proletariado internacional no momento histórico que vivemos. Significa, portanto, sabermos estudar cientificamente nossa realidade para além de nossas impressões imediatas e construir compreensões da realidade mediadas pela teoria revolucionária, pelo marxismo-leninismo.
Em nossos documentos e discussões nas Tribunas, temos padecido de mal semelhante. Vemos uma disparidade grande na formulação de diversas tribunas (o que, me parece, é até natural, dadas as diferenciadas condições de acúmulo, experiência, estudo e mesmo tempo livre entre nós) – o que absolutamente não as desmerece, mas, ao contrário, nos permite enxergar as posições políticas entre nós e os pontos em que nós devemos nos corrigir como Partido. Ainda temos, por exemplo, um fenômeno de Tribunas “impressionistas”, que trazem apreensões mais imediatas, com menor aprofundamento teórico, com menos mediações entre os elementos apreendidos pela nossa experiência e seus desenvolvimentos teóricos posteriores; em suma, ainda há entre nós certo empirismo.
Não podemos nos dar a esse luxo, porque este Congresso é um congresso definidor de temas fundamentais para nossa ação. Na minha etapa de célula, tive essa discussão com um camarada. O camarada, que viveu junto comigo o processo do IX Congresso da UJC, questionou a necessidade de resoluções “declaratórias”, de estabelecermos “análises” como fundamentais ao nosso Congresso; ele veio à reunião disposto a revisar todos os documentos, limando deles o que há de analítico e reforçando o que há de diretamente prático (como era a proposta do IX Congresso da UJC). A posição do restante da célula foi contrária: este Congresso é um marco para nosso Partido, porque precisa retomar o rumo da Reconstrução Revolucionária, reafirmando as análises autocríticas que o PCB formulou sobre sua história e sobre o MCI e elaborando com rigor científico sobre os temas nos quais a conjuntura interna do Partido não nos permitiu avançar. Não há qualquer problema em delimitarmos com clareza as tarefas distintas entre distintos momentos de um Partido – ao contrário, teremos tanto mais confusão quanto menos nós discernirmos as tarefas de um Congresso Extraordinário de reorganização de um Partido daquelas de um próximo congresso, que poderá se deter sobre temas particulares para além das visões genéricas, com a condição de serem corretas, que possamos aprovar neste Congresso em curso.
Precisamos partir dessas nossas dificuldades para compreender exatamente como devemos construir a linha política do Partido no curso de sua ação. Haverá diversos debates que ainda não teremos condições de chegar a grandes conclusões em nosso XVII Congresso – e não devemos ver isso com maus olhos. Ao contrário, devemos trabalhar para desenvolver o Partido sobre bases teórico-políticas sólidas. E para fazê-lo, teremos que compreender quais questões são centrais e quais questões são secundárias em nossa formulação política. Essa necessidade decorre de alguns fatos.
Em primeiro lugar, porque, por mais que todos nós estejamos juntos no esforço de manter viva a Reconstrução Revolucionária do PCB (abandonada pelo CC do PCB), há temas de princípio que precisam estar claros entre nós, que precisam estar absolutamente nítidos e que necessariamente significarão rumos distintos para as pessoas que aderirem a uma ou outra posição. Precisamos superar a prática de buscar sempre “meios termos” nas posições políticas estratégicas; teremos que enfrentar algumas delas e vencê-las por meio de nossa democracia interna, em um processo que necessariamente significará novas forças para o Partido, mas também a saída de diversos militantes que, tendo se juntado à defesa da Reconstrução Revolucionária, não o fizeram pelos motivos políticos de princípio do marxismo-leninismo, que não o fizeram por sua adesão ao Manifesto em Defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB, mas por sua negação ao velho PCB. Apresento um exemplo concreto, que me parece não apenas ser parte de nosso processo no Brasil, mas um dos motivos de diversas cisões no Movimento Comunista Internacional: a questão do imperialismo hoje e o papel de disputa entre o bloco EUA-UE e o bloco China-Rússia.
Em vez de buscarmos encaixar essa questão como “mais uma” dentre nossos debates, devemos observar o quão estrategicamente diversas são as consequências da classe trabalhadora dentro de cada uma das posições divergentes (dentro das organizações ditas marxistas): é a escolha, no caso da guerra imperialista em curso na Ucrânia, entre apoiarmos o envio de trabalhadores para morrerem pelo Estado russo ou ucraniano, em uma disputa cuja solução será apenas o fortalecimento de um ou outro bloco em disputa; e apoiarmos a luta da classe trabalhadora em ambos países pelo desenvolvimento de sua própria consciência de classe e pela unidade de suas lutas, como frações nacionais do proletariado global, contra as alianças imperialistas internacionais em disputa. Questões como essa definem o vínculo de uma organização política com um ou outro Estado capitalista ou com os trabalhadores do mundo todo. Divergências nesse campo não devem ser secundarizadas, devem ser abertamente expostos os desvios ideológicos que nos levem a uma posição de colaboração com a burguesia nacional de seu país contra os trabalhadores do outro.
Em segundo lugar, no entanto, é igualmente necessário sabermos quais são as questões secundárias do nosso movimento, aquelas cujo caráter tático não representa uma vacilação estratégica, mas diferenças de aplicação de um mesmo rumo político. Ao mesmo tempo em que devemos enfatizar a todo o tempo a inconciliabilidade das divergências estratégicas, devemos demonstrar o caráter flexível daquilo que não são questões de princípio. O risco aqui é o de considerar como divergências fundamentais na nossa organização os temas (formas de participar das lutas, pontos particulares de nosso programa) que são possibilidades táticas – nas quais obviamente existem melhores e piores posições, mas cujos desdobramentos não são cruciais para o desenvolvimento do movimento revolucionário em nosso país.
Coloco aqui como exemplo algumas questões completamente secundárias de nossos atuais debates: as formas de eleição de delegados de nosso XVII Congresso (como a questão dos delegados natos) são formas de aplicar princípios eletivos diversificados, adequados ou não a cada momento de luta, e que se forem tratados como princípio farão com que nos confinemos às dinâmicas formais do desenvolvimento de nosso Partido em detrimento de seus princípios políticos e ideológicos. Isso é tão mais verdade se considerarmos que a forma eletiva que atualmente podemos aplicar, com a mais ampla democracia, deve-se também ao cenário de liberdades democráticas conquistadas pelos trabalhadores brasileiros no curso de suas lutas (sobretudo contra a ditadura). Mas se considerarmos isso um princípio da construção partidária, ou seja, um aspecto “atemporal” e que deve ser aplicado em todas as situações, isso só poderá ser uma fragilidade nossa se (ou, melhor dizendo, quando) vierem maiores restrições democráticas e um maior fechamento do regime. É assim que Lênin apresenta o problema da reorganização do Partido, por exemplo, sob as condições diferenciadas conquistadas pelo processo do Ensaio Geral revolucionário de 1905.
Encerro essa nota introdutória, assim, com o que eu acho que devam ser alertas importantes para o futuro do nosso Partido.
Em primeiro lugar, devemos nos atentar para o fato de que nem todas as questões serão resolvidas em nosso processo congressual e que devemos nos atentar às questões de princípio neste momento da Reconstrução Revolucionária do PCB. Muitas vezes, a compreensão científica, marxista-leninista das questões não será possível apenas com uma ampla participação dos militantes em nossa discussão, mas com o esforço concentrado e direcionado dos camaradas sobre questões particulares. Se neste XVII Congresso temos que estabelecer as bases comuns de nossas formulações, devemos também compreender nossos limites teóricos e práticos. Devemos combater a soberba em acreditar que resolveremos todos os assuntos – especialmente aqueles sobre os quais não há formulações bem estabelecidas no marxismo-leninismo.
Em segundo lugar, como forma de combater essa visão idealista da construção partidária, devemos abraçar de maneira inquestionável a teoria marxista-leninista. Se as cisões que hoje têm ocorrido no seio de diversos PCs e outras organizações políticas podem nos ensinar alguma coisa, é dos males do ecletismo teórico, dos males da transigência para com visões teóricas que não coadunem com o marxismo-leninismo. Apresentar isso dessa maneira não significa, claro, que devamos interpretar nossa realidade de maneira dogmática, mas sim de maneira ortodoxa. Fico sinceramente preocupado quando vejo alguns camaradas apresentando aportes de outras teorias, abertamente contrárias ao leninismo, como fontes de inspiração ou de respostas para as perguntas que nos colocaremos no processo de construção do Partido. Responder essas perguntas exigirá de nós, em diversos momentos, um esforço de formulação própria, o que corresponde a um esforço de pesquisa, discussão, elaboração, debates e, inclusive, posicionamentos diversos dentro do Partido. Só assim poderemos elaborar corretamente algumas das questões de formulação mais recentes dentro do MCI (como a questão LGBT, a questão ambiental, entre outras). Apenas através de um processo (que poderá ser longo e árduo) de reconstrução partidária cuja primeira fase será de esclarecimento de nossa linha política, de lapidação teórica e ideológica de nosso Partido (que, para todos os efeitos, é precisamente o processo que faltou à Reconstrução Revolucionária até o momento de nossa cisão), é que poderemos efetivamente funcionar como vanguarda da classe trabalhadora, como “consciência vinda de fora” do proletariado.
Não devemos ter qualquer medo desse processo de esclarecimento teórico e ideológico. E, por meio dele, veremos, por exemplo, que alguns camaradas que vieram conosco neste processo de cisão e que veem a necessidade de reconstruir revolucionariamente o PCB também têm divergências estratégicas profundas com uma visão marxista-leninista da luta de classes. E disso nosso Partido não precisa. Precisamos construir uma unidade ideológica superior à que havia no PCB antes da cisão, uma unidade ideológica que se aplique à nossa prática, ao nosso trabalho de inserção nas categorias de trabalhadores e que possa nos colocar à altura de sermos partido de vanguarda no processo revolucionário.
I
A situação global do proletariado
Não podemos compreender o desenvolvimento das lutas de classes hoje sem compreender, em uma análise mais “macro”, qual é a situação global do proletariado internacional no começo desse século XXI. Para isso, devemos observar que, desde o surgimento dessa classe (a classe dos assalariados despossuídos), nos primeiros passos do capitalismo, houve momentos de ascenso e de descenso, de revolução e contrarrevolução. Tomar em conta esse movimento do proletariado global (com as contradições internas desse mesmo movimento) é o que vai nos ajudar a sair da situação em que estamos.
Os primeiros grandes passos dados na consolidação do capitalismo representaram uma luta árdua entre a burguesia, o campesinato e o proletariado contra as classes feudais e aristocráticas. Claro que, em cada país e a seu modo, a predominância das formas feudais foi sendo substituída pelo desenvolvimento da propriedade privada dos meios de produção – e é também nesse momento que o capitalismo vai estendendo suas garras para a grande produção industrial, subsidiado pelo acúmulo de riquezas e recursos da pilhagem colonial e dos empreendimentos escravagistas. É o fluxo de riquezas acumuladas no tráfico de pessoas escravizadas no Atlântico que servirá de financiamento para a revolução industrial. Nesse momento, as classes do capitalismo emergem das classes feudais por causa das mudanças nas próprias relações de produção, processo progressivo que se acelera tanto mais quanto vai se tornando predominante o modo de produção capitalista. É durante o século XIX que vemos a predominância do capital na esfera da produção estabelecer-se na Europa, e, ato contínuo, em todo o mundo por meio das colônias – e também, nesse momento, que a burguesia passa de classe revolucionária, revolucionando as relações sociais feudais e impondo a sociedade capitalista, para classe reacionária. Muitos colocam o marco dessa viragem “final” (final em termos de proeminência no nível da totalidade, mas relativa se tomados particularmente os desenvolvimentos nacionais do capitalismo) em 1848, com a assim chamada “Primavera dos Povos” na Europa. A burguesia, na imensa maioria dos países, passa a se aliar (de diversas maneiras mais ou menos consensuais) às classes feudais para combater a nova classe social que passa a demandar sua própria revolução: o proletariado. Mesmo com a derrota dos movimentos de 1848 (ou, melhor dizendo, com sua canalização para um nível de barganha superior da burguesia para com a aristocracia), o movimento dos trabalhadores foi se desenvolvendo teoricamente nesse momento, com o surgimento do marxismo como teoria revolucionária em sistematização.
Esse marco de 1848 ganha sua importância relativa justamente a partir de seu “desdobramento” histórico, ou seja, a partir da primeira grande (em termos relativos) experiência de controle operário e “popular” da vida social – a Comuna de Paris. Nem 30 anos haviam se passado da última grande batalha – em nível internacional! – do proletariado, quando ele vê finalmente uma experiência de Estado proletário surgir de maneira revolucionária. A Comuna de Paris foi uma experiência singular que não se assemelhava a nenhum movimento anterior a ela. Enquanto no início do século XIX, as revoltas na América Latina, de libertação do jugo colonial, deram origem a novas classes dominantes; e enquanto o saldo das revolução de 1848 foi um passo em frente no estabelecimento do poder burguês em escala global, a Comuna foi a primeira experiência de uma ditadura do proletariado, ainda que com elementos completamente confusos (democratismo pequeno-burguês, elementos nacionalistas etc.): o poder de Estado já não emanava de uma autoridade burocrática, pretensamente acima das classes, mas impunha-se como força organizada dos trabalhadores.
Apesar de sua derrota sangrenta, os anos que seguiram a Comuna foram anos de desenvolvimento e ascenso do movimento de trabalhadores: foram organizados partidos operários em diversos países da Europa (e, dado o desenvolvimento do capitalismo cada vez maior, também fora dela); mesmo atacados de todos os lados pela burguesia e pela monarquia, unidas contra seu inimigo comum, esses partidos se desenvolveram e diferenciaram-se teoricamente com a divisão da Primeira Internacional entre o anarquismo e o socialismo, no processo de consolidação do próprio marxismo como teoria revolucionária do proletariado. A lição da Comuna foi apreendida entre aqueles que se reivindicavam, com cada vez mais amplitude, “marxistas” e “socialistas”, como a batalha pelo poder de Estado e o surgimento da Segunda Internacional, com forte influência do marxismo, principalmente por meio de Engels e do Partido Socialdemocrata da Alemanha (SPD). Já na virada para o século XX havia questões ideológicas em disputa no SPD, com as visões de Eduard Bernstein e Rosa Luxemburgo antagonizando em torno da estratégia revolucionária ou reformista para o socialismo.
O ponto de viragem nesse processo que vinha desde a Comuna de Paris foi justamente o irromper da Primeira Guerra Mundial. O movimento dos trabalhadores, apesar de suas contradições cada vez mais definidas entre revolucionários e reformistas no mundo todo, foi impactado como nenhum outro com o irrompimento da guerra. As linhas que pareciam poder “coexistir” dentro dos partidos operários mostraram finalmente sua inconciliabilidade frente à rendição de boa parte dos partidos a suas burguesias nacionais nos esforços de guerra, uma guerra claramente inclinada às disputas interimperialistas, de partilha do mundo e de um novo impulso colonialista.
Como todos sabemos, a culminância desse processo, nas fileiras do movimento dos trabalhadores, foi a degradação e, posteriormente, a cisão da Segunda Internacional em torno dos temas da guerra e da revolução. É nesse momento que, aproveitando-se das contradições interimperialistas e sabendo manejar com clareza a visão revolucionária e, principalmente, internacionalista, que o Partido Operário Social-Democrata Russo (bolcheviques) consegue levar à frente a palavra de ordem de “transformar a guerra imperialista em guerra civil” e tomar o poder em outubro de 1917. Se a Comuna de Paris havia sido um marco na história do movimento dos trabalhadores, a Revolução Socialista de Outubro na Rússia foi o momento mais importante na história da humanidade.
Não vale a pena mencionar aqui em detalhes o grau do impacto da Revolução Russa na classe trabalhadora internacional. O desenvolvimento da república soviética russa e, posteriormente, da própria União Soviética agiu como um catalisador de necessidades objetivas e subjetivas da classe trabalhadora em nível internacional, abrindo um novo ciclo e encerrando o ciclo pós-Comuna de Paris. Também dentro desse ciclo, nós podemos verificar momentos em que predominou o ascenso (1917-1923, indo desde a revolução bolchevique até a derrota da revolução alemã; 1945-1975/76, indo desde a vitória da Segunda Guerra Mundial e da Revolução Chinesa até as Revoluções Anticoloniais em África e a vitória e unificação do Vietnã, passando pelos fenômenos de 1968) ou o descenso (1923-1945, indo desde a derrota da revolução alemã, passando pelo surgimento e desenvolvimento do nazifascismo, até o fim da Guerra; 1975-1991, indo desde as ditaduras na América Latina, o arrefecimento das revoluções em África e estabelecimento de democracias burguesas na Espanha e em Portugal até o fim da União Soviética, passando pelo começo do assim-chamado “neoliberalismo” e pela consolidação do giro pró-mercado na China). Mesmo com essas variações, a existência da União Soviética, das Repúblicas Populares no Leste Europeu e outras experiências legatárias do ciclo de 1917 seguiam com Estados operários, em maior ou menor grau de avanço ao socialismo (e a maioria, já em grau de retração contrarrevolucionária). É a Contrarrevolução nos anos 1990 que inaugura o nosso período histórico.
Mesmo que pareça maçante essa retomada histórica, compreender o nosso período como um momento a mais na história do movimento proletário internacional nos ajuda a situar corretamente as perguntas que devemos nos colocar como movimento revolucionário no século XXI. Afinal, entre a derrota da Comuna e a Revolução Russa, temos 46 anos; entre a derrubada da União Soviética e hoje, temos 32 anos. É preciso considerar, assim, o século XXI (até o presente momento) sob um duplo olhar: vivemos, ao mesmo tempo, uma fase do capitalismo, o imperialismo, que é seu estágio superior, efetivamente sua última fase, ou seja, a fase da superação do capitalismo pelo socialismo-comunismo; e, dentro dessa fase, um momento contrarrevolucionário de longa duração.
Então, aqui, em primeiro lugar, é preciso enterrar de vez algumas ideias que ressoam no seio do movimento operário e que demonstram um grau de incorreção que peca pelo idealismo e pelo revolucionarismo, de um lado, e pelo revisionismo e reformismo de outro: a ideia de que houve um saldo positivo no fim da União Soviética. É evidente que, mesmo buscando acumular as autocríticas no seio do movimento comunista que veem, no quesito estratégico (e, assim, subjetivo), um ponto de viragem com as teses da Frente Popular em 1935, em que se “abriram as portas” para o abandono sucessivo das posições revolucionárias proletárias no movimento comunista (ainda permitindo graus variados de nacionalismo revolucionário) e da própria centralidade da hegemonia proletária como indispensável para a revolução, é uma mentira (e já era em 1991/92) que o fim da URSS trouxe qualquer benefício para o desenvolvimento do movimento revolucionário. Ao contrário, a queda da maioria das experiências do socialismo real trouxe um período de falta de referência histórica e política para a classe trabalhadora. Isso se dá por alguns motivos.
O primeiro deles, de ordem ideológica, é que não há uma correspondência direta entre as condições objetivas de luta dos trabalhadores (sua força militar e econômica) e as condições subjetivas da nossa classe (sua consciência, seu programa, seu Partido). Podemos demonstrar essas incongruências também analisando os períodos já mencionados. Os partidos operários da Europa cruzaram a fronteira final do oportunismo ao assinarem os créditos para a Primeira Guerra Mundial em 1914; mas já desde 1900 crescia a ala oportunista (bernsteiniana) no seio do movimento. Ou, ainda, foi justamente no período de consolidação teórica do marxismo (entre 1848 e 1895) que houve a repressão à Primavera dos Povos, o avanço imperialista sobre a China, a derrota da Comuna de Paris e as leis antissocialistas na Alemanha. Também podemos observar que é no período de maior avanço quantitativo dos movimentos revolucionários (proletários e nacionalistas), do pós Segunda Guerra Mundial, que temos os golpes finais contra o caráter especificamente proletário das experiências socialistas, e uma decadência ideológica do marxismo soviético, pós-Dimitrov e o VII Congresso do Comintern.
Esses exemplos nos ajudam a verificar, pela negativa, o grau contraditório de correspondência entre condições objetivas e subjetivas na luta dos trabalhadores pelo socialismo-comunismo. Então, em que pese a derrota da URSS ter também levado abaixo uma série de Partidos cujo marxismo já estava carcomido, a esse processo não correspondeu uma retomada do leninismo, do marxismo revolucionário. Ao contrário, o período subsequente foi um período de retrocesso ideológico incrível – marcado por um claro amoldamento do marxismo a pressões que não as de seus princípios filosóficos e teóricos. Os últimos 30 anos guardam a marca desse “fim da história”, de uma realidade cuja perspectiva de superação do capitalismo não está amplamente divulgada entre as massas trabalhadoras e todo tipo de vitória parcial está circunscrito à lógica da democracia liberal-burguesa.
O segundo motivo, de ordem objetiva, é que os países socialistas nos quais a contrarrevolução triunfou abriram as portas para um novo ciclo de acumulação de capital, por um lado, expondo amplas massas de trabalhadores à moenda humana que é o capitalismo, e, por outro lado, cortando os vínculos com os países socialistas ainda existentes (particularmente Cuba) e com os Partidos Comunistas existentes, enfraquecendo objetivamente o movimento revolucionário.
A consequência disso, nos anos subsequentes, foi um crescimento desenfreado do capitalismo e o surgimento e desenvolvimento de novas potências na virada para o século XXI, sem o “contrapeso” que o socialismo fazia nas reivindicações das demandas da classe trabalhadora no mundo todo. No interior do movimento internacional dos trabalhadores, tomado nesse nível, a alternativa revolucionária não aparece mais como uma força de massas, ainda que exista em potência (a potência do proletariado como sujeito revolucionário por suas condições objetivas de classe). O que vemos como “polarização”, mesmo na classe trabalhadora, é a divisão entre a ilusão em um capitalismo humanizado (social-democracia, social-liberalismo etc.) e a saída da extrema-direita (nacionalismo, ultraliberalismo, nazifascismo etc.). As particularidades do desenvolvimento desses movimentos em cada país vão desdobrando essas possibilidades conforme a história concreta de avanços e recuos do proletariado local. E, no entanto, a crença na invencibilidade do capitalismo (pela positiva, compreendendo isso diretamente, ou pela negativa, sem colocar a revolução como possibilidade) e no Estado burguês como superestrutura insuperável apresenta-se como uma das crenças mais paralisantes para a classe trabalhadora.
Dentro desse período contrarrevolucionário, há um novo capítulo da história traçado a partir da crise de 2008. Já se vão 16 anos desde que a quebra do mercado dos créditos subprime nos EUA, que gerou um efeito dominó na cadeia de reprodução do capital financeiro, primeiro nos próprios EUA, depois no resto do mundo. O efeito disso, no médio e longo prazo, foi uma queda das taxas de lucro globais da burguesia, que buscaram, cada uma a seu modo, formas de recuperar (mais rápido do que a concorrência) as taxas de lucro globais, criando uma nova onda de reestruturação produtiva – ou seja, de redistribuição de força de trabalho e de capitais, inclusive internacionalmente. A retração da taxa de lucro provocou, também, uma substituição relativa de capital variável por capital constante, aumentando o desemprego e criando, também, um excedente de força de trabalho (exército industrial de reserva) que não apenas precisava ser reincorporado (de preferência, em setores novos da produção e circulação de mercadorias), mas que gerava uma pressão sobre o proletariado em geral no sentido da redução de salários e direitos.
A expressão política desse processo foi uma necessidade de aprofundar com ainda mais velocidade e rigor as medidas de austeridade (cortes de orçamento dos serviços públicos, ataques a direitos trabalhistas, previdenciários e sociais etc.) em todo o mundo. Isso não foi, como apresentam os partidos da ordem, “uma escolha” de determinados políticos (nomeadamente aqueles vistos como de extrema-direita, ou os parlamentos cuja maioria é dos setores liberais). Foi uma necessidade objetiva da reprodução do capital nas condições de recuperação das taxas de lucros da burguesia, que por sua vez empurrou a burguesia a utilizar de seus elementos mais reacionários (e menos dispostos ao consenso social do que à coerção) para garantir essas medidas no plano legislativo, superestrutural, dos países.
Na escala internacional, essa longa duração da crise do capitalismo não apenas impactou “por igual” as diferentes burguesias, mas abriu um leque de possibilidades (e necessidades) de reposicionamento das alianças e conflitos entre si. Não é um acaso que os BRICS tenham surgido (ainda como “BRIC”) justamente em 2009 – o processo de avanço internacional da burguesia chinesa, cuja produção superaria o PIB japonês em 2010, começava a dar sinais de consolidação de uma força em disputa direta contra os EUA. Nesse momento, agudizam-se os processos de incursão militar dos EUA (Síria sendo o caso mais brutal, a partir de 2011) e, na sequência, pudemos ver o golpe na Ucrânia e a crise da Crimeia demonstrando que o eixo que vai, quase em linha reta, de Kiev, na Ucrânia, a Sanaã, no Iêmen é o espaço privilegiado da disputa global entre esses polos. É notável, ainda, o quanto nessas disputas, de uma maneira geral, os interesses diretos do proletariado ainda não apareceram como tal – na Ucrânia, há duas décadas a crise política se desenrola entre “apoio à União Europeia” vs. “apoio à Rússia”; na Turquia, situação semelhante, um cabo-de-guerra entre União Europeia e a ligação direta com o eixo Rússia-China; mesmo a situação no Oriente árabe e iraniano, se estendendo também talvez até o conflito Paquistão-Índia. A situação é bem diversa daquela experienciada na maior parte do século XX, em que os interesses geopolíticos apresentavam-se também como interesses econômicos de classe. Hoje, essas disputas entre os interesses nacionais (e aí entram todos os usos dos conflitos étnicos e religiosos como sustentação das classes dominantes locais) não são diretamente correspondentes às lutas de classes entre os trabalhadores e a burguesia em seus países.
Do lado do proletariado, até o presente momento, nenhum grande movimento organizado de massas foi capaz, em escalas nacionais, de virar completamente a correlação de forças nos seus países – seja avançando em uma contraofensiva, seja sequer barrando as principais medidas de ataque dos capitalistas. É verdade que diversos “ensaios” de uma movimentação mais aberta de luta de classes foram aparecendo espontaneamente durante as últimas décadas: a campanha anti-austeridade e as greves gerais na Grécia em 2010-2011; os movimentos “Occupy Wall Street”, logo em 2011; os protestos em torno parque Taksim Gezi na Turquia, em maio de 2013; as jornadas de junho de 2013, no Brasil; mais recentemente, os “coletes amarelos” na França e a revolta social no Chile; entre outros. Mesmo que esses movimentos tenham tido sua importância, na sua maioria compartilharam de um grande impulso inicial de massas, mas um fraco conteúdo propriamente proletário, revolucionário. Como Lênin apontava já em Que Fazer?,
[...] As greves após 1890 mostram-nos melhor os lampejos de consciência: formulam-se reivindicações precisas, procura-se prever o momento favorável, discutem-se certos casos e exemplos de outras localidades etc. Se os tumultos constituíam simplesmente a revolta dos oprimidos, as greves sistemáticas já eram o embrião mas, nada além do embrião - da luta de classe. Tomadas em si mesmas, essas greves constituíam uma luta sindical, mas não ainda social-democrata; marcavam o despertar do antagonismo entre operários e patrões; porém, os operários não tinham, e não podiam ter, consciência da oposição irredutível e de seus interesses com toda a ordem política e social existente, isto é, a consciência social-democrata. Nesse sentido, as greves após 1890, apesar do imenso progresso que representaram em relação aos "tumultos", continuavam a ser um movimento essencialmente espontâneo.
Os operários, já dissemos, não podiam ter ainda a consciência social-democrata. Esta só podia chegar até eles a partir de fora. [...]
Chegamos, assim, ao cerne do nosso problema partidário, camaradas. A questão que se coloca, uma vez mais e sempre, é a questão do trabalho revolucionário. O estado atual do Movimento Comunista Internacional, legatário de sua própria história, ajuda a explicar os limites da ação espontânea vivida hoje pelo proletariado global, no sentido de que, sem uma consciência revolucionária, nossa classe não conseguirá atingir seus interesses objetivos históricos – a espontaneidade cria ondas e ondas de movimentações (ora vitoriosas, ora derrotadas em suas demandas), mas falha em criar um saldo político positivo de longa duração que possa fazer do proletariado a classe dominante.
A situação do Movimento Comunista Internacional
Meu objetivo aqui não é fazer um extenso repositório das expressões do Movimento Comunista Internacional, mas compreender suas principais linhas de força. Quando falamos do MCI, em primeiro lugar, é preciso reconhecer sua atual fragmentação. Não podemos interpretar o MCI hoje da mesma forma como ele existia nos anos 1920, porque os acontecimentos do século XX marcaram de maneira irreversível as facetas ideológicas e organizativas dos comunistas, falando em sentido amplo. O movimento comunista passou a existir como tal apenas a partir da Revolução Russa, com a ruptura daquilo que era, até então, o “movimento social-democrata”, compreendido como o movimento internacional organizado da classe proletária. Ainda que houvesse inúmeras divergências no seio do movimento social-democrata, sua cisão entre comunistas, de um lado, e os que se mantiveram como “socialistas” ou “social-democratas” de outro, foi um fato histórico – baseado na divergência da reforma vs. revolução como estratégia política de ação do proletariado.
Essa divergência fundamental não foi a única existente à época: o rompimento entre otzovitas e bolcheviques, dentre os revolucionários, já se demarcou antes mesmo da Revolução Russa. E depois da Revolução Russa, tivemos ainda outras cisões importantes de se demarcar entre os revolucionários – a primeira delas, entre o leninismo e o comunismo de esquerda/esquerdismo; posteriormente, entre o leninismo e o trotskismo; ainda depois, entre o marxismo da União Soviética e o maoísmo; ainda depois, entre o maoísmo e a linha albanesa; e entre o marxismo da União Soviética e o eurocomunismo, já nos capítulos finais da existência da própria URSS. Se avançarmos para uma caracterização ainda mais ampla, poderíamos citar o foquismo na América Latina, ou mesmo as divergências nas várias experiências da Quarta Internacional que levaram a subdivisões no trotskismo (mandelismo, morenismo, posadismo etc.).
Cito esses processos de cisão (e, por vezes, também de recomposição) porque eles expressaram organizativamente divergências teórico-políticas que existiram e sempre existirão no seio do movimento operário. É claro que algumas divergências teórico-políticas não se resolveram organizativamente. Basta ver a mudança de linha política da União Soviética, comparando, por exemplo, as posições em 1924 e as posições em 1943 – a mudança da linha estratégica do PCUS não foi acompanhada por uma mudança organizativa brusca; da mesma forma, podemos ver, no nosso próprio caso, que a manutenção da linha revolucionária produziu uma cisão no seio do PCB. Não existe correlação direta e inescapável desses processos e suas causas objetivas e subjetivas devem ser analisadas levando em consideração a dinâmica da situação global do proletariado.
Para efeito da minha análise, vou centrar minha avaliação no que se convencionou chamar de Movimento Comunista Internacional na nossa tradição política, ou seja, no conjunto dos PCs que consideram positivo, em geral, o legado da União Soviética e entendem o processo da contrarrevolução dos anos 1990 como uma grande derrota histórica para a classe trabalhadora. Poderia, é claro, fazer também uma extensa análise das divergências entre o marxismo-leninismo e as demais correntes que se organizam como correntes revolucionárias em nível internacional (como o maoísmo, o trotskismo, o comunismo de esquerda etc.). Esse seria, sem dúvida, um trabalho de fôlego, que deverá ser feito a contento por nosso Partido, mas não é meu objetivo aqui esmiuçar essas diferenças agora. Algumas delas, é claro, vão aparecer no desenvolvimento dos meus argumentos abaixo sobre nossos debates centrais e secundários; mas meu objetivo com a presente análise é apontar o estado do MCI hoje a partir da perspectiva do marxismo-leninismo e da negação ou confirmação de suas visões teóricas gerais – considerando também que as diferentes condições objetivas e subjetivas do proletariado nos diferentes países produzem tendências a algumas posições programáticas, ou táticas, ou organizativas, diversas entre Partidos que compartilham do mesmo fundamento teórico.
Assim, o que chamamos hoje de MCI é o resultado de processos de rearticulação dos comunistas a partir dos anos 1990. Podemos discutir sobre uma série de aproximações e afastamentos entre os PCs a partir dos anos 1990 e, ainda, sobre organizações que, ainda que tenham aglutinado PCs, não se propunham a reagrupar o MCI em si (como o Foro de São Paulo). Na prática, o MCI como o conhecemos voltar a se rearticular nos anos 1990 a partir da sequência de dois espaços de debate e coordenação internacionais que foram contemporâneos: o Seminário Comunista Internacional (SCI), de 1992 até 2014, e, depois, o Encontro Internacional dos Partidos Comunistas e Operários (EIPCO).
É no SCI, já em 1996, que se volta a discutir sobre a unificação do MCI a partir dos seguintes pontos de acordo entre os PCs: (1) era preciso se aferrar aos princípios do marxismo-leninismo; (2) era preciso unir esses PCs para uma contraofensiva contra o contexto da contrarrevolução global; (3) era preciso estabelecer uma negação clara ao revisionismo; (4) era possível superar as divisões entre os PCs que, durante o século XX, cada um por seus motivos, aproximaram-se mais de uma tendência “pró-soviética”, “pró-chinesa”, “pró-albanesa”, “pró-cubana” ou se mantiveram independentes dessas tendências; (5) a unidade deveria ser dada em torno do marxismo-leninismo e do internacionalismo proletário; e (6) era preciso lutar contra o divisionismo e manter a unidade do movimento. Podemos ver, no documento que encerrou o primeiro encontro do SCI, que havia ainda alguns temas cujas definições mais científicas e bem definidas não estavam dadas. Entre esses temas estava o balanço histórico das contribuições de Mao ao MCI, por exemplo; o documento não aponta seu balanço, mas uma tarefa de estudar corretamente os desenvolvimentos dessa contribuição política. Também o apelo contra o divisionismo busca espelhar o drama de os PCs terem ficado quatro décadas sem nenhum espaço integrado de articulação e coordenação, desde a dissolução do Cominform em 1956 (apesar de haver diversos espaços que articulavam também os PCs, como a FMJD, a FDIM, a FSM etc.), para além dos Encontros Internacionais de 1957, 1960 e 1969 e das Conferências de 1960 e 1976 (essa, exclusivamente de PCs da Europa). O SCI durou até 2014, em seu último seminário.
Alguns anos depois do surgimento do SCI, foi organizado como espaço regular o Encontro Internacional dos Partidos Comunistas e Operários (EIPCO), por iniciativa do Partido Comunista da Grécia, o KKE. Fazendo o convite em 1998 e consolidando a primeira reunião em Atenas em 1999, o EIPCO foi crescendo e aglutinando os partidos comunistas, em um sentido muito similar ao do SCI – com algumas diferenças, dado o fato de que já em 1994 é fundada a CIPOML e os setores mais próximos ao maoísmo e ao hoxhaismo buscam uma conformação própria nela. Tendo desenvolvido 23 reuniões ordinárias desde sua fundação (considerando uma teleconferência em 2021, por causa da pandemia, e desconsiderando a reunião extraordinária de 2009 em Damasco), o EIPCO se apresentou desde o princípio como um espaço de trocas e contatos entre os PCs em um momento de extrema fragilidade do movimento comunista. Havia, como há hoje, desde o começo diferenças de linhas políticas bem demarcadas, principalmente polarizadas entre, de um lado, PCs como o PC Português e o PC da Federação Russa, e, de outro, o KKE e o PC da Turquia; ainda, participam o PC do Vietnã, o PC de Cuba, o Partido do Trabalho da Coreia, o Partido Popular Revolucionário do Laos e o PC da China.
Não é preciso enfatizar o quão importante é haver um organismo como o EIPCO para a articulação e coordenação do MCI. Um dos problemas mais pungentes da história do MCI é o fato de que, sobretudo após o XX Congresso do PCUS (mas com raízes anteriores), a perspectiva da construção de uma estratégia revolucionária global e unificada, partindo de uma visão de totalidade e do trabalho unificado dos partidos revolucionários – ou seja, um internacionalismo proletário como política que reflita um movimento comunista internacional de fato – foi sendo progressivamente substituída pelas “vias nacionais ao socialismo” (como no caso da Grã-Bretanha, do Chile e da China), vias que efetivamente levaram uma série de Partidos ao caminho do oportunismo. Os critérios de participação no EIPCO, mesmo com o conhecimento de uma série de Partidos ali sobre essa tarefa internacional, não refletem ainda o espírito de criar uma nova Internacional Comunista – e isso, de certa forma, responde a uma condição objetiva do MCI, que é sua fragilidade concreta como força propulsora da luta de classes nos mais diversos países, e uma condição subjetiva do proletariado global, que é o caráter apartado do marxismo revolucionário que permeia a maioria absoluta e inquestionável dos trabalhadores.
O EIPCO, durante sua existência, tem servido a objetivos de intercâmbio e socialização de opiniões entre o MCI – o que é pouco, perto da missão histórica dos comunistas. No entanto, tem servido também a uma outra necessidade histórica objetiva da classe trabalhadora: à necessidade de definir com maior clareza as diferenças estratégicas existentes no seio do MCI e criar intervenções junto a essas diferenças. Tomemos, por exemplo, o caso do Partido Comunista dos Trabalhadores da Rússia, o PCTR. O PCTR é um partido surgido da tentativa de reconstrução do PC na Rússia, considerando o alto nível de degeneração política e reformismo do PC da Federação Russa. Sua visada internacionalista, diversa da do PCFR, levou o Partido a conformar-se como seção russa de uma tentativa de refundação do próprio PCUS. O PCTR era grande combatente das linhas oportunistas no seio do MCI e se diferenciava gritantemente do PCFR justamente por esse motivo – enquanto o PCFR se aproximava de uma posição desenvolvimentista, inspirado no debate do PC da China, e apresentava-se em conciliação até com a Igreja Ortodoxa Russa, o PCTR combatia o caráter burguês do Estado russo e suas aspirações imperialistas. Mas foi só dar-se o início da guerra interimperialista na Ucrânia que o PCTR deu um giro à direita e passou a apoiar Putin e a burguesia russa em sua gana expansionista. A isso se seguiu um forte debate de artigos entre o KKE e o PCTR sobre a natureza do fascismo, do imperialismo, da guerra etc. – cujo resultado não foi a autocrítica do PCTR, mas uma recusa de sua própria juventude, a RKSM(b) (com quem a UJC mantém relações já há alguns anos) em seguir apoiando o PCTR. Sem esse nível de debate, sem esse processo de definição política que vem a partir da luta ideológica, não seria possível diferenciar as posições de “defesa nacional” (como o PCTR considera a guerra) das posições marxistas-leninistas sobre o atual conflito. O PCTR hoje participa da Plataforma Mundial Anti-Imperialista (PMAI), o que deixa bastante claro seu reposicionamento entre os campos do MCI.
Dessa maneira, podemos ver o papel que hoje cumprem as disputas dentro do EIPCO como espaço privilegiado de disputa ideológica no MCI – não apenas pelas plataformas comuns e acompanhamento de toda a militância comunista dos debates que ocorrem no EIPCO (e em seu portal, a Solidnet), mas também observando iniciativas advindas do EIPCO, como a Revista Comunista Internacional, que reúne o polo revolucionário do EIPCO nos seus esforços de propaganda e discussão ideológica; a Ação Comunista Europeia (e a dissolvida Iniciativa Comunista Europeia) como expressão dessa ala do MCI na Europa (inclusive com sua intervenção no Parlamento Europeu); também a PMAI, como representante de um espaço levado à cabo por elementos da ala direita do MCI, como reconhecido até pelo próprio PCB. Esse espaço, ainda incapaz de produzir uma unidade ideológica definida a tal ponto em termos de uma estratégia revolucionária comum e de balizadores teórico-políticos ortodoxamente marxistas-leninistas, é ainda assim o espaço de desenvolvimento das definições que serão necessárias para essa unidade, de desenvolvimento das linhas políticas contrapostas que permitirão chegar às novas referências na construção do MCI, como apontado pelo Secretário-Geral do TKP, camarada Kemal Okuyan.
O momento em que vive o proletariado global, portanto, é um momento de grandes derrotas e de avanços parciais, tímidos, e recuos significativos, sob a pressão brutal da burguesia internacional. Vivemos um período de reconstrução de nossas forças políticas – o que exige por sua vez uma atenção absolutamente central à nossa formulação teórica, programática, estratégica e tática. Eu entendo – e até certo ponto, concordo – com os camaradas que veem nessa fragilidade a velha questão da “falta de trabalho de base”; falta muito trabalho dos comunistas, em nível internacional, na conquista de novos momentos de direção do proletariado em luta, de direção nas lutas de classes. Esse trabalho é urgente e imprescindível. Mas ele será absolutamente ineficaz se não for acompanhado de um rigoroso e disciplinado processo de definição dos marcos teóricos do marxismo-leninismo. Isso é a reconstrução revolucionária do Partido Comunista em nosso país, como em vários[1].
Falar, portanto, na situação do proletariado global é falar em sua expressão subjetiva, falar no partido revolucionário do proletariado (em cada país, com suas particularidades, mas considerado a partir da dinâmica internacional das lutas de classes), falar da construção de um partido de novo tipo novamente. Só assim poderemos falar, concretamente, de sair de um momento de defensiva internacional do proletariado para um momento de contraofensiva.
Em suma, em poucas palavras, precisamos enxergar com clareza a tarefa histórica dos comunistas do mundo todo: encerrar o atual período de contrarrevolução global.
As tarefas dos revolucionários no século XXI
Falar, portanto, em encerrar o atual período de contrarrevolução global implica a construção de um Partido Comunista, de uma organização revolucionária do proletariado, com uma estratégia de tomada revolucionária do poder pelo proletariado, de instauração de sua ditadura e da construção do socialismo. É possível, claro, escrever livros e livros sobre cada um desses termos e o que isso implica na análise do “sociometabolismo do capital” – o que, ainda que importante, não é suficiente. Creio, inclusive, que as linhas mestras estão delineadas, no geral, na proposta constante do Caderno de Teses ao XVII Congresso, aprovado pela II Plenária Nacional do PCB-RR. No entanto, observo por alguns debates (em nossas Tribunas, também no debate congressual em minha célula) que ainda temos entre nós grandes dificuldades da delimitação ideológica que pode dar força ao nosso Partido.
Certamente, um processo como o nosso, de condensação de divergências ideológicas profundas no PCB, feita sem a devida discussão, de modo que não foi possível construir no dia-a-dia as definições de que precisávamos, gera muita confusão. Temos que encarar, portanto, as perguntas que o processo de Reconstrução Revolucionária nos apresenta, as perguntas que a própria dinâmica objetiva das lutas de classes coloca ao nosso Partido neste momento histórico – recusando inclusive criar perguntas e formulações de maneira diletante, respondendo a esta ou aquela moda teórica. Temos que analisar o nosso próprio processo também com o ferramental materialista histórico-dialético – percebendo as contradições que se desenvolvem na própria realidade e como devemos intervir junto a elas para produzir uma suprassunção dessas contradições, e não apenas uma negação, à Proudhon.
O processo de Reconstrução Revolucionária do PCB nos indica algumas possibilidades. Estou de pleno acordo com o camarada Gabriel Landi em sua análise sobre a Reconstrução Revolucionária do PCB, ainda que alguns detalhes dela tenham se alterado. Também acho de grande valia a análise das “quatro etapas” da Reconstrução Revolucionária do PCB, feita pela UJC do Rio Grande do Sul, em relação também tenho algumas divergências pontuais (principalmente sobre uma leitura pressuposta do que seria o proletariado, que abordarei mais à frente). Esses dois escritos nos ajudam a compreender de forma mais detalhada alguns balanços históricos da Reconstrução Revolucionária – pensada como tática de construção de um PC. E as táticas de construção de um PCB – assim como as tarefas que elas exigem – são o cerne desta discussão. Vários dos debates centrais para essas tarefas serão explicados com mais detalhe depois.
Em primeiro lugar, é preciso recuperar o balanço da estratégia democrático-nacional, à qual o Partido aderiu durante grande parte de sua história. Eu sugiro a todos os camaradas que ainda não leram que leiam os dois escritos do camarada Jones Manoel falando sobre os fundamentos da estratégia democrático-nacional e suas consequências na luta de classes no Brasil. Assim, a autocrítica dessa estratégia e a assunção da Estratégia Socialista é um marco inigualável na história do PCB e do movimento comunista brasileiro – e no entanto ela aparecia quase que de passagem em uma história anedótica que não considerava as linhas de força ideológicas que atravessavam o Partido de 1992 a 2005. Inúmeros problemas podem ser traçados até sua origem na estratégia de um Partido, mas o foco aqui é o fato de que a linha da Estratégia Socialista não era clara em seus elementos mais fundamentais. Podemos todos perceber isso ao analisar as vacilações do PCB, que não começam depois do XVI Congresso, mas remetem ao golpe de 2016. É justamente após o golpe que os princípios estratégicos começam a se flexibilizar em prol de uma maior aproximação com a social-democracia e o social-liberalismo. O erro de análise – ou, ainda, a falta de princípios na análise – levou uma parte significativa do Partido a abandonar uma ideia central quando falamos de estratégia: a estratégia de um Partido diz respeito às condições objetivas da formação social em que o Partido desenvolverá sua política, e não diz respeito às correlações de força das classes sociais em um dado momento. Isso pode parecer uma constatação óbvia, talvez até formulaica demais, mas é aí que mora o cerne das divergências que fizeram o atual CC do PCB cindir o Partido. O desenvolvimento de todas as táticas do PCB desde o impeachment de Dilma foi marcado pela confusão justamente em torno da correlação de forças na sociedade e, ainda, na correlação de forças entre os partidos políticos, isso é, entre as expressões políticas das classes em luta.
A segunda questão para resgatar é a questão da teoria. Não é preciso gastar saliva com citações sobre a teoria revolucionária e o movimento revolucionário, mas importa e muito voltarmos aos fundamentos marxistas-leninistas de nossa visão de mundo. Não existe instituição mais privilegiada na humanidade que um partido comunista para o desenvolvimento de uma teoria revolucionária e a ênfase em instituições externas ao Partido para esse trabalho, com destaque para a universidade, foi também um erro que cometemos no PCB. O Partido deve desenvolver-se teoricamente porque também isso é uma tarefa da revolução, inescapável das demais tarefas. Nesse sentido, é a ortodoxia do marxismo-leninismo que deve ser defendida a ferro e fogo. Os elementos gerais da nossa teoria já foram desenvolvidos e precisam ser retomados: o materialismo histórico-dialético; o caráter de classe do Estado; a teoria da “consciência vinda de fora”; o imperialismo como fase superior do capitalismo. Claro que a relação entre essas questões e a estratégia, mencionada antes, é íntima – essas são a base filosófica e econômica das conclusões a que chegamos ao determinar nossa estratégia. E, até mesmo por isso, são aquelas de menos imediata apreensão no dia a dia da militância. Apenas esse conhecimento filosófico pode dotar o conjunto da militância (e não apenas um punhado de dirigentes) de ferramentas de análise para fazer do centralismo democrático um método de trabalho efetivamente construtivo para nosso Partido. Sem compreendermos, por exemplo, que o socialismo-comunismo é uma suprassunção e não uma simples negação da sociedade capitalista, fica impossível entender como construir o programa do Partido sem que incorramos na defesa de elementos pré-capitalistas reacionários (como a defesa da pequena propriedade rural parcelária). A unidade ideológica a que almejamos não se construirá de forma mecânica, por meio de coações ou perseguições, e tampouco com transigência ideológica, com ecletismo, como no velho PCB. Ela será conquistada através do constante processo de crítica e autocrítica, de análise científica e de formação teórica das lutas de classe e do desenvolvimento da sociedade capitalista, aliada às conexões do Partido com o proletariado.
A terceira questão é justamente a questão das tarefas práticas, de inserção no proletariado. O PCB oscilou, já em sua Reconstrução Revolucionária, entre ser um partido voltado apenas para a promulgação de boas ideias, de “análises interessantes”, e se desenvolver como um partido efetivamente de conexões com a classe trabalhadora (os camaradas da UJC do RS identificam a virada da primeira para a segunda postura com a virada da segunda para a terceira etapa da Reconstrução Revolucionária). Sobre isso, eu sugiro sempre aos camaradas lerem o texto de Lênin em que define alguns aspectos centrais desse trabalho, levando em consideração o contexto distinto do czarismo na Rússia de então. Mas o central, em analisar as autocríticas que temos a fazer do processo de Reconstrução Revolucionária, remetem à falta de um jornal político para todo o país, focado na agitação política e econômica entre o proletariado; também à indisposição em desenvolver trabalhos nos setores estratégicos do proletariado, em que a dificuldade de agitação comunista é muito maior. Também aqui uma diferença importante deve ser guia de nosso desenvolvimento partidário: não devemos construir um Partido simplesmente a partir do ingresso de novos militantes, mas criar um verdadeiro partido de novo tipo, em que o caráter de militante revolucionário, de quadro, se sobreponha a qualquer outro. Não será com uma política espontaneísta e sem critérios que atingiremos o crescimento que nosso Partido precisa, mas com uma política firme de formação e ingresso em nossas fileiras que aponte para um Partido que verdadeiramente crie conexões com o proletariado e não que se contente em absorver quaisquer interessados, criando organismos frágeis e que podem a qualquer momento perder suas estruturas.
Dar consequência a essa quarta etapa da Reconstrução Revolucionária do PCB exige esse olhar autocrítico, o olhar de quem compreende que o movimento comunista no Brasil teve esse desenvolvimento histórico e que, como vários desenvolvimentos históricos, teve seus contratempos com o processo de cisão. Agora, no entanto, cabe aos continuadores dessa Reconstrução Revolucionária, nós, darmos consequência a esse processo em um patamar superior, superando nossas contradições ao analisarmos histórica e cientificamente a construção do Partido Comunista em nosso país.
Portanto, é assim que podemos apresentar as tarefas dos comunistas no século XXI, para dar conta de superar o período contrarrevolucionário: devemos construir um Partido ideologicamente unido e firme que crie as mais profundas conexões junto ao proletariado brasileiro, em particular, e internacional, em geral.
II
Como reconstruir a unidade ideológica dos comunistas no século XXI?
Essa tarefa primordial e inescapável, da construção de nossa unidade ideológica, possui dois elementos: o primeiro é o elemento propriamente teórico; o segundo, o prático. Isso significa que haverá, por um lado, formulações que devemos construir, análises e respostas aos movimentos objetivos e subjetivos do proletariado internacional e essas formulações deverão ser guia para a nossa atividade prática. Por outro lado, como já mencionei antes, significa que o trabalho de desenvolvimento ideológico de nosso Partido exige, por si próprio, um desenvolvimento de tarefas práticas, de conformação de nosso jornal, de materiais teóricos, de uma ampla e coordenada propaganda marxista-leninista, do destacamento de militantes para atuarem com pesquisa e com divulgação dos mais diversos temas. Explico nessa ordem a minha visão sobre esse assunto.
Dentre as questões políticas principais, de princípios, em matéria de análise, destaco alguns pontos que devem ser reafirmados pelo nosso Partido – mas, mais do que reafirmados, devem ser compreendidos à luz do desenvolvimento atual das lutas de classes e da economia política do imperialismo contemporâneo; não como decalque da experiência e da formulação teórica do século XX, mas como formulação criadora e cientificamente rigorosa sobre a luta de classes –, sendo eles: a questão do Estado no capitalismo; o papel do proletariado como classe do capitalismo e como classe revolucionária; o marxismo-leninismo como teoria revolucionária; a hegemonia do proletariado no processo revolucionário; o partido de novo tipo e a teoria do reflexo de Lênin.
O Estado burguês
Um dos pontos mais centrais da teoria marxista, que foi duramente vilipendiado inclusive por aqueles que se reivindicavam marxistas sem o ser, é sua visão sobre a teoria do Estado, recuperada e aprofundada em inúmeras reflexões de Lênin, já tendo o proletariado tomado o poder na Rússia. Isso se depreende facilmente por diversos escritos de diversos revolucionários, mas creio que pode ser sintetizado em algumas citações particulares. A primeira delas é a própria “conclusão” dos estudos de Marx sobre o desenvolvimento das sociedade, sobre o movimento que fez uma determinada forma social transformar-se em outra. O trecho do Prefácio a seu Para a Crítica da Economia Política, de 1859, é longo mas sempre útil:
O resultado geral que se me ofereceu e, uma vez ganho, serviu de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado assim sucintamente: na produção social da sua vida os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura económica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas da consciência social. O modo de produção da vida material é que condiciona o processo da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência. Numa certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é apenas uma expressão jurídica delas, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham até aí movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em grilhões das mesmas. Ocorre então uma época de revolução social. Com a transformação do fundamento econômico revoluciona-se, mais devagar ou mais depressa, toda a imensa superestrutura. Na consideração de tais revolucionamentos tem de se distinguir sempre entre o revolucionamento material nas condições económicas da produção, o qual é constatável rigorosamente como nas ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, ideológicas, em que os homens ganham consciência deste conflito e o resolvem. Do mesmo modo que não se julga o que um indivíduo é pelo que ele imagina de si próprio, tão-pouco se pode julgar uma tal época de revolucionamento a partir da sua consciência, mas se tem, isso sim, de explicar esta consciência a partir das contradições da vida material, do conflito existente entre forças produtivas e relações de produção sociais. Uma formação social nunca decai antes de estarem desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais é suficientemente ampla, e nunca surgem relações de produção novas e superiores antes de as condições materiais de existência das mesmas terem sido chocadas no seio da própria sociedade velha. Por isso a humanidade coloca sempre a si mesma apenas as tarefas que pode resolver, pois que, a uma consideração mais rigorosa, se achará sempre que a própria tarefa só aparece onde já existem, ou pelo menos estão no processo de se formar, as condições materiais da sua resolução.
Essa síntese de Marx exprime com tal clareza sua visão sobre o Estado que pode parecer até estranho a alguns empiriocríticos que afirmam não haver uma teoria do Estado em Marx. O que fica bastante claro é que Marx compreende o Estado como uma função necessária a uma determinada estrutura de relações sociais de produção com classes determinadas, em qualquer tempo histórico. O revisionismo teórico dessas posições foi rapidamente colocado como alternativa ao marxismo ortodoxo, como já mencionei, ainda no final do século XIX – o Estado não seria uma superestrutura de dominação das classes dominantes sobre as demais classes, mas uma “síntese” das lutas de classes. Também Engels apresenta clareza quando apresenta seu contraponto a essa visão idealista do Estado:
Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio dele, se converte também em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida. Assim, o Estado antigo foi, sobretudo, o Estado dos senhores de escravos para manter os escravos subjugados; o Estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza para manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes.
Sem partir do pressuposto de que o Estado seria um ente imparcial e neutro, Marx e Engels chegam à conclusão do condicionamento das formas superestruturais pelas estruturas econômicas, do fato de que as relações de produção de uma dada formação social no seu desenvolvimento histórico concreto produziram uma divisão social do trabalho, o aparecimento de classes possuidoras e despossuídas, e que o Estado surge como necessidade objetiva de ordenamento dos interesses das classes dominantes, não dos interesses “gerais” da sociedade. O desenvolvimento dos Estados-nação burgueses, no processo de consolidação do capitalismo, foi feito sob o manto dessa aparente neutralidade. Ainda Lênin, em seu Estado e Revolução, chocando-se contra os kautskistas, afirma:
As classes exploradoras precisam do domínio político no interesse da manutenção da exploração, isto é, no interesse egoísta de uma minoria insignificante contra a imensa maioria do povo. As classes exploradas precisam do domínio político no interesse da completa supressão de toda a exploração, isto é, no interesse da imensa maioria do povo contra a minoria insignificante dos escravistas contemporâneos, isto é, os latifundiários e os capitalistas.
Os democratas pequeno-burgueses, esses pretensos socialistas que substituíam a luta de classes pelos sonhos de entendimento das classes, concebiam a própria transformação socialista de um modo sonhador, não sob a forma do derrubamento do domínio da classe exploradora, mas sob a forma da submissão pacífica da minoria à maioria que ganhou consciência das suas tarefas. Esta Utopia pequeno-burguesa, indissoluvelmente ligada ao reconhecimento de um Estado colocado acima das classes, conduzia na prática à traição dos interesses das classes trabalhadoras, como o mostrou, por exemplo, a história das revoluções francesas de 1848 e 1871, como o mostrou a experiência da participação «socialista» nos ministérios burgueses em Inglaterra, em França, em Itália e em outros países no fim do século XIX e no princípio do século XX.
Aqui, chegamos também às deturpações do marxismo realizadas mais contemporaneamente. É de se destacar, dado o contexto brasileiro, o quanto alguns comentaristas distorceram a visão de Gramsci sobre o Estado, a partir de sua noção de “Estado ampliado” – e quão boa é essa distorção para retomar as velhas teses do Estado como produto da “conciliação de classes”, que reproduz “a correlação de forças das classes sociais em um dado momento”. Partir dessa posição, que pode ser verificada na leitura de Carlos Nelson Coutinho sobre Gramsci, por exemplo, é desconsiderar que o Estado é o produto do caráter inconciliável dos conflitos objetivos entre as classes sociais e que toda correlação de forças entre as classes deve ser colocada sempre no contexto da sociedade como um todo. Isso significa compreender que, mesmo quando vemos avanços e recuos do proletariado em sua luta no capitalismo, essas lutas ainda se dão no contexto de uma determinada estrutura de produção e de uma superestrutura jurídica (ou, ainda, um poder de Estado) do capitalismo. É a compreensão de que o Estado burguês é produto da contradição entre burguesia e proletariado, entre capital e trabalho, entre apropriação privada e produção social que direciona a estratégia revolucionária, de tomada do poder de Estado pelo proletariado; e a compreensão de que, mesmo nesse quadro, há momentos de variação da correlação de forças que devem ser aproveitados no desenvolvimento das condições subjetivas do proletariado para tomar o poder é o que direciona as táticas.
Vejamos o impacto que isso pode ter com o cristalino exemplo dado por Francisco Martins Rodrigues ao analisar a questão da tática e da estratégia comunista:
O oportunismo na táctica impunha o abandono da estratégia. E, no lugar onde antes estava a meta da conquista revolucionária do poder, surgiu uma espécie de semiestratégia, o governo de frente única proletária ou de frente popular, como “etapa intermédia” entre a ditadura fascista e a ditadura do proletariado. Este foi o embrião da teoria da “revolução democrático-popular”, lançada no ano seguinte por Dimitrov, a propósito da guerra de Espanha. Aos “apelos sem futuro a favor da ditadura do proletariado” iria suceder a luta “realista” pela semi-revolução operário-pequeno-burguesa.
[...]
Foi essa opção histórica que Dimitrov mais uma vez ocultou ao alegar que a luta pelos “direitos democráticos” não desviaria os operários da luta pela ditadura do proletariado. O caso é que não se tratava de uma luta independente pelos direitos democráticos dos trabalhadores, o que exigia a liquidação total e radical do fascismo, mas da luta pela democracia burguesa. Luta pela democracia burguesa que Dimitrov cobriu com as habituais flores revolucionárias: “Somos partidários irredutíveis da democracia soviética.” Mas hoje o problema é escolher entre democracia burguesa e fascismo, “porque não somos anarquistas”... Em França, “os comunistas, ainda que permanecendo inimigos irreconciliáveis de qualquer governo burguês e partidários do poder dos sovietes, estão prontos no entanto, em face do crescente perigo fascista, a apoiar um tal governo” (de Frente Popular).
“Inimigos irreconciliáveis”, mas, para já apoiantes... porque, pelos vistos, não havia outra alternativa para opor ao fascismo. Era isso que Dimitrov dizia expressamente ao PC Francês, numa carta do CEIC, de Junho do ano anterior, em que insistia na necessidade de uma “mudança de atitude para com a democracia burguesa”. Os comunistas deveriam deixar de declarar na sua imprensa ou nos seus discursos a sua oposição à democracia burguesa, “porquanto essas declarações são politicamente erróneas”. Deveriam lutar, não só contra a limitação ou abolição das liberdades democráticas, mas também pela sua “ampliação”.
Esta táctica de recuo para as trincheiras da democracia burguesa como única alternativa viável ao fascismo era, além do mais, contraditória com a afirmação feita no relatório de que o fascismo “destrói as ilusões democráticas e o prestígio da legalidade aos olhos das massas”, “provoca o ódio profundo e a indignação das massas, contribui para o desenvolvimento do espírito revolucionário no seu seio”.
Nossa análise do Estado (e, sobretudo, de seu caráter de classe) deve nos levar cada vez mais longe do oportunismo, cada vez mais diretamente ao leninismo, que compreende as variações nas correlações de força (avanço do proletariado e os direitos democráticos, ou avanço da burguesia e o recrudescimento fascista, para usar o exemplo de FMR) como centrais para as táticas, mas não para a estratégia de um Partido Comunista.
Ao mesmo tempo, devemos compreender com clareza o debate sobre a transição ao socialismo-comunismo. Não podemos nos refugiar nas infantis reaparições do anarquismo sob as formas da “abolição do Estado” como estratégia revolucionária, como coloca Engels:
O proletariado toma o poder de Estado e começa por transformar os meios de produção em propriedade do Estado. Mas, com isto, suprime-se a si próprio como proletariado, com isto suprime todas as diferenças de classes e antagonismos de classes, e com isto também o Estado como Estado. A sociedade anterior, que se movia em antagonismos de classes, precisava do Estado, isto é, de uma organização da respectiva classe exploradora para manutenção das suas condições exteriores de produção, nomeadamente, portanto, para a repressão violenta da classe explorada nas condições de opressão dadas pelo modo de produção vigente (escravidão, servidão feudal, trabalho assalariado). O Estado era o representante oficial de toda a sociedade, a súmula desta num corpo visível, mas era-o apenas na medida em que era o Estado daquela classe que representava ela própria, para o seu tempo, toda a sociedade: na Antiguidade o Estado dos cidadãos proprietários de escravos, na Idade Média da nobreza feudal, no nosso tempo da burguesia. Ao tornar-se, por fim, efectivamente, representante de toda a sociedade, a si próprio se torna supérfluo. Assim que deixa de haver uma classe social a manter na opressão, assim que são eliminados, a par do domínio de classe e da luta, fundada na anarquia da produção anteriormente existente, pela existência individual, também as colisões e excessos deles resultantes, já nada mais há a reprimir que torne necessária uma força especial para a repressão, um Estado. O primeiro acto em que o Estado surge realmente como representante de toda a sociedade - a tomada de posse dos meios de produção em nome da sociedade - é, ao mesmo tempo, o seu último acto autónomo como Estado. A intervenção de um poder de Estado em relações sociais torna-se supérflua num domínio após outro, adormecendo, então, por si próprio. Em lugar do governo sobre pessoas surge a administração de coisas e a direcção dos processos de produção. O Estado não é “abolido”, extingue-se. Portanto, por aqui se há-de aferir a frase sobre o “Estado livre do povo”, tanto no que toca à sua justificação temporária de agitação como no que toca à sua definitiva insuficiência científica; por aqui, igualmente, se há-de aferir a reivindicação dos chamados anarquistas, segundo a qual o Estado devia ser abolido de hoje para amanhã.
Em nosso tempo, penso que seja até compreensível, dadas as contrarrevoluções, que a alguns marxistas pareça que houve “pouco empenho” no desenvolvimento do socialismo para o comunismo e que deveriam os comunistas ter aberto rapidamente mão de seu Estado operário. Posição como essa desconsidera diretamente o fato de que, enquanto houver países capitalistas em que o proletariado ainda está sob jugo da burguesia, todo o socialismo está ameaçado e, portanto, ainda a ditadura do proletariado tem sentido de existir como forma de Estado. Tampouco devemos considerar que qualquer “Estado popular” deva ser reconhecido como socialista – os interesses objetivos do proletariado nacional e internacional são os critérios-chave para compreendermos esse processo.
O proletariado
A análise do Estado, ainda que suceda logicamente a compreensão sobre o proletariado e suas condições diversas como classe no capitalismo e como sujeito revolucionário, nos ajuda a limpar o terreno para compreender o próprio proletariado como classe do capitalismo e como sujeito da revolução.
A questão do sujeito da revolução hoje pode aparecer com uma menor importância, mas foi cerne de diversas disputas dentro do marxismo desde o século XIX. Desde as reflexões de Marx, Engels e Lênin sobre o campesinato, sobre a insurreição de Junho de 1848 na França e sobre a Comuna de Paris, vemos um esforço teórico de compreender cientificamente as classes sociais do capitalismo em desenvolvimento, como o surgimento, o parto de uma nova sociedade cujas relações de produção cada vez mais entravam em choque com as relações feudais que haviam dominado a Europa por cerca de um milênio. Mesmo no conjunto do que pode se considerar “marxismo” hoje, ainda há diversas confusões sobre o papel do proletariado – tanto como classe do capitalismo, quanto como sujeito revolucionário. Abundam “sociologismos” que tentam construir “recortes” os mais variados – a depender dos fundamentos moralistas-idealistas do autor da vez – para buscar demonstrar outras categorias sociais para substituir essa.
Uma das principais dificuldades que temos tido nesse processo de esclarecimento teórico em nosso Partido é justamente uma certa vagueza nas definições do proletariado. Temos aqui um caso clássico de confusão sobre as diversas camadas exploradas e oprimidas da sociedade – e, ainda por cima, uma superestimação dos aspectos de renda, dentro dessas camadas, como determinante de sua posição. Explico.
A posição do proletariado como classe na sociedade capitalista nada tem a ver com seu “nível” de exploração, mas com sua posição objetiva em relação à propriedade dos meios de produção. O proletariado se configura, assim, como a classe desprovida dos meios de produção e que vende sua força de trabalho para um capitalista ou para o Estado e compra seus meios de consumo para subsistência (entre eles, as mais variadas necessidades como comida, abrigo, vestimenta, mas também lazer, cultura etc.). Ao proletariado se opõe, como classe fundamental do capitalismo, a burguesia, detentora dos meios de produção e que compra a força de trabalho, elemento cuja função é “valorizar o valor”, ou seja, criar novo valor por meio da produção de mercadorias e vendê-las no mercado.
Podemos perceber, no entanto, que esse “esquema” simplificador não responde a todas as necessidade de análise das pessoas na sociedade. Entre as classes fundamentais na sociedade burguesa, existe uma miríade de outras formas de relação com os meios de produção que, embora não sejam predominantes, desenvolvem-se concretamente. E enfatizo o caráter de não-predominância dessas formas de produção justamente porque essas outras formas existem (ou ainda, “permanecem existindo”) apenas em relação à grande propriedade privada dos meios de produção.
Pode parecer simplório o seguinte exemplo, mas é válido para demonstrar essa relação: analisemos, portanto, a vida do pipoqueiro de porta de escola, ou de cinema. Em geral, seu carrinho de pipoca não constitui meio de produção alheio, pertencente a um outro capitalista, mas é uma propriedade sua, necessário para a produção da mercadoria que ele troca por dinheiro, que, por sua vez, é trocado pelos meios de subsistência (consumo) para si e pelos meios de produção (matéria-prima) para seu carrinho de pipoca. Aqui podemos ver claramente que o pipoqueiro não é um proletário, não é um vendedor de sua força de trabalho, aplicada em um meio de produção alheio a ele, mas um vendedor de mercadorias produzidas no seu próprio meio de produção. É, assim, um pequeno-burguês, na acepção marxista do termo (não moralista, mas científica).
Alguns camaradas podem se assombrar com essa constatação, mas ela é absolutamente inquestionável do ponto de vista de suas definições objetivas. Isso, no entanto, não invalida em absoluto o fato de que o pipoqueiro da porta da escola é, muito provavelmente, uma pessoa pobre, cujo meio de produção mal oferece sustento para si e sua família. É um pequeno-burguês empobrecido. Fazer essa constatação nos ajuda em dois aspectos: (1) primeiro, nos ajuda a tirar o véu do moralismo ao fazer a análise da fisionomia das classes sociais no Brasil, analisando a partir não do “sofrimento” de determinadas camadas sociais (ou seja, do pouco consumo de mercadorias), mas a partir de sua relação concreta com os meios de produção; e, ainda mais importante, (2) nos ajuda a romper definitivamente com a relação entre renda e classe social, uma relação construída quase que como um consenso tácito, mas que revela suas origens na sociologia, e não na crítica da Economia Política. Uma análise correlata poderia ser feita também sobre os setores ainda mais empobrecidos da população brasileira, como os desabrigados em situação de mendicância – em geral, compõem-se de uma mescla de setores do lumpemproletariado e do proletariado em situação de exército industrial de reserva.
O contrário também poderia ser dito sobre setores de alta remuneração dentro do proletariado; pensemos em um petroleiro, da Petrobrás, por exemplo. É inegável, ao analisarmos a situação objetiva da categoria dos petroleiros, que sua relação com os meios de produção é inteiramente proletária, configurando uma despossessão completa dos meios de produção. No entanto, o próprio nível salarial de um petroleiro – ou mesmo um professor, um bancário, um servidor público etc., que costumam ter salários acima da média – coloca cada petroleiro individualmente também em posições diferenciadas na medida em que seu salário lhe permite comprar um imóvel que será alugado, ou investir (moderadamente, em comparação com a burguesia) em ações etc., aproximando-o de camadas do rentismo, da pequena-burguesia. Isso significa que os petroleiros como categoria não devem ser considerados proletários? O marxismo nos ensina que são proletários, pela posição predominante de sua categoria nas relações sociais de produção como um assalariado.
Assim, a posição do proletariado, qualquer que seja sua renda, qualquer que seja o país inclusive!, é essa – a do assalariado que vende sua força de trabalho para adquirir os meios de consumo para sua vida cotidiana (quaisquer que sejam os meios e as condições). Poderíamos – como é do gosto do “sociologismo” – buscar construir outras formas de clivagem no seio do proletariado com categorias questionáveis – como a de “capital cultural”, “capital simbólico”, entre outras, mas isso não nos faria marxistas, nos faria, ao contrário, adeptos de um liberalismo filosófico atroz que inverte as determinações da consciência social e da produção social.
Uma vez que já entendemos o papel do proletariado na sociedade capitalista, é hora de passar ao papel do proletariado como sujeito revolucionário na sociedade capitalista. Aqui, novamente, há uma miríade de desvios teóricos, políticos, estratégicos e táticos que devemos combater, com o ferramental do marxismo-leninismo. A questão que se coloca aqui é um retorno para os fundamentos mais básicos do marxismo: o processo de superação do capitalismo e luta pela construção da sociedade comunista. Aproveito aqui para destacar um excelente debate travado em tribunas, iniciado pelo camarada Gabriel Xavier e continuado pelo camarada J. Carmack, sobre o tema da transição socialista. É um debate muito rico e de grande divergência na história do MCI, sobre o qual devemos estudar cientificamente. Mas o problema central da revolução, da superação do capitalismo e construção do comunismo, é, antes e mais abstratamente, uma questão das relações sociais de produção e das forças produtivas.
A importância de estabelecermos corretamente o que é o proletariado e seu lugar na sociedade capitalista aqui é refletida na pergunta sobre o caráter da revolução e o papel dessa classe. A contradição fundamental do capitalismo é a contradição entre a propriedade privada dos meios de produção (ou seja, o fato de que apenas uma minoria absoluta da sociedade possui meios de produção privados) e a socialização do trabalho. Se já era visível no início do capitalismo, com o surgimento da grande indústria, uma tendência à socialização do trabalho – ou seja, um caráter cada vez menos individual e mais coletivo do processo de produção –, o período do capitalismo-imperialismo, a era dos monopólios, eleva essa tendência à enésima potência. Não apenas a produção de mercadorias é socializada nos termos de uma fábrica, ou mesmo um setor da produção, mas agora é socializada em escala global. Uma mesma mercadoria pode passar por diversos países no seu processo de produção e milhares de trabalhadores estarem diretamente envolvidos em sua produção (para não falar dos que estão indiretamente envolvidos). O avanço das forças produtivas no último século, hoje contando com uma capacidade de divisão do trabalho imensa e de planejamento ainda maior, deu ainda mais base material para essa tendência. Voltando no Prefácio de Marx é que podemos ver como no capitalismo as forças produtivas (a capacidade técnica de socializar a produção a tal escala, mas também o desenvolvimento de métodos de divisão do trabalho) já estão em direta contradição com as relações sociais de produção (apropriação privada de riqueza via compra da força de trabalho), impedindo o desenvolvimento ulterior daquelas. É isso que explica como temos, ainda, com o atual nível de produtividade do trabalho, um imenso contingente de desempregados – não pela “maldade” dos capitalistas, mas pelas próprias relações sociais capitalistas.
Assim, a amarra que prende o desenvolvimento da humanidade, a propriedade privada dos meios de produção, não comporta em si outra solução que não a socialização dos meios de produção. Aqui é preciso fazer uma pequena digressão – existe, também nessa questão, uma solução reacionária e uma solução revolucionária para essa propriedade privada. Do ponto de vista dos pequenos proprietários, acossados e esmagados pelo grande capital, a solução óbvia é de maior repartição, de dissolução dos grandes monopólios (inclusive da terra), em prol da pequena propriedade novamente. Essa é a morada ideológica dos arautos do empreendedorismo, mas também dos que defendem a “economia solidária”, ou ainda a repartição parcelária da terra por meio da reforma agrária. Essa seria sem dúvida uma forma de “negar” a ampla concentração do capital e dos meios de produção, mas uma forma reacionária. A forma revolucionária de solução dessa contradição passa, portanto, pela socialização completa dos meios de produção. Gostaria que os camaradas parassem para pensar um pouco além do que isso implica de maneira mais superficial. A socialização dos meios de produção não é mera negação da propriedade privada, mas uma forma nova de propriedade dos meios de produção, uma forma social – ou seja, que se ampare sobre a própria socialização da produção. Ela conserva os meios de produção e mesmo a propriedade deles, mas supera seu caráter privado. Aqui mora o caráter revolucionário do proletariado como classe – no fato de que o proletariado é a única classe despossuída dos meios de produção e ao mesmo tempo é a que possui o trabalho mais socializado feito junto a eles.
Aqui não se trata, portanto, simplesmente da miséria, da pobreza, das más condições de trabalho e vida, mas da exploração objetiva – exploração que ocorre mesmo com proletários com melhores condições de vida (do centro do imperialismo em relação ao Brasil, por exemplo). Aferrar isso com o rigor teórico que isso nos exige é também um compromisso contra certas “flexibilidades teóricas” que vejo alguns camaradas tomando ao utilizar, por exemplo, a terminologia de “proletarizado” para debater alguns temas de nossas discussões do congresso. Se vamos falar de um processo de proletarização de algumas camadas sociais, como camponeses que se tornam assalariados rurais, ou autônomos que se proletarizaram nas últimas décadas (advogados, médicos, engenheiros, psicólogos), pode até ser um termo útil para demonstrar um processo histórico. Quando algum camarada utiliza como categoria a ideia de um “militante proletarizado”, ele fala sobre o quê? É um trabalhador, um assalariado? Se sim, então é simplesmente um militante proletário, alguém que não possui qualquer meio de produção e vende sua força de trabalho para se sustentar. Mas não me parece que esse termo esteja sendo utilizado dessa maneira – como um substituto de “proletário”, mas com um sentido diverso, a saber, o de trabalhador precarizado.
Vários foram os teóricos “marxistas” no último período que buscaram dividir os trabalhadores mais precários daqueles com melhores condições (em geral, conquistadas por meio de lutas intensas de classe). Alguns chegam a utilizar o conceito de “precariado” para desenvolver essa operação de abstração das relações sociais de assalariamento e recolocação das condições de renda como centrais para a compreensão das classes sociais (vemos isso quando os economistas burgueses insistem em falar em “classe A”, “classe B” etc.). Outros, ainda produzem maior distorção nessa visão, procurando na disparidade entre grau de educação formal e empregabilidade entre setores da classe trabalhadora a resposta para essa condição de “precariado”. Ainda há aqueles que, de maneira absolutamente impressionista, dirão que essa nova classe emerge do fim do fordismo e das estruturas sindicais que organizaram os trabalhadores durante o século XX (confundindo de maneira absurda as condições objetivas dos trabalhadores no capitalismo, estruturais, com as condições subjetivas de organização da nossa classe, conjunturais). Creio que devemos recusar essa terminologia pelo caráter idealista (quase no sentido do individualismo metodológico weberiano), em prol de uma compreensão científica que, inclusive, consiga explicar esses processos pelas características qualitativamente distintas entre eles, como, por exemplo, o desenvolvimento da aristocracia operária nas potências imperialistas e mesmo entre alguns setores dos países intermediários na cadeia imperialista.
Igualmente, temos que despir nossas análises de qualquer diferenciação fundamental entre o proletariado que trabalha com maiores proteções formais daquele que trabalha com menores proteções formais. Da mesma maneira como a renda, o que temos aqui é nada mais que conquistas da luta econômica (e mesmo política) pela “legalização da classe operária”, pelo enquadramento de suas parcelas mais organizadas sob algumas (instáveis) “garantias legais” de condições de trabalho e de salário. Para todos os efeitos, não havia qualquer “direito trabalhista” para o proletariado até os anos 1920 na imensa maioria do planeta e isso não deve ser um empecilho teórico (a diferenciação de determinados direitos trabalhistas) para compreendermos a relação dos trabalhadores com os meios de produção e o assalariamento como as categorias centrais para definirmos o proletariado. Destaco como contribuição importante a esse debate, mas insuficiente justamente na medida em que não discute diretamente a relação de entregadores e prostitutas com os meios de produção e com a burguesia, o texto da camarada Nina sobre o assunto. Algo semelhante pode ser visto no texto do camarada João Thiago sobre a luta dos povos indígenas: o texto acerta em abordarmos esse ponto, mas é frágil na discussão da economia política no que diz respeito à opressão étnico-racial e a demanda pela demarcação de terras.
Ainda sobre a análise da economia política do proletariado, enfoco o problema dos setores estratégicos. Para sermos consequentes e estabelecermos uma visão ortodoxa marxista-leninista sobre esse setores, precisamos compreender, em primeiro lugar, qual é seu lugar na produção capitalista contemporânea e concreta no Brasil, ou seja, como se dá a exploração de mais-valor naquela categoria e como isso impacta o conjunto da produção e reprodução do capitalismo no Brasil. Consegui verificar dois erros demarcados: o primeiro diz respeito ao trabalho de cuidado como setor estratégico; o segundo, ao trabalho da educação.
O texto do camarada Leonardo Vinhó é o que apresenta a problemática do trabalho de cuidado. O camarada comete um erro semelhante ao que apontei no texto da camarada Nina, que é não abordar a relação do assalariamento e da propriedade privada dos meios de produção na discussão sobre o trabalho reprodutivo. Sem apontar como se dá a relação do trabalho de cuidado (considerado aqui não o trabalho assalariado de cuidado, mas o trabalho não assalariado de cuidado – abordarei isso ao final), ele deixa de lado o fato de que o trabalho assalariado é a forma de relação social predominante no capitalismo, aquela que condiciona as demais, justamente pelo fato de que apenas no trabalho assalariado pode haver, pela venda da força de trabalho para produção de mercadorias, a extração de mais-valor. Concordo com o camarada quando ele aponta que devemos nos preocupar em uma perspectiva totalizante da produção e reprodução do capital e da força de trabalho como mercadoria, mas discordo quando ele entende esse momento como estratégico – a produção da mercadoria “força de trabalho” não se dá nas mesmas condições da produção das demais mercadorias quando falamos do trabalho de cuidado “doméstico”, realizado pelas mulheres. Quando o camarada parafraseia as teóricas da TRS, ele omite o fato de que o “impulso de autoconservação dos trabalhadores” não se dá nas mesmas condições de produção, de unidade produtiva e de transformação das demais mercadorias no capitalismo – justamente pelo fato de que não há produção de mais-valor e, nesse sentido, é trabalho improdutivo. A exceção óbvia a isso é quando estamos falando de trabalhos de cuidado realizados sob a forma do assalariamento (trabalhadoras terceirizadas da limpeza e cuidadores profissionais de idosos ligados a agências especializadas, por exemplo) – que, nesses casos, poderiam compor os setores estratégicos, como eu mesmo defendi na plenária municipal do Partido aqui em São Paulo.
A segunda questão envolve o trabalho de educação, abordada de forma direta pelas tribunas dos camaradas Malvólio e Pedro. Muitos dos mesmos critérios da análise anterior cabem aqui, como, por exemplo, o fato de que a imensa maioria da educação brasileira hoje é pública, em número de profissionais, de modo que não possuem um papel de produção de mais-valor, também são trabalhadores improdutivos. Aqui vale mencionar a confusão feita pelo camarada Malvólio em seu texto, quando fala de “trabalho imaterial”: o trabalho na educação pode ser considerado até certa medida imaterial (trata-se de um setor cuja transformação não é de matéria-prima, diretamente), mas, diferentemente dos setores de saúde (em certa medida; apesar de caminhar a passos acelerados para sua completa privatização por meio de OSs, uma parte significativa da saúde ainda é trabalho improdutivo) e de telemarketing, em sua totalidade, a educação pública é um setor de trabalho que não produz mercadorias para a venda, que não valoriza o valor, que não reproduz o ciclo do capital diretamente. Ninguém nega, é claro, a importância da educação ou seu impacto na produção e reprodução da força de trabalho. Mas devemos compreender cientificamente o que isso implica na economia política do setor educacional. Porque, afinal, é isso que implica na caracterização dos setores estratégicos – e também aí, por sua vez, é que está o erro do camarada Pedro. O camarada diz,
primeiro de tudo que os setores estratégicos detêm tal condição de acordo com a conjuntura e as táticas estabelecidas para um determinado momento, não sendo está uma definição separada do tempo e que por sua vez, não passível de revisão. Muito pelo contrário a escolha de setores estratégicos deve estar sempre subordinada aos caminhos táticos do momento.
Parece que há uma incompreensão da diferença entre estratégia e tática na compreensão do camarada Pedro. Quando o partido define os setores estratégicos, ele está compreendendo que existe uma determinada conformação do desenvolvimento capitalista no Brasil que, combinado com sua inserção na divisão internacional do trabalho, produz lugares destacados para determinados setores produtivos e não a outros. Quando o camarada pensa os setores estratégicos de acordo com a conjuntura, ele deriva o setor estratégico de um momento da luta de classes, passageiro e condicionado ele mesmo à estrutura do capitalismo brasileiro. O próprio uso do termo “escolha” para referir a como devemos compreender os setores estratégicos parece revelador dessa mesma confusão – não devemos “escolher” os setores estratégicos, mas compreender quais setores são esses no capitalismo brasileiro. Devemos descobrir os setores estratégicos a partir dessa análise, da economia política, e não da análise de um ou outro momento de luta. Os setores estratégicos do capitalismo mudam na mesma medida em que muda o substrato econômico do nosso capitalismo.
Por fim, abordo um debate aqui desenvolvido pela camarada Valen em sua tribuna sobre a juventude trabalhadora. Eu acho que aqui temos que também limpar terreno ao compreender as diferenças entre a juventude trabalhadora como setor do proletariado e o movimento organizado especificamente de juventude. Ao que me conste, a predominância dos movimentos propriamente compostos por jovens na história do nosso país (considerando o movimento de massas organizado) foram justamente os movimentos estudantis e constatar isso não me parece ser qualquer concessão ideológica à social-democracia; isso não significa, e nisso a camarada está absolutamente correta, que “os jovens no Brasil só estudam” – a própria história da UJC demonstra a organização de jovens operários em suas fileiras, mas que não estavam organizados no movimento de jovens trabalhadores e sim no movimento operário e sindical. Seria um grande erro de análise afirmar que “ser jovem é ser exclusivamente estudante”, mas devemos analisar de maneira mais profunda o problema central aqui: existe uma especificidade do jovem proletário que não seja também uma universalidade do proletariado como classe? Gostaria que a camarada esmiuçasse essa avaliação levando em consideração esse ponto, porque ainda não estou convencido dos argumentos dela.
Apenas compreendendo de maneira científica o que constitui o proletariado global hoje podemos compreender seus interesses objetivos de classe. Não podemos nos contentar com confundir todos os setores oprimidos e explorados dentro do sistema capitalista; é preciso diferenciá-los cientificamente e compreender as determinações concretas de sua exploração e opressão – e o que isso reflete nos métodos de luta e no programa proletário para esse setores.
A hegemonia do proletariado na revolução socialista
Se compreendemos até aqui que o proletariado é portanto o sujeito revolucionário no capitalismo, ou seja, a classe que pode promover a revolução social, devemos agora entender como isso pode acontecer. O ponto de partida dessa discussão é justamente a categoria de hegemonia do proletariado no processo revolucionário, isso é, o fato de que a revolução socialista será tão mais bem sucedida quanto o proletariado conseguir imprimir seus interesses objetivos ao conjunto da sociedade em uma crise revolucionária, com medidas coercitivas em relação à burguesia e medidas de convencimento em relação ao campesinato pobre e aos pequenos proprietários urbanos. Isso significa que é preciso, por um lado, que o proletariado desenvolva sua própria visão de classe, sua própria estratégia, seu próprio programa e suas táticas (ou seja, seus próprios interesses subjetivos) de acordo com seus interesses objetivos de classe, isso é, com as necessidades filosóficas, estratégicas, programáticas e táticas que o coloque como força propulsora de uma revolução de caráter proletário (medidas ligadas à tomada revolucionária do poder de Estado, socialização dos meios de produção etc.); e, por outro lado, que apresente o ponto de vista proletário para as demais classes sociais, com um caráter claramente combatente em relação à burguesia, ameaçando seu altar de adoração mais profundo, a propriedade privada, e com caráteres diferentes em relação aos pequenos proprietários urbanos e rurais.
Analisando historicamente, podemos ver como isso se desenvolveu no caso russo que, ainda que não seja típico (no sentido de que na Rússia czarista não era majoritário o assalariamento como relação de exploração do trabalho, mas ele era predominante como relação social dos setores avançados da economia e como tendência geral do desenvolvimento capitalista local – crescimento da indústria, diferenciação do campesinato etc.), é exemplar da necessidade de uma maior aliança do proletariado com outras classes intermediárias. O melhor exemplo aqui colocado é a questão agrária na revolução russa. Os bolcheviques haviam travado durante mais de uma década sua contenda, como parte da social-democracia russa, em torno da questão agrária, chegando à conclusão sobre sua necessária nacionalização como parte do programa revolucionário (proletário) para a revolução na Rússia. Mas o que fizeram os bolcheviques entre fevereiro e outubro de 1917 foi justamente abrir mão dessa posição programática por uma nacionalização sob controle local dos sovietes camponeses. Isso foi justamente um compromisso programático, uma aliança entre os camponeses pobres e o proletariado não no sentido reacionário de simples distribuição parcelária de terra como propriedade, mas no sentido de uma unidade entre as duas classes sob hegemonia proletária.
Claro que essa análise histórica a título de exemplo não resolve completamente o problema. Podemos ainda analisar toda a literatura de Lênin sobre alianças e unidades, assim como combates frontais, entre as classes sociais, e mesmo assim não seria possível esgotar o assunto. No entanto, fica claro quais são os parâmetros para o desenvolvimento dessa hegemonia dos trabalhadores sobre outras classes e contra outras classes – são parâmetros programáticos, no sentido das medidas a serem desenvolvidas pelo poder de Estado; e estratégicos, no sentido de vincularem-se diretamente ao desenvolvimento da tomada revolucionária do poder. Foi apenas no calor do combate e na necessidade objetiva de uma aliança operário-camponesa que havia a necessidade de um compromisso programático.
Ao mesmo tempo, devemos recusar a perspectiva “gradativista” da construção da hegemonia proletária sobre a sociedade, como um processo lento e gradual, de mudanças puramente quantitativas, de “acúmulo de forças” ininterrupto. A hegemonia proletária só se converte em força real (e não falatório) na medida em que o proletariado entra na cena política como uma classe independente e consciente de seus próprios interesses objetivos. E isso não é uma condição comum ou que possa ser “criada” pelo Partido, mas um processo que se desenvolve a partir de uma crise social e no qual o Partido deve intervir, como elemento com certo grau de exterioridade (na medida em que a consciência do Partido – suas formulações, sua estratégia, sua ideologia – não devem se confundir com a das massas) e certo grau de interioridade (na medida em que o Partido possui conexões desenvolvidas e experimentadas com o conjunto do proletariado, por seus militantes, por seu jornal, por sua reconhecida direção política).
A hegemonia do proletariado, assim, não é um processo que se atinge a partir do pertencimento de determinadas pessoas ao Partido ou cujas formulações individuais sejam mais consideradas do que outras. Diz respeito à capacidade que o Partido terá de expressar em suas linhas (sejam elas na agitação, na propaganda, no programa e também na organização) os interesses objetivos do proletariado internacional em sua luta pelo socialismo. E para expressá-los, também o Partido deverá compreender que não é a vivência ou a experiência pessoal dos militantes que poderá desenvolver essas linhas, mas o esforço coletivo de o Partido ser uma consciência vinda de fora, ser “a face visível da consciência de classe do proletariado”.
Falar, portanto, da construção da hegemonia do proletariado no curso da revolução socialista deve implicar na recusa das duas posições mecanicistas na análise: (1) a primeira, de que o Partido deve possuir uma relação de identidade com o proletariado – que é falso pelo papel de organizador do Partido, de consciência organizada e superior que ele deve desempenhar em relação ao conjunto do proletariado, para guiá-lo e fazer avançar seu papel de classe hegemônica; mas também (2) a segunda, de que o Partido deve possuir uma relação de separação da classe, ser um elemento absolutamente distinto e que se preocupa com as conexões com a classe a partir de um pedestal iluminado, a partir da lógica professoral – que é falso pelo motivo de que o proletariado, como classe, deve experimentar e aprender com as experiências de luta ainda antes do processo da tomada do Poder e que o Partido só poderá representar o momento consciente desse aprendizado se ele se dispuser a criar íntimas conexões cotidianas com o proletariado. Ou, ainda,:
[...] o pensamento leniniano da organização significa um rompimento com dois modos de fatalismo mecânico: tanto o que apreende a consciência de classe do proletariado como produto mecânico de sua situação de classe quanto o que vê na própria revolução apenas um efeito mecânico de forças econômicas que se movem de modo fatalista e – uma vez atingida a “maturidade” das condições objetivas da revolução – conduzem o proletariado à vitória, por assim dizer, automaticamente. Se tivéssemos de esperar até o proletariado ser trazido para a luta decisiva de modo unitário e inequívoco, jamais haveria uma situação revolucionária. Por um lado, sempre haverá – e cada vez mais, à medida do desenvolvimento do capitalismo – camadas proletárias que contemplam passivamente a luta de libertação de sua própria classe e, muitas vezes, passam para o campo inimigo. Por outro lado, no entanto, o comportamento do proletariado, sua disposição para a luta e o grau de sua consciência de classe não é em absoluto algo que brota com necessidade fatalista a partir da situação econômica.
É óbvio que nem mesmo o maior e melhor partido do mundo pode “fazer” uma revolução. Mas o modo como o proletariado reage a uma situação é algo que depende em grande parte da clareza e da energia que o partido é capaz de empregar na consecução de seus objetivos de classe. Desse modo, o velho problema – se a revolução pode ser “feita” ou não – ganha um significado inteiramente novo na época da atualidade da revolução. E com essa mudança de significado transforma-se também a relação entre partido e classe, o significado das questões organizacionais para o partido e para a totalidade do proletariado. Na base do antigo problema do “fazer” da revolução reside uma separação rígida, não dialética, entre a necessidade do curso histórico e a atividade do partido agente. Se o “fazer” da revolução significa sua criação mágica a partir do nada, isso tem de ser absolutamente negado. A atividade do partido na era da revolução significa algo fundamentalmente diferente. Se o caráter essencial da época é revolucionário, uma situação revolucionária aguda pode se apresentar a qualquer momento. O momento e as circunstâncias de seu surgimento dificilmente podem ser previstos com exatidão. Mas é possível prever tanto aquelas tendências que conduzem a ela quanto as linhas fundamentais da ação correta a ser implementada quando de seu surgimento. A atividade do partido funda-se nesse conhecimento histórico. O partido tem de preparar a revolução. Quer dizer, ele tem, por um lado, de procurar atuar (por meio da influência sobre a ação do proletariado e também das outras camadas exploradas) para a aceleração do processo de amadurecimento dessas tendências revolucionárias; por outro lado, no entanto, ele tem de preparar o proletariado ideológica, tática, material e organizacionalmente para a ação necessária na situação revolucionária aguda.
É dessa forma que Lukács apresenta o problema do proletariado e de sua relação com o partido (ou vice-versa): a partir dos princípios marxistas-leninistas, com base na conformação do partido de novo tipo como arma organizativa, como ferramenta para a conexão com o proletariado, para a preparação da revolução, para a direção da tomada do poder de Estado e para a construção do socialismo.
Ainda, é preciso mencionar que um dos grandes equívocos de boa parte dos PCs, sobretudo a partir do XX Congresso do PCUS, foi justamente a substituição em sua compreensão de Partido de um partido revolucionário do proletariado para um “Partido de todo o povo”, proposta defendida por Nikita Khruschev. Essa compreensão, cujas bases teóricas e estratégicas estão justamente na linha da Frente Popular, desenvolvida a fundo por Gueórgui Dimitróv, muda todos os parâmetros estratégicos com base na linha de uma colaboração de classes cujo cerne não está na hegemonia do proletariado como classe dominante, mas sua indiferenciação perante outras classes na sociedade capitalista (e mesmo durante o socialismo). Abandonar a necessidade de um partido diferenciado do proletariado revolucionário é, por consequência, abandonar a possibilidade de uma sociedade sem classes, da vitória final do socialismo-comunismo.
Isso nos leva a considerar também os desdobramentos organizativos dessa reflexão. Um partido do proletariado precisa combinar não apenas uma teoria revolucionária e uma estratégia revolucionária, mas uma forma de organização revolucionária correspondente. Essa é a reflexão que sustenta a visão do camarada J.V.O. e do camarada Machado sobre a organização por local de trabalho, da qual eu compartilho. Não concordo, por exemplo, quando o camarada Teylor coloca em sua tribuna sobre o assunto que a divergência colocada sobre essa questão é a separação entre “o mundo do trabalho - e alguns cortes por setores - como estratégicos, e os ‘movimentos de massa’ como secundários ou meramente táticos”. Inclusive essa separação não aparece em nenhuma parte do Caderno de Teses, porque certamente seria uma falsificação da realidade – o movimento do proletariado organizado tem um histórico de adquirir caráter de massas e isso é algo para o qual devemos concentrar nossas forças. O camarada também erra, a meu ver, quando elenca uma série de localidades e setores produtivos, dos elencados como estratégicos, e indaga como ficaríamos nós ao lidar com essas especificidades. Eu responderia que são setores estratégicos e temos que dar prioridade justamente a essas inserções, independentemente se elas estão nos tradicionais centros urbanos industriais ou não. Porque nosso critério, como partido do proletariado, não deve ser a localidade, mas o grau de proeminência e predominância objetivos do proletariado em setores da produção que são, eles também, objetivamente predominantes (e por isso estratégicos) na dinâmica do capitalismo brasileiro. Gostaria de deixar absolutamente explícito, camaradas, contra qualquer crítica indireta, que isso não significa necessariamente abandonar espaços, dissolver toda e qualquer célula por local de moradia ou de estudo. Tanto assim é que entre os critérios que o Caderno de Teses propõe estão, além do local de trabalho, os locais de moradia, de estudo e até as tarefas específicas como possíveis critérios para formação e organização de nossas células. Mas discordar da centralidade da organização propriamente proletária de nosso trabalho é também desprezar o caráter proletário que deve adquirir nosso Partido. E, para que fique infinitamente mais claro, é preciso, além de ler o bom texto do camarada J.V.O e o texto em que ele se baseia, do bolchevique Ôssip Piátniski, reler o bom e velho Lênin:
Nosso trabalho é primeira e principalmente dirigido aos trabalhadores urbanos fabris. A Social-democracia Russa não pode dissipar suas forças; ela precisa concentrar suas atividades no proletariado industrial, que é mais suscetível às ideias social-democratas, mais desenvolvido intelectual e politicamente e mais importante em virtude de sua quantidade e de sua concentração nos grandes centros políticos do país. A criação de uma organização revolucionária durável entre os trabalhadores urbanos fabris é portanto a primeira e mais urgente tarefa a confrontar a Social-democracia, uma tarefa da qual não seria sábio nós nos afastarmos no momento atual. Mas, mesmo reconhecendo a necessidade de concentrar nossas forças nos trabalhadores fabris e nos opondo à dissipação de nossas forças, nós não queremos de maneira alguma sugerir que a Social-democracia Russa ignore outras camadas do proletariado e da classe trabalhadora russos. Nada desse tipo. As próprias condições de vida dos trabalhadores fabris russos muitas vezes os levam a entrar em relações mais próximas com os artesãos, o proletariado industrial disperso fora das fábricas em cidades e vilas, e cujas condições são infinitamente piores. O trabalhador fabril russo também entre em contato direto com a população rural (muitas vezes a família do trabalhador fabril mora no interior) e, consequentemente, ele não pode senão ter um contato próximo com o proletariado rural, com os muitos milhões de trabalhadores rurais regulares e trabalhadores diaristas, e também com os camponeses arruinados que, enquanto se agarram a seus miseráveis pedaços de terra, precisam quitar suas dívidas e aceitar todo tipo de “trabalho casual”, ou seja, também são trabalhadores assalariados. Os Social-democratas Russos pensam que é inoportuno enviar suas forças para o meio dos artesãos e trabalhadores rurais, mas de forma alguma pretendem ignorá-los; eles tentaram iluminar os trabalhadores avançados também nas questões que afetam as vidas dos artesãos e dos trabalhadores rurais, de modo que quando aqueles trabalhadores entrarem em contato com as camadas mais atrasadas do proletariado, eles vão imbuí-los das ideias da luta de classes, do socialismo e das tarefas da democracia russa em geral e do proletariado russo em particular. É pouco prático enviar agitadores para o meio de artesãos e trabalhadores rurais quando há ainda tanto trabalho a ser feito entre os trabalhadores urbanos fabris, mas em muitos casos o trabalhador socialista entra, querendo ou não, em contato com essas pessoas e precisa saber tirar vantagem dessas oportunidades e entender as tarefas gerais da Social-democracia na Rússia. Dessa forma, aqueles que acusam os Social-democratas Russos de terem uma visão estreita, de tentarem focar nos trabalhadores fabris em detrimento da massa da população trabalhadora, estão profundamente equivocados. Ao contrário, a agitação entre os setores avançados do proletariado é o mais certeiro e único jeito de insurgir (quando da expansão do movimento) o proletariado russo inteiro. A disseminação do socialismo e da ideia da luta de classes entre os trabalhadores urbanos vai inevitavelmente fazer com que essas ideias circulem pelos canais menores e mais dispersos. Isso requer que essas ideias criem raízes profundas entre os elementos melhor preparados e se espalhem pela vanguarda do movimento da classe trabalhadora russa e da revolução russa. Mesmo concentrando todas as suas forças em atividades entre os trabalhadores fabris, a Social-democracia Russa está pronta para apoiar todos aqueles revolucionários russos que, na prática, baseiam suas atividades socialistas na luta de classe do proletariado; mas ela não esconde nem um pouco a questão de que nenhuma aliança prática com outros grupos de revolucionários pode, ou deve, levar a compromissos ou concessões em matéria de teoria, programa ou bandeira. Convencidos de que a doutrina do socialismo científico e a luta de classes é a única teoria revolucionária que pode hoje servir como bandeira do movimento revolucionário, os Social-democratas Russos se empenharão nos maiores esforços para espalhar essa doutrina, para resguardá-la ante qualquer falsa interpretação e para combater toda tentativa de impor doutrinas mais vagas no ainda jovem movimento da classe trabalhadora na Rússia. As razões teóricas provam e as atividades práticas dos Social-democratas mostram que todos os socialistas da Rússia deveriam se tornar Social-democratas.
O programa dos comunistas
Se tivermos bem estabelecidos os princípios ideológicos que devem basear nossa visão sobre a luta de classes contemporânea, o desenvolvimento do sistema capitalista-imperialista e a atualidade da revolução proletária no Brasil e no mundo, nos cabe como Partido elaborar nosso programa. Esse foi um dos esforços empreendidos por alguns camaradas, dentre os quais me incluo, como deliberação da I Plenária Nacional do PCB-RR. Infelizmente, tivemos pouco tempo e ainda nossos debates avançaram pouco em relação a algumas ideias gerais que podem ser expressas com três linhas de ação: a primeira, pela recuperação do leninismo também no sentido do programa partidário, de qual é a sua função e como ele se compõe; a segunda, pela autocrítica em relação ao famigerado “programa de lutas” do PCB, que nem funcionava como um programa e nem ia além, em boa parte das seções, de aglutinar longas explicações acadêmicas (pensemos na resolução sobre o perfil do proletariado do XVI Congresso); a terceira, também autocriticando os esforços de construção programáticos do IX Congresso da UJC, cujo programa é uma lista infinita de demandas gerais e particulares, misturada sem qualquer critério. Fazer essa análise a partir de exemplos (positivos e negativos) pode ajudar na construção efetiva do programa de um Partido marxista-leninista – mas o central é o desenvolvimento efetivo e positivado desse programa.
Recuperando os escritos de Lênin, podemos ver que há inúmeras versões de programa apresentadas, debatidas, reprovadas e emendadas por Lênin durante sua militância. O cerne de sua visão programática, no entanto, permanece como uma linha transversal nesses vários projetos, como ele explica no Projeto de programa de nosso partido:
Hoje o problema mais agudo de nosso movimento já não é o desenvolvimento do antigo e disperso trabalho “à maneira artesã”, mas sim a união, a organização. Para se dar esse passo é preciso um programa, que deve expressar nossos conceitos fundamentais, fixar com exatidão nossas tarefas políticas imediatas, assinalar as reivindicações mais próximas, que são as que devem determinar o conteúdo de nosso trabalho de agitação, dar-lhe unidade, torná- -la mais ampla e mais profunda e convertê-la, de agitação parcial e fragmentária em favor de pequenas reivindicações desligadas umas das outras, numa agitação pelo conjunto de todas as reivindicações social-democratas. Hoje em dia, quando a atividade social-democrata ativou um círculo bastante amplo de intelectuais socialistas e de operários conscientes, adquire um caráter imperioso a necessidade de fortalecer com um programa a união entre eles e de dar assim a todos uma sólida base que lhes permita desenvolver uma atividade mais ampla. Finalmente, outra razão pela qual a necessidade de um programa adquire um caráter imperioso é que, frequentemente, a opinião pública russa se engana profundamente no que diz respeito aos verdadeiros objetivos e modos de atuar dos social-democratas russos. Uma parte destes enganos surge de uma forma natural no pântano da estagnação política da vida de nosso país, e outra é engendrada artificialmente pelos inimigos da social-democracia. Em todo caso, trata-se de um fato que deve ser levado em conta. O movimento operário, fundindo-se com o socialismo e a luta política, deve constituir um partido, que terá que dissipar todos esses enganos se quer colocar-se à frente de todos os elementos democráticos da sociedade russa. Poder-se-ia objetar que o momento presente não é adequado para a elaboração de um programa porque, além disso, entre os próprios social-democratas surgem divergências e se iniciam discussões polêmicas. Parece-me que isto, pelo contrário, é mais um argumento em favor da necessidade de um programa. Por um lado, e uma vez que se iniciou a polêmica, é de se esperar que ao se discutir o projeto de programa se expressem todas as opiniões com todos os seus matizes, é de se esperar que a discussão do programa seja cabal e completa. A polêmica indica que nas fileiras da social-democracia russa são discutidos com mais animação do que antes grandes problemas relacionados com os objetivos de nosso movimento, com suas tarefas imediatas e sua tática, e essa reanimação é precisamente o que se necessita para a discussão do projeto de programa. Por outro lado, para que a polêmica não seja estéril, para que não degenere em lutas pessoais, para que não conduza a uma confusão de conceitos e não nos faça tomar por camaradas os inimigos e vice-versa, para tudo isso é preciso que a questão do programa figure nossa polêmica. A polêmica só pode ser útil no caso de esclarecer o verdadeiro conteúdo das divergências, de mostrar sua profundidade, de revelar se se trata de divergências que atingem problemas de princípio ou questões de detalhe, de esclarecer se essas divergências são ou não um obstáculo para trabalhar juntos no seio de um mesmo partido. Só poderemos obter a resposta que todas estas questões exigem com tanta premência caso o problema do programa figure na polêmica, caso as duas partes polemizantes exponham concretamente suas opiniões programáticas. Como é natural, a elaboração de um programa geral do Partido não deve pôr fim, de modo algum, a toda polêmica, mas é preciso deixar bem determinadas as ideias fundamentais acerca do caráter, dos objetivos e das tarefas de nosso movimento, ideias que deverão servir de bandeira ao Partido na luta, unido e coeso em que pese às divergências particulares que surjam entre seus membros em torno de questões de detalhe.
O que Lênin afirma pode parecer óbvio, mas deve ser a todo tempo recuperado: o programa é a concretização da unidade ideológica em uma visão sobre seu próprio movimento, sobre o processo efetivo de preparação da revolução e quais são as mudanças sociais que devem ser empreendidas para alcançar o objetivo estratégico. Ele é nada mais que a versão concreta e necessária dos fundamentos ideológicos que guiam uma determinada visão de mundo, assim como a forma organizativa – o Partido – é sua expressão prática.
Nesse sentido, precisamos, já de partida, superar algumas das nossas dificuldades anteriores. Era prática corrente no velho PCB (e isso foi feito diversas vezes na última década) criar “programas de luta”, “programas emergenciais”, “programa mínimo”, “programa máximo”, “programa eleitoral” e ir variando os programas conforme o vento mudava de direção. Chegou à beira do grotesco ter, no “programa de lutas” do XVI Congresso, como proposta para o transporte a “redução de tarifas a nível dos custos do sistema”, enquanto nós defendíamos em todos os movimentos a gratuidade do transporte. A própria concepção de “Programa de lutas para implementação da estratégia socialista no Brasil” já era uma salada mista absurda de conceitos.
Nosso Partido deve ter um programa ligado diretamente a sua estratégia revolucionária, capaz de sintetizar as principais medidas a serem defendidas pelo Partido. É justamente isso que não pode ser confundido com as lutas concretas em que participaremos – se, em cada greve, colocarmos como pauta imediata inegociável a estatização daquela empresa, perderemos todas as greves em que participarmos; mas se em cada greve, ao defendermos as vitórias da nossa categoria depois de um ciclo longo de lutas, abandonarmos a defesa (em nossos materiais, em nossa propaganda) da estatização dos principais setores da economia, estaremos capitulando para um programa que não é o nosso. A criação de programas “de momento” significa nada mais do que a incapacidade real de um Partido de construir sua visão totalizante sobre a sociedade – ou, ainda, sua disposição para abandonar princípios a cada passo do caminho, como é bem comum, sobretudo na luta eleitoral.
A segunda questão que devemos superar é a da extensão e minúcia de nosso programa. Nosso programa seria um compilado infinito de bandeiras se buscasse apreender todas as particularidades das lutas de classes em prol de apresentar-se completo. Esse foi um dos erros que cometi no IX Congresso da UJC – tentar fazer um programa “sem furos” é tentar apreender uma realidade absolutamente em movimento como se fosse estática, o que é não apenas impossível, mas infrutífero. Nosso programa deve conter as principais medidas que defendemos, mesmo que a cada passo concreto da luta tenhamos que apresentar novas bandeiras e novas formulações para as lutas particulares.
Ao mesmo tempo, nosso programa não pode se resumir às medidas que defendemos (esse foi um outro erro que cometi no IX Congresso da UJC – achar que o programa deveria ser simplesmente um compilado de bandeiras e que às resoluções bastaria seu caráter diretamente prático). Ele deve ser muito mais do que isso. Deve apresentar, com brevidade, mas cientificidade, nossa visão sobre o capitalismo brasileiro e internacional e como faremos, como partido, para guiar o proletariado à tomada do poder de Estado, à revolução, para construir o socialismo-comunismo. Que esse programa não dará conta de explicar tudo, isso também é óbvio. Eu diria, inclusive, que, depois de termos nosso programa, devemos produzir muitos mais materiais sobre as questões teóricas que nos levaram a aprovar este ou aquele ponto. Para cada parágrafo sobre o lugar do escravismo na formação social brasileiro, deve haver um livro publicado por nosso Partido explicando aprofundadamente; o mesmo deve ser dito sobre a estatização do sistema ferroviário, do movimento sindical, do internacionalismo proletário, e por aí vamos. Observem a extensão do Programa do Partido Operário Social-Democrata da Rússia, aprovado em seu II Congresso, como exemplo – me parece que dá conta das principais questões, dos temas “candentes” do nosso movimento, se tivermos um programa que não seja resumido, que não seja omisso; mas que seja sintético.
Por fim, como questão geral do programa de um partido revolucionário, marxista-leninista, devemos nos afastar aberta e conscientemente de pensar um programa que apresente medidas abstraídas de seus condicionantes de classe. Chegar nessa conclusão exige que analisemos o vitorioso programa bolchevique, novamente, para pensar quais interesses objetivos das classes sociais nosso programa deve incorporar. Não devemos fazer um programa “para a sociedade”, mas um programa que diferencie claramente, por um lado, as demandas do proletariado e, por outro, as demandas da unidade do proletariado com o campesinato e alguns setores da pequena burguesia urbana (seus setores mais empobrecidos, em geral advindos do exército industrial de reserva). Esse é um grande avanço da proposta de programa apresentada na II Plenária – ainda que eu ache que gerou muitas dúvidas entre os camaradas, pela falta de explicação desses caráteres; na minha etapa de célula, isso não estava claro ao início e fizemos um rico debate quando todos entendemos as diferenças entre demandas objetivamente proletárias e demandas de aliança com outras camadas populares.
Analisando o desenvolvimento do programa bolchevique, podemos ver claramente essa divisão desde o primeiro programa do POSDR: nele, vemos o programa máximo da democracia burguesa (da aliança entre liberais, camponeses e proletários) em sua primeira lista de medidas; na sequência vemos o programa mínimo do proletariado, com direitos trabalhistas e medidas de seguridade social; e o programa máximo do campesinato, com o desenvolvimento de medidas (capitalistas, percebam bem) na questão da terra. Quando falamos em programa “máximo” ou “mínimo”, não devemos fazer juízo de valor; essas são as medidas correspondentes às demandas máximas que não se choquem com os interesses objetivos das classes correspondentes a ela. Esse programa, no entanto, possui uma diferença substancial em relação ao nosso. Ele foi aprovado no II Congresso do POSDR, quando a estratégia dos marxistas russos era a da revolução democrática (ainda que hegemonizada pelo proletariado). No nosso caso, devemos falar de um programa para a revolução socialista no Brasil – então também aí são diferentes nossas bandeiras e como devemos segmentar nosso programa. Considero, no geral, corretas as demandas apresentadas na proposta de programa do Caderno de Teses, mas o fundamental é sua divisão clara entre o ponto C, do programa máximo proletário nos marcos do capitalismo, o ponto D, da aliança do proletariado com as demais camadas exploradas e oprimidas, e o ponto E, que explica as medidas iniciais da ditadura do proletariado. Dividir nosso programa com os critérios de classe é o aspecto que deve ser central nas nossas preocupações.
Temos, ainda, várias questões teóricas particulares envolvendo nosso programa, que penso que devem ser esclarecidas.
A primeira delas é a questão agrária.
Primeiramente, devemos colocar que um repúdio a qualquer linha de “revolução de nova democracia”, “revolução de novo tipo” ou outro dogmatismo maoísta deve ser encarado por nós de frente como o que ele é: um retorno ao etapismo, disfarçado de revolucionarismo camponês. Essa é a tônica de algumas de nossas tribunas, como a que fala na subestimação do interior brasileiro, que é um “copia e cola” de um texto da Nova Democracia. Diferentemente do maoísmo (em qualquer que seja sua versão atual), o marxismo-leninismo não elege como dogma a vinculação entre a luta no campo e o caráter dependente do capitalismo brasileiro; ao contrário, compreende como o campo no Brasil é cada vez mais um campo capitalista, em que as relações sociais de produção se dão predominantemente sob a lógica do assalariamento e, portanto, da venda proletária da força de trabalho. Qualquer resquício de formas de produção pré-capitalistas (feudais, semifeudais, coloniais etc.) já está subsumido ao capital e mesmo a pequena produção no campo possui uma parte significativa dela subsumida ao capital industrial e comercial (vejam, por exemplo, a situação de granjeiros “autônomos” – pequenos proprietários, agricultura familiar etc. – e sua submissão às demandas de produção da BRF, o monopólio originado da fusão da Sadia e da Perdigão). Isso significa dizer que mesmo nos casos em que a relação social não é a de assalariamento (e, novamente, não me refiro a empregos formais, mas simplesmente à forma de venda da força de trabalho por salário), como nos casos de condições de trabalho análogas à escravidão, esses empreendimentos estão, por sua vez, integrados à reprodução do capital exportador no campo e não ao regresso a formas pré-capitalistas.
Em segundo lugar, devemos situar com clareza a diferença (historicamente bem estudada) entre um programa proletário e um programa camponês para a questão agrária. Como coloca o camarada Veva em sua boa tribuna sobre o assunto, nem toda luta pela terra é “desvio maoísta”. A diferença entre uma política marxista-leninista e uma política camponesa (seja ela maoísta, ou mesmo democrático-popular) para o campo e a questão agrária é justamente sua diferença programática, a diferença simples entre a defesa da pequena-propriedade rural e a defesa da nacionalização e socialização da terra. Se cabia aos marxistas russos, por exemplo, reivindicar a distribuição de terras aos camponeses, como medida para desenvolver as lutas de classes no campo, hoje cabe aos marxistas brasileiros a defesa da nacionalização imediata de toda a terra – inclusive da terra urbana, como ataque direto à especulação imobiliária. É claro que essa nossa clareza programática não deve ser utilizada de maneira sectária, como repúdio às experiências de luta dos camponeses. Há setores que organizam o movimento camponês com grande combatividade e responsabilidade, como o MST e a LCP – mesmo que tenhamos diferenças estratégicas com ambos, como também aponta o camarada Veva. Mas não devemos nem idealizar esses movimentos pelo seu peso de massas, nem repudiá-los por suas estratégias incorretas – devemos compreender e ativamente participar da luta camponesa, especialmente entre os militantes que residem fora dos grandes centros urbanos, e buscar sua unidade com a luta proletária no campo, a luta dos assalariados rurais. Ainda no seio dessa luta, não devemos repudiar assentados ou camponeses por suas visões estratégicas equivocadas, mas demonstrar, pelo exemplo de nosso engajamento e também pela propaganda (mais do que pela agitação, nesse caso), como também esses setores de pequenos produtores têm a ganhar com a unidade com o proletariado.
É preciso, portanto, aprofundar nossa compreensão e nossas conexões com os movimentos de trabalhadores rurais e de camponeses, colhendo de diversas experiências – inclusive aquelas que nós já temos em nosso Partido. Os camaradas de Santa Catarina possuem anos de experiência com o trabalho no Assentamento Comuna Amarildo de Souza, um acúmulo que era literalmente desprezado nos tempos do velho PCB. Também no RS, temos o camarada Raul, que é estudante da Licenciatura em Educação do Campo e acaba de ser eleito membro da Coordenação Nacional da Articulação Nacional de Estudantes e Licenciados/as da Educação do Campo (ANELEDOC), com acúmulos imprescindíveis para a conexão do nosso Partido com as comunidades do campo.
A outra questão teórica que condiciona o nosso programa é a questão LGBT. Novamente aqui defendo que devemos extirpar de nossas análises o dogmatismo maoísta, como pode ser visto na estranhíssima contribuição do camarada Rafael Neves, também plagiada de um texto da Nova Democracia. Dito isso, sobre os ombros do nosso Partido está a tarefa hercúlea de contribuir de maneira bastante inédita no MCI para a compreensão da questão LGBT, um processo que foi iniciado ainda no PCB com o Coletivo LGBT Comunista, como podemos depreender do ótimo texto escrito pelos camaradas Matheus e Ricardo. Parto meus comentários desse acúmulo, antes de qualquer coisa.
O primeiro aspecto que deve direcionar as nossas discussões é avançar muito para além do que já há estabelecido hoje em termos de discussão sobre o campo LGBT. Em primeiro lugar, avançar teoricamente sobre a questão LGBT exige combatermos duramente as tendências teóricas burguesas e pequeno-burguesas que ainda existem dentro dessas formulações. Tanto o texto dos camaradas Matheus e Ricardo quanto a proposta da camarada Thali são peças-chave nessa compreensão, a compreensão de que:
[...] foi apenas com a consolidação do modo de produção capitalista e com a massificação da força de trabalho assalariada que se tornou possível converter desejos e comportamentos homossexuais em identidades. Ao analisar a história estadunidense, d’Emilio destaca que a família era uma unidade de produção social. Isto significa que para sobreviver era necessário estar integrado a um núcleo familiar grande o suficiente para realizar a reprodução social de todos os que o compunham. Com o capitalismo, sobreviver fora de um núcleo familiar tornou-se uma possibilidade. d’Emilio defende que o trabalho assalariado, associado à modernização das cidades e suas múltiplas oportunidades sexuais e de sociabilidade em geral, permitiu com que determinados comportamentos anteriormente identificados como “sodomitas” pudessem se converter em identidades e estilos de vida. Ao mesmo tempo, o processo de violência contra a população trabalhadora também se desenvolve e se cristaliza nos campos médico, legal e religioso, forjando simultaneamente a “norma” - a heterossexualidade - e o desviante - a homossexualidade.
Como marxistas-leninistas, devemos a todo momento negar qualquer naturalização do comportamento humano e das relações sociais. O que John d’Emilio fala sobre o surgimento da identidade gay pode e deve servir como um paradigma para nossa compreensão sobre o desenvolvimento histórico das novas expressões de gênero e orientação sexual que emergiram durante principalmente o século XX na sociedade capitalista. Devemos, ao mesmo tempo, negar algumas tendências de análise idealistas ao afirmar o desenvolvimento histórico dessas novas expressões.
A primeira análise idealista é a que naturaliza a família e as relações de gênero como as que vimos se desenvolver no capitalismo contemporâneo – falo aqui expressamente do reordenamento da divisão sexual do trabalho posterior à transição do feudalismo para o capitalismo e consequente reposicionamento da mulher na estrutura produtiva familiar. Isso é um aspecto dos mais antigos em análise pelo marxismo, e a própria negação da “naturalidade” da família nuclear consta no próprio Manifesto do Partido Comunista:
A burguesia arrancou à relação familiar o seu comovente véu sentimental e reduziu-a a uma pura relação de dinheiro.
[...]
As condições de vida da velha sociedade estão aniquiladas já nas condições de vida do proletariado. O proletário está desprovido de propriedade; a sua relação com a mulher e os filhos já nada tem de comum com a relação familiar burguesa; o trabalho industrial moderno, a subjugação moderna ao capital, que é a mesma na Inglaterra e na França, na América e na Alemanha, tirou-lhe todo o carácter nacional. As leis, a moral, a religião são para ele outros tantos preconceitos burgueses, atrás dos quais se escondem outros tantos interesses burgueses
[...]
Supressão da família! Até os mais radicais se indignam com este propósito infame dos comunistas.
Sobre que assenta a família actual, a família burguesa? Sobre o capital, sobre o proveito privado. Completamente desenvolvida ela só existe para a burguesia; mas ela encontra o seu complemento na ausência forçada da família para os proletários e na prostituição pública. A família dos burgueses elimina-se naturalmente com o eliminar deste seu complemento, e ambos desaparecem com o desaparecer do capital.
Censurais-nos por querermos suprimir a exploração das crianças pelos pais? Confessamos este crime.
É muito claro que na base da formulação de Marx e Engels está precisamente o problema da divisão sexual (e também etário-legal, em relação às crianças) do trabalho. Os camaradas constatam que o desenvolvimento do capitalismo desvela o caráter sentimental e moralista das famílias – e nem por isso defendem as “famílias proletárias”, como um fenômeno natural, mas como uma relação social em movimento (e em movimento de degradação). De maneira análoga ao impulso de naturalizar a pequena produção e querer de volta um capitalismo “pré-monopolista concorrencial”, a defesa da família, inclusive da “família proletária”, nada mais é do que uma tentativa de “fazer girar para trás a roda da História” – um impulso reacionário, nos termos mesmos de Marx e Engels (não em seu sentido moral, mas no sentido científico da palavra). Por outro lado, também eles percebem o vínculo inseparável do capitalismo com esse modelo familiar degradado, ao criticarem os socialistas utópicos:
Mas os escritos socialistas e comunistas [utópicos] consistem também em elementos críticos. Atacam todos as bases da sociedade existente. Por isso forneceram material altamente valioso para o esclarecimento dos operários. As suas proposições positivas sobre a sociedade futura, p. ex., supressão da oposição entre cidade e campo, da família, do proveito privado, do trabalho assalariado, a proclamação da harmonia social, a transformação do Estado numa mera administração da produção - todas estas suas proposições exprimem meramente o desaparecimento da oposição de classes que só agora começa a desenvolver-se, que eles não conhecem senão na sua primeira indeterminidade sem figura. Por isso mesmo estas proposições têm ainda um sentido puramente utópico. [Grifo meu]
Essa passagem, por simples que pareça, revela profundamente o caráter histórico do que Marx e Engels pensaram sobre a família: a família é uma construção histórica, calcada na divisão sexual do trabalho, em degradação constante dos proletários de cada família pelo capitalismo, e ainda assim ela é uma realidade condicionada pela sociedade de classes. Marx e Engels recusam qualquer utopismo “abolicionista”/neo-Proudhoniano também na questão da família (assim como famosamente o fazem na questão do Estado). A família, assim como o Estado, tende a definhar na passagem da fase inferior (socialismo) à fase superior da sociedade comunista.
Faço esse preâmbulo sobre a questão da família e da divisão sexual do trabalho porque é nessa contradição que reside todo o espectro das novas expressões de gênero e orientação sexual desenvolvidas no capitalismo, como bem observamos com o texto do d’Emilio – é a partir da degradação da família com o desenvolvimento do capitalismo que passam a ser uma possibilidade concreta novas expressões para a sociedade moderna ocidental, com o desenvolvimento de subjetividades correspondentes a essas novas potencialidades que antes não estavam postas, não tinham substrato material para existir nas relações sociais (ainda que houvesse já substrato psíquico e físico para isso, apropriado de maneira diversa por diferentes culturas[2]). Qualquer consideração que busque normatizar essas expressões diversas é tão infrutífera quanto a tentativa de um retorno à família “tradicional”, porque essas expressões novas são produto das novas condições do sistema capitalista-imperialista.
A segunda análise idealista dessa questão, no entanto, é menos perceptível, porque mais recente e mais diretamente construída a partir das bases materiais do desenvolvimento imperialista do capitalismo a partir da segunda metade do século XX, isso é, a análise pós-estruturalista e identitarista das questões de gênero e sexualidade. Aqui me apoio na reflexão da Holly Lewis, em Politics of Everybody, apresentado a mim pela camarada Bérnie.
Podemos considerar, grosso modo, que a política identitarista (ou mesmo a anti-identitarista, como defende Lewis sobre a teoria queer) localizam-se no terreno da crítica à própria visão objetiva da sociedade, pela qual o marxismo advoga. Se formos considerar mesmo filosoficamente, a crítica a essas visões teóricas centra-se em seu caráter subjetivista, na negação da possibilidade de conhecimento da dinâmica real das opressões concernentes a gênero e sexualidade, pela posição epistemologicamente exclusivista desse conhecimento, como coloca a Lewis:
As críticas feministas, queer e trans da política de identidade diferem da crítica marxista. Tanto a segunda como a terceira ondas do pensamento feminista criticam o conceito de objetividade e, em vez disso, defendem epistemologias baseadas no conhecimento situado. Dentro do feminismo, a “política identitária” é um erro político que ocorre quando um indivíduo ou grupo enfatiza excessivamente o impacto ou naturaliza um determinado ponto de vista – por exemplo, reduzindo uma pessoa à experiência assumida do grupo com o qual está identificada, ou tratando automaticamente qualquer indivíduo dentro de um grupo como se fosse representativo desse grupo. Como empreendimento pós-estruturalista, a teoria queer tem uma abordagem muito diferente. A teoria queer afirma que a identidade, como categoria conceitual, serve como um aparato disciplinar que classifica a fluidez do si-mesmo em uma normatividade politicamente dócil. Isto coloca o sujeito queer numa posição epistemológica privilegiada: aqueles que não experimentam nenhuma dissonância de género face ao sistema ignoram a sua força e os seus contornos. Os sujeitos queer são diversos, mas partilham uma compreensão colectiva da disciplina de género que constitui a base para a coesão política. Para a teoria queer, o termo “política identitária” é depreciativo porque assume que as identidades – agrupamentos bem definidos com definições claras – são desejáveis. Quando os pensadores políticos rejeitam a teoria queer como mera política identitária, isto é fundamentalmente incorreto. A teoria queer é uma política identitária anti-identidade. A crítica marxista de muitos feminismos (não marxistas) e da teoria queer é que se quisermos analisar a desigualdade como sistêmica, é necessário transcender a mente individual. Se o conhecimento estiver contido num ponto de vista, em vez de poder ser influenciado por um ponto de vista, então o conhecimento sistêmico não será possível e, como consequência, a desigualdade não poderá ser combatida de forma sistemática.
Essa abordagem é, além de esclarecedora do ponto de vista teórico, fundamental para nossa compreensão não apenas da “questão LGBT”, mas fundamentalmente da luta das LGBTs proletárias. Precisamos, como Partido, compreender essas questões e formular conclusões científicas, marxistas-leninistas, do desenvolvimento dessas expressões de gênero e sexualidade inclusive quando isso significar combater as formulações equivocadas esses processos – e aqui, por exemplo, eu tendo a discordar da camarada Ana C quando ela diz em sua Tribuna que devemos nos apossar da teoria queer. Eu diria que, ao contrário, é preciso fazer uma profunda autocrítica e desenvolver o marxismo-leninismo também nas formulações sobre gênero e sexualidade, com uma postura filosoficamente intransigente com visões de mundo liberais. Da mesma forma como Marx não se “apossou” da Economia Política burguesa, mas construiu a sua visão a partir da crítica dela, temos nós que fazer o mesmo com a questão LGBT. Isso, obviamente, não significa que devamos nós também negar nossas experiências como LGBTs para formular essa política – mas devemos, a todo tempo, reconhecer a limitação desse conhecimento em prol do conhecimento científico (e não simplesmente intuitivista) do próprio processo da opressão de gênero e sexualidade. Sem esse reconhecimento, podemos acabar inclusive idealizando as novas expressões de gênero e sexualidade como se nelas houvesse um conteúdo revolucionário em si – o que levaria a reconhecer como revolucionárias as políticas de representatividade burguesa, como os aplausos ao primeiro-ministro do Canadá por ser um homem gay.
Ainda, e aqui chegamos no ponto central da questão, tendo a ver como cientificamente correta nossa crítica ao identitarismo, na forma como se expressa em nosso Caderno de Teses, o que foi criticado pela camarada Gaby Sideras em sua Tribuna. Inclusive, podemos expandir, em um exercício teórico, a própria noção de identitarismo ao oportunismo (no sentido leninista do termo): quando Lênin combate as visões espontaneístas do movimento operário em prol de um marxismo verdadeiro, a mesma questão apontada pela Holly Lewis está em jogo. Lênin demonstra como a consciência espontânea dos trabalhadores de sua condição de explorado pode até mesmo colocá-lo em choque contra seu patrão individualmente considerado, ou um governo particularmente agressivo em relação à nossa classe. Mas não podemos considerar que o proletário compreende a sua condição de proletário porque ele é proletário. Fazer a crítica ao identitarismo, tanto no movimento operário quanto no movimento LGBT, significa afirmar que é apenas por meio da crítica às expressões teóricas atrasadas no nosso movimento que podemos fortalecer nosso próprio movimento – o que significa, obviamente, não rechaçar as trabalhadoras LGBTs por suas visões atrasadas, mas combater duramente as lideranças teóricas e intelectuais desse identitarismo justamente pelo quanto suas teorias (e, consequentemente, sua estratégia, suas táticas, suas propostas organizativas) mantêm o proletariado LGBT preso ao capitalismo. Ou, ainda, como coloca a Lewis, “para os marxistas, a testemunha posicionada [no local de oprimida] é considerada capaz de superar sua própria experiência pessoal, fenomenológica, dos eventos”. Fazer essa formulação teórica é a condição indispensável para podermos avançar no movimento das trabalhadoras LGBT, porque, como bem colocou camarada Marte em sua Tribuna, temos que “vencer a disputa ideológica contra a hegemonia liberal que nos envenena contra nós mesmos”.
Por fim, também abro um novo diálogo com os camaradas Matheus e Ricardo. Os camaradas defendem que
É preciso considerar que a violência que determina as identidades LGBT é uma manifestação particular da violência de classe. Assim, não podemos cair no equívoco de considerar que quando formulamos políticas para “trabalhadores”, no abstrato, estamos necessariamente considerando todas e todos os trabalhadores, bem como as múltiplas determinações da violência que demarca a luta de classes.
Eu daria um passo além, camaradas. Mais do que formular políticas específicas para a população LGBT, em termos de demandas imediatas (o que é absolutamente necessário), o passo revolucionário a darmos aqui é demonstrar, em nossa propaganda e nossa agitação, que a revolução socialista, como revolução da classe proletária, será tão mais vitoriosa quanto maior for a unidade da classe no combate frontal contra a burguesia. Considerado em seu projeto histórico, o proletariado tem como interesse objetivo não apenas a libertação de sua parcela heterossexual ou cisgênera, mas a libertação de toda a classe – a universalidade do projeto revolucionário comunista não apaga nenhuma expressão dele, antes as integra num todo.
Forjando um partido marxista-leninista
As últimas décadas do movimento comunista brasileiro foram marcadas pelo processo de Reconstrução Revolucionária do PCB e com o XVII Congresso Extraordinário damos o passo que os setores oportunistas do Partido se recusaram a dar (e precisaram cindir o Partido para segurar a tendência geral de retomada desse processo). Todo o processo de ascenso operário anterior a essa etapa da construção do Partido Comunista, com as batalhas contra a ditadura, foi desperdiçado pelo PCB por causa da manutenção de uma linha reformista, cujas origens remetem à estratégia nacional-democrática, cujo ponto alto de viragem e abandono de uma linha propriamente revolucionária foi justamente a “autocrítica” de março de 1958.
Manter o processo de Reconstrução Revolucionária significa, antes de tudo, retornar aos princípios – e isso implica criar entre nós uma inquebrantável unidade ideológica em torno do marxismo-leninismo. Isso significa, entre outras coisas, retomar as conclusões leninistas sobre os problemas que nos levam à necessidade de um Partido revolucionário – e, consequentemente, às características desse Partido. Quando me refiro às características, quero deixar claro que me refiro a seus aspectos de princípio, calcados na própria análise científica da realidade, e não a seus aspectos conjunturais, das margens de flexibilidade que devem adquirir o Partido e suas táticas conforme as necessidades conjunturais dos movimentos da luta.
O núcleo duro da concepção marxista-leninista de Partido é nada mais que a consequência necessária da visão marxista-leninista sobre o problema da consciência. Para Marx, podemos distinguir claramente ao observar o desenvolvimento histórico como os processos de conformação das formas de consciência da humanidade emanam, como resposta, dos dramas objetivos vivenciados por elas. É por isso que sua afirmação de que “não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua consciência” deve ser exige uma interpretação além do mecanicismo – também o ser social dos humanos, na sociedade de classes, apresenta contradições objetivas e as formas de consciência que correspondem a elas produzem não apenas seu reflexo direto mas também as potencialidades para sua própria superação. É dessa forma que podemos compreender como, por exemplo, se expressavam com tamanha força revolucionária as ideias burguesas do momento de luta contra a aristocracia e com tanta ou mais força reacionária as ideias burguesas no momento de sua luta contra o proletariado.
Essas contradições expressam, portanto, os caráteres de classe efetivos e potenciais de desenvolvimento dos interesses objetivos dessas classes – e também da posição relativa dessas classes em relação às demais classes sociais. É por isso que Marx e Engels afirmam que “As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante”. Compreender, portanto, a consciência de classe do proletariado é compreender quais são as formas de consciência que correspondem a essa classe, retomando o debate sobre o proletariado como classe do capitalismo e o proletariado como classe revolucionária.
O proletariado se apresenta como classe do capitalismo como a classe que busca, nas relações de mercado, seus interesses objetivos como vendedores dessa mesma força de trabalho. É nesses termos que vemos, desde o surgimento do proletariado como classe, o quão rápida e espontaneamente as lutas de tipo econômico desenvolvem-se contra os patrões. Das mais diversas maneiras, a classe proletária aparece nos conflitos como um vendedor que “luta” para vender mais caro a sua mercadoria, cobrando melhores preços por ela (salário), melhores condições de vendê-la (condições de trabalho), maiores garantias para sua venda (direitos trabalhistas, previdenciários), formas de organização coletiva que “cartelizem” essas vendas (sindicatos) e até mesmo formas políticas de gestão do sistema que lhes crie um mercado particularmente favorável para a venda da força de trabalho (governos “de esquerda” no capitalismo). Espontaneamente, esse é o desenvolvimento diretamente correspondente ao proletariado como classe do capitalismo, decalque direto de sua posição na reprodução do capitalismo. Lênin coloca isso ao afirmar que a “história de todos os países atesta que, pela próprias forças, a classe operária não pode chegar senão à consciência sindical, isto é, à convicção de que é preciso unir-se em sindicatos, conduzir a luta contra os patrões, exigir do governo essas ou aquelas leis necessárias aos operários etc.”
Mas, como vimos, também o proletariado possui uma potencialidade como classe social, a potencialidade de ser a classe cujos interesses objetivos correspondem ao desenvolvimento e superação das contradições do próprio capitalismo. Assim, a superação da própria condição de vendedor da força de trabalho é a potencialidade do proletariado e para isso é preciso superar também a propriedade privada dos meios de produção. Desaparecidas as necessidades de posicionar-se no mercado como vendedor de uma determinada mercadoria, o proletariado é ao mesmo tempo libertador e libertado das próprias condições de classe; é, portanto, também a última classe da sociedade de classes, cujo caráter de classe tem o potencial de definhar. Mas essa potencialidade, como qualquer outra, não aparece imediatamente, justamente por não ser uma realidade palpável. Ela só aparece mediada pela teoria, por meio do conhecimento teórico real (e não somente aparente) das próprias contradições do capitalismo; essa potencialidade vem de uma tendência que deve ser descoberta nas próprias entranhas da nossa sociedade. Essa consciência mediada, teoricamente desenvolvida, é a consciência revolucionária. Essa consciência, a teoria revolucionária, não pode ser desenvolvida intuitivamente (relembremos do debate sobre o identitarismo) a partir do proletariado por sua condição de proletários; mas por sua condição de teóricos proletários, que conseguem articular o conhecimento para além da miséria da exploração e da venda de sua força de trabalho.
A pergunta que nos cabe é, portanto, como fazer com que essa consciência espontânea do proletariado em-si (como classe do capitalismo) se eleve a uma consciência para-si (do proletariado como classe cujos interesses objetivos ultrapassam o capitalismo). Ora, se essa é a tarefa-guia de todo o movimento revolucionário – a tarefa de unir a consciência revolucionária ao movimento do proletariado – é para essa tarefa que deve se direcionar a construção de um partido revolucionário do proletariado, um Partido Comunista.
O eixo central das tarefas do nosso Partido – que são os aspectos que determinam a nossa organização, e nunca o contrário – devem estar ligados sempre à concepção (secundarizada em boa parte dos estudos do marxismo-leninismo, mas centrais na concepção do Lênin) da tática-plano, em oposição à tática-processo dos oportunistas:
Confundir em princípio o reconhecimento de todos os meios, de todos os planos e procedimentos da luta, desde que sejam racionais, com a necessidade de se guiar em um determinado momento político a partir de um plano rigorosamente aplicado, se se quer falar de tática, eqüivaleria a confundir o reconhecimento pela medicina de todos os sistemas de tratamento, com a necessidade de se ter de seguir um determinado sistema no tratamento de uma dada doença. Mas, é o próprio Rabótcheie Dielo que sofre da doença que denominamos o culto do espontâneo, sem querer admitir qualquer "sistema de tratamento" dessa doença. Ademais, fez esta descoberta notável, que "a tática-plano contradiz o espírito fundamental do marxismo" (n.º. 10, p. 18); que a tática é "o processo de crescimento das tarefas do partido, que crescem ao mesmo tempo que ele" (p. 11, grifado pelo Robótcheie Dielo). Esta última frase tem todas as possibilidades de se tornar famosa, um monumento indestrutível da "tendência" do Rabótcheie Dielo. À pergunta: "para onde ir?" este órgão dirigente responde: o movimento é o processo de variação de distância entre o ponto de partida e o ponto seguinte do movimento. Esta reflexão de incomparável profundidade não é apenas curiosa (não valeria a pena nela nos determos), constitui, ainda, o programa de toda uma tendência, programa que R. M.(no "Suplemento especial à Rabótchaia Mysl") expressou: nesses termos: a luta é desejável se ela é possível; aquela que se trava, nesse momento, é possível. É exatamente esta a tendência do oportunismo ilimitado, que se adapta passivamente à espontaneidade.
[...]
A seguir, aparecem coisas verdadeiramente divertidas. "Do mesmo modo que os homens, apesar de todo o progresso das ciências naturais, continuarão a se multiplicar através de procedimentos ancestrais, do mesmo modo que o nascimento de uma nova ordem social, apesar de todo o progresso das ciências sociais e do aumento do número de combatentes, será sempre e sobretudo o resultado de explosões espontâneas (19). Da mesma forma que a sabedoria ancestral diz: A quem faltará inteligência para ter filhos? - também a sabedoria dos "socialistas modernos" (à maneira de NarcisseTuporilov) diz: para participar do nascimento espontâneo de uma nova ordem social, não faltará inteligência a ninguém. Também pensamos assim. Para participar dessa maneira, basta se laisser aller pelo "economismo", quando reina o "economismo", pelo terrorismo, quando surge o terrorismo. Assim, o Rabótcheie Dielo, na última primavera, quando era tão importante pôr-se em guarda contra o entusiasmo pelo terror, encontrou-se perplexo, diante de uma questão "nova" para ele. E agora, seis meses mais tarde, quando a questão deixou de ter atualidade tão palpitante, apresenta-nos ao mesmo tempo esta declaração: "pensamos que a tarefa da social-democracia não pode, nem deve opor-se à ascensão de tendências terroristas" (Rabótcheie Dielo, n.º. 10, p. 23), bem como a resolução do congresso: "O congresso reconhece como inoportuno o terror ofensivo sistemático" (Dois Congressos, p. 18). Que clareza e coerência admiráveis! Não nos opomos, mas declaramos inoportuno, e declaramos isso de forma que a "resolução" não inclua o terror não sistemático e defensivo. Concordamos que tal resolução não oferece qualquer perigo, e que constitui garantia contra todo erro, como o de falar sem nada dizer! E para redigir tal resolução, não é preciso senão uma coisa: saber segurar-se à cauda do movimento. Quanto o Iskra zombou do Rabótcheie Dielo, que declarou que a questão do terror era uma questão nova, o Rabótcheie Dielo acusou severamente o Iskra "de ter a pretensão verdadeiramente incrível de impor à organização do Partido a solução de problemas táticos, apresentada há mais de quinze anos por um grupo de escritores emigrados" (p. 24). De fato, que atitude pretensiosa e que exagero do elemento consciente: resolver teoricamente e de antemão as questões, a fim de convencer em seguida a organização, o partido e as massas de que essa solução é bem fundamentada(19)! Outra coisa é simplesmente repetir coisas já ditas, e sem nada "impor" a ninguém, e obedecer a qualquer "virada" tanto para o "economismo" como para o terrorismo. O Rabótcheie Dielo chega a sintetizar esse grande preceito da sabedoria humana e acusa o Iskra e a Zaria "de opor ao movimento o seu programa, como um espírito pairando acima do caos informe" (p. 29). Mas, qual é o papel da social-democracia, senão o de ser o "espírito" que não somente paira acima do movimento espontâneo, mas, eleva este ao nível de "seu programa"? Não é, portanto, de se arrastar na cauda do movimento; coisa inútil, no melhor dos casos, e, no pior, extremamente prejudicial para o movimento. O Rabótcheie Dielo não se limita a seguir essa "tática-processo"; eleva-a mesmo em princípio, de forma que sua tendência deveria ser qualificada não de oportunismo, mas, antes, de caudismo (da palavra cauda). É forçoso reconhecer que aqueles firmemente decididos a sempre marchar à cauda do movimento, estão absolutamente e para sempre, contra o defeito de "subestimar o elemento espontâneo do desenvolvimento".
Constatamos, assim, que o erro fundamental da "nova tendência" da social-democracia russa é inclinar-se diante da espontaneidade; é não compreender que a espontaneidade da massa exige de nós, sociais-democratas, uma consciência elevada. Quanto maior for o impulso espontâneo das massas, mais amplo será o movimento, e de forma ainda mais rápida afirmar-se-á a necessidade de uma consciência elevada no trabalho teórico, político e de organização da social-democracia.
A necessidade de se observar a cada momento as diferentes táticas de luta e saber aproveitar as tendências do movimento espontâneo para imprimir junto a eles os melhores planos (formas de combate, palavras de ordem, demandas, temporalidade dos ataques e recuos etc.) são os elementos que podem dar a vitória ao nosso Partido e ao proletariado como um todo. As construções “processo” (como, por exemplo, a famigerada tática de participar do Fórum Popular, Sindical e de Juventude, até agora – mesmo depois de sua falência absoluta –, é um ótimo exemplo disso) só podem levar um partido revolucionário ao caudatarismo, ao reboquismo, a seguir atrás dos movimentos espontâneos do proletariado no curso de suas lutas.
Mas nada disso ganha concretude se não soubermos como criar as conexões com o proletariado. Fazer uma verdadeira fusão da consciência revolucionária com o movimento da nossa classe é tratar de imprimir laços orgânicos de trabalho e luta conjuntos no dia a dia, direcionados para cada tarefa conjuntural que se impõe ao proletariado – e esse direcionamento visando sempre a experimentar e conduzir as lutas econômicas sem abandonar em nenhum momento os determinantes políticos e teóricos dessas campanhas. De nada adianta, para o avanço da consciência do proletariado, se conquistamos vitórias salariais em uma grande greve, mas fazemos isso negando o caráter das lutas de classes, negando a agitação contra o Estado – dou como exemplo o sindicalismo “de resultado” e sua versão absolutamente cartorial de hoje, que considera como “amplas vitórias” quando um juiz de algum Tribunal do Trabalho lhes dá ganho de causa, em vez de denunciar o controle da burguesia sobre o próprio sistema judiciário e como esse lhe serve em última instância.
Estamos, ainda, desconectados dos mais amplos setores do proletariado e precisamos nos conectar com nossa classe no sentido de nosso trabalho revolucionário – construir conexões as mais firmes e duradouras com os elementos mais avançados da nossa classe, onde quer que estejamos, para que essas conexões sejam, elas mesmas, pontos de apoio para a dispersão das nossas ideias nas massas. Foi com a necessidade de construir esse tipo de contato íntimo, que não sacrificasse nenhum centímetro da agitação política em prol da econômica, que Lênin se perguntou por onde começar:
Em nosso parecer, o ponto de partida da nossa atividade, o primeiro passo prático para criar a organização que desejamos, o fio condutor, enfim, seguindo o qual poderemos incessantemente desenvolver, enraizar e alargar essa organização, deve ser a fundação de um jornal político para toda a Rússia. Aqui precisamos antes de tudo de um jornal; sem um jornal é impossível coordenar sistematicamente a propaganda e a agitação multiformes e consequentes que constituem a tarefa permanente e principal da social-democracia em geral, e a tarefa particularmente urgente do momento atual, no qual o interesse pela política, pela questão do socialismo, está acordando na mais larga parte da população. E nunca foi sentida com tanta força como hoje a exigência de se completar a agitação dispersa, feita através da ação pessoal, dos jornalecos locais, opúsculos etc. Completar com a agitação generalizada e regular que se pode desenvolver somente por meio da imprensa periódica. Não creio que seja exagerado afirmar que a maior ou menor frequência e regularidade da saída (e difusão) do jornal poderá ser o índice mais exato da solidez dos êxitos obtidos na organização desse setor, que é o mais elementar e mais importante de nossa atividade militar. Diga-se, aquilo de que aqui precisamos é um jornal para toda a Rússia. Se não sabemos e enquanto não soubermos unificar a nossa influência sobre o povo e o governo mediante a palavra impressa, será utopia pensar poder unificar outros meios de influência mais complexos, mais difíceis e a curto prazo mais decisivos. O nosso movimento, seja do ponto de vista ideológico ou do prático, organizativo, sofre sempre muito por causa de seu fracionamento, dado que a imensa maioria dos social-democratas está quase completamente absorvida pelo trabalho puramente local, que restringe seu horizonte e a amplitude de sua atividade, de sua experiência clandestina e a sua preparação. Exatamente desse fracionamento se deve cortar as raízes mais profundas, daquela instabilidade e daquela fraqueza da qual tratamos acima. E o primeiro passo adiante para livrarmo-nos desse defeito, para transformarmos diversos movimentos locais em um único movimento nacional russo deve ser a organização de um jornal para toda a Rússia.
A unificação de nossa agitação e nossa propaganda é um problema sério, uma marca do grau de artesanalismo em que ainda nos encontramos. Nosso jornal Palmares, que já está em desenvolvimento, é uma tarefa imprescindível para as conexões que vamos construir junto ao proletariado. Ele deve não apenas ser uma forma de os trabalhadores nos conhecerem, mas conhecerem a si mesmos, às lutas que ocorrem em todo o Brasil e todo o mundo, que sirva como ferramenta de superar a consciência espontânea.
Hoje, é claro, falar num “jornal” deve significar muito mais do que na época do Lênin. Estamos falando da necessidade de um verdadeiro aparato multimídia de agitação e propaganda revolucionária, que contenha conteúdos variados, debates complementares, ferramentas para apresentar, a cada momento da luta, a visão do Partido sobre a situação – e, mais importante ainda, quais passos devemos tomar. Uma unificação de nossos agitadores e propagandistas virtuais é imprescindível, mas ela por si só não basta: é preciso que nosso Partido se comprometa com ser uma verdadeira rede de agentes de circulação e produção do nosso próprio jornal. Cada luta, cada sofrimento, cada vitória dos trabalhadores devem ser anunciados e explicados ao conjunto da classe trabalhadora sob o nosso ponto de vista. Do ponto de vista da propaganda, devemos elaborar materiais e materiais com cientificidade e rigor sobre os mais variados assuntos: a questão ambiental, a reestruturação produtiva, os conflitos interimperialistas, a história do Movimento Comunista Internacional, as nossas questões práticas (sim! porque elas também exigem suas próprias elaborações teóricas) e disseminar o máximo possível a visão do nosso Partido.
Isso tudo leva tempo e exige esforço. É compreensível ver alguns camaradas desanimados quando os esforços que estamos empreendendo há meses ainda dão seus primeiros passos. Devemos desenvolver, entre nós, um combinado único de paciência revolucionária e urgência histórica – não devemos deixar para depois nenhum dos passos práticos que temos que dar hoje, mas também devemos compreender o quanto cada processo demora em seu desenvolvimento concreto. Nossas finanças, por exemplo, são ainda completamente amadoras e não caminharemos muito longe dependendo apenas de nossas cotizações – devemos constituir todo tipo de empreendimento possível, não de forma espontânea, mas planejada, para adquirir os meios necessários para nosso trabalho. O mesmo pode ser dito do próprio jornal físico: não podemos piscar os olhos para iniciar nosso trabalho assim que ele esteja impresso, mas ao mesmo tempo temos que compreender o quanto erraremos em esquemas logísticos, em temporalidade de impressão etc. até que tenhamos uma rede bastante afinada de produção e distribuição.
Mas nada, camaradas, nada disso será possível se nós não atingirmos um grau absolutamente inquestionável de unidade ideológica sob o marxismo-leninismo.
Todo o primeiro capítulo de Que fazer?, de Lênin, é um ataque contra a “liberdade de crítica”, como defendida pelo jornal Rabótcheie Diélo, e, segundo Lênin, “tornar-se-á claro que ‘a liberdade de crítica’ é a liberdade da tendência oportunista na social-democracia, a liberdade de transformar esta em um partido democrático de reformas, a liberdade de implantar no socialismo as ideias burguesas e os elementos burgueses.” Cinco anos depois, o mesmo Lênin diz que o “princípio do centralismo democrático e da autonomia das organizações partidárias locais implica uma liberdade universal e plena de crítica”. Vários de nossos camaradas, nesse processo da cisão e da manutenção da Reconstrução Revolucionária do PCB, aferraram-se aos princípios do centralismo democrático, como pensado por Lênin, a partir da simplicidade do seu texto de 1906, uma batalha contra a resolução do CC de maioria menchevique sobre a liberdade de crítica dentro do Partido. É compreensível: desvincularmo-nos do dogmatismo e do burocratismo do velho PCB foi uma arma muito importante para manter viva a Reconstrução Revolucionária do Partido.
Mas gostaria de refletir com os camaradas. Em uma reunião que participei nos últimos dias, um camarada afirmou que “o que nos uniu nesse processo foi a polêmica pública”, constatação que achei, talvez, mais correta do que eu gostaria. O centralismo democrático real, com todas as suas possibilidades de polemizar abertamente e de forjar nosso Partido em um nível ideológico superior, torna-se uma casca absolutamente vazia se não for um método de trabalho, um meio, para atingirmos um determinado nível ideológico dentro do Partido e também nas relações com o proletariado. Já sabemos, é verdade, que o fechamento burocrático dos debates não constrói essa unidade ideológica. Mas tampouco a constrói quando a polêmica pública vira espaços de desabafos casuais, de comentários dispersos, de picuinhas, de agitação infantil. Sou daqueles que defendem uma liberdade de criticar exatamente nos marcos do Lênin: “uma liberdade universal e plena de crítica, desde que isso não perturbe a unidade de uma ação definida; exclui todas as críticas que perturbem ou dificultem a unidade de uma ação decidida pelo Partido”. Estou completamente de acordo com o camarada Mattheus Leal, quando ele afirma em sua Tribuna: “Critiquem as deficiências de nossa construção, mas não deturpem a orientação da autocrítica e não a transformem em uma arma para caça às bruxas contra nossos próprios militantes.”
Enquanto a construção de nossa unidade ideológica for “um diálogo de ouvidos tapados”, em que não conseguimos dialogar direta e abertamente com os camaradas para a solução dos nossos problemas políticos, ideológicos, organizativos, não seguiremos bem. Devemos ter, novamente, a urgência-paciência para os debates centrais que estamos travando – e é para isso que serve o centralismo democrático: como arma. Uma arma contra nossos próprios desvios, contra os erros de nossas análises, contra os erros de nossas ações. E não como ultimatos explosivos e inconsequentes. Não queremos a “liberdade de crítica” do Rabótcheie Dielo, para que entre nós circulem à vontade qualquer tipo de posição e pensamento, queremos o avanço da nossa linha política. Precisaremos para isso separar, a todo e qualquer momento, quais são os temas principais que nos unem e quais são os temas secundários que nos dividem, e lidar com cada um a seu modo.
Se chegarmos ao fim de nosso XVII Congresso com a capacidade de realmente dar consequência à Reconstrução Revolucionária do PCB, cujo CC a abandonou e que terá que ser recuperada da lama, limpa e alçada novamente como bandeira do movimento comunista brasileiro; se essa Reconstrução Revolucionária se confirmar na prática com uma unidade ideológica superior, mais científica e mais correta em suas considerações e linhas de ação junto ao proletariado; se com essas linhas desenvolvermos nosso trabalho de conexão com as mais amplas camadas do proletariado no curso de sua luta – todas tarefas que eu hoje estou seguro de que são realizáveis – então poderemos de fato ter um partido marxista-leninista no Brasil que faça jus a seu nome, um verdadeiro Partido Comunista.
Isso, no entanto, ainda não é o bastante. O movimento da nossa classe, como eu tentei demonstrar no começo do texto, é uma luta global contra um inimigo igualmente global. A luta do proletariado é uma luta, por sua própria essência, internacional – lembremos, por exemplo, do quão internacionalista foi o pacto de Brest-Litovsk que sacrificou territórios inteiros da Rússia Soviética em prol de uma paz momentânea que pudesse dar forças ao proletariado em toda a Europa e na própria Rússia para manter viva a Revolução de Outubro, como ponto de apoio para a revolução na Europa ocidental. Hoje, essa situação demonstra-se também com absoluta clareza – pensemos no impacto que terá a próxima revolução socialista no mundo não para o proletariado do seu país apenas, mas para os trabalhadores do mundo todo. Se um processo de resistência nacional contra o colonialismo, como na Palestina, já tem sido um forte impulso para um engajamento de milhões de pessoas, o que representará, para os trabalhadores de cada país, a revolução socialista em apenas um deles?
Essa é a perspectiva do internacionalismo proletário que deve ser parte constitutiva de nossa visão de mundo. A burguesia, em nível global, tenta o tempo todo criar divisões na classe trabalhadora também em relação às questões nacionais – isso pode se ver claramente no racismo pelo qual passam bolivianos em São Paulo, ou venezuelanos em Roraima, apenas para citar dois exemplos. O chauvinismo tampouco foi um ponto simples de se superar mesmo dentro do MCI – basta ver o posicionamento do PCF, quando em 1960 criticou a ação de 121 intelectuais na França que defenderam a insubmissão dos militares na guerra contra a independência da Argélia, chegando a citar Lênin (!) para defender sua posição. Se para nosso Partido, hoje, por causa especialmente dos motivos internacionais que levaram o CC do PCB a decidir pela cisão do Partido, esse viés internacionalista pode se expressar com menos restrições conciliadoras com países “anti-imperialistas”, isso ao mesmo tempo nos coloca grandes tarefas em nível de construção organizativa internacional.
Como eu mencionei no balanço inicial, hoje não temos nada que se assemelhe a uma Internacional Comunista. Sua dissolução, em 1943, foi um duro golpe contra o internacionalismo proletário no MCI. O balanço do KKE sobre a Internacional Comunista (IC) sintetiza as consequências práticas e teóricas disso:
As contradições na linha da IC sobre o caráter da Segunda Guerra Mundial também foram influenciadas pelas aspirações da política externa da URSS e pela sua tentativa de se defender de uma guerra imperialista. Contudo, em qualquer caso, as necessidades da política externa de um estado socialista não podem substituir a necessidade de uma estratégia revolucionária para cada país capitalista. A segurança final de um estado socialista é determinada pela vitória mundial do socialismo ou pela sua prevalência num grupo poderoso de países e, portanto, pela luta pela revolução em cada país.
[...]
A decisão pela autodissolução da IC enfraqueceu as forças revolucionárias a curto, médio e longo prazo e claro que não foi uma medida para defender a URSS. Pelo contrário, levou à intensificação das pressões exercidas por toda a burguesia contra os PC, numa altura em que a guerra abalava profundamente não só a própria burguesia, mas também a propriedade capitalista, dependendo dos danos causados pelas operações militares. Não preparou os movimentos operários para um contra-ataque em condições de crise do poder burguês na sua forma fascista ou qualquer outra, e mesmo num momento em que o prestígio da URSS e a admiração de milhões pelas conquistas do povo soviético e o Exército Vermelho atingiu o auge e a influência e o prestígio de uma série de PCs aumentaram significativamente, devido ao seu papel de liderança na luta antifascista e de libertação nacional.
Qualquer análise efetivamente comprometida com o internacionalismo proletário chegaria às mesmas conclusões. Sabemos, portanto, que o processo de reagrupamento do MCI e de construção de uma nova organização como foi a Internacional Comunista exigirá esforços tremendos e não acontecerá como um ato simplesmente de vontade, sem ancoragem em um processo massivo de mobilização e reorganização dos próprios PCs (reconstruções e avanços ideológicos), como foi a própria fundação da IC, que surgiu como ruptura final da Segunda Internacional (e digo “final”, porque o rompimento ideológico nela já existia há anos). A experiência da construção de um partido mundial revolucionário dos trabalhadores depende das experiências de construção dos diversos PCs (e organizações marxistas-leninistas, em sentido lato, independentemente de seus nomes), como analisa Francisco Martins Rodrigues, polemizando com os esforços de cúpula da IV Internacional:
Trotski não entendia que, depois de Marx e Engels terem propagado as ideias revolucionárias através da AIT, a existência de um partido mundial dos trabalhadores passava a depender do suporte de experiências concretas de aplicação do marxismo à luta de classes nos diferentes países.
Por essa experiência não estar reunida em 1876, Marx e Engels pronunciaram-se pela dissolução da AIT. A II Internacional pôde formar-se precisamente porque entretanto a experiência de diversos partidos social-democratas, sobretudo do alemão, rasgava perspectivas novas ao movimento internacional. Mesmo assim, Engels considerou-a prematura.
Da mesma forma, a IC teria sido impensável sem a projecção explosiva ganha pelo partido bolchevique após a vitória da revolução russa. As experiências novas dos leninistas na hegemonia do proletariado, na aliança com o campesinato, na edificação do partido, na conquista do poder, serviram de alicerce à III Internacional, levando a uma etapa mais avançada a construção do partido operário mundial.
Quando, por sua vez, a IC mergulhou na decadência, corroída pelo oportunismo, a tarefa que se colocava (e ainda hoje continua em aberto) aos comunistas era demonstrar, no seu próprio país, como se podia fazer, em condições diferentes, uma política operária revolucionária. Só o confronto entre experiências concretas de partidos ou grupos comunistas renovados podia servir de pólo aglutinador à reconstrução da Internacional.
A reconstrução de uma Internacional Comunista depende, também, desse processo de depuração, reconstrução e unificação ideológica em níveis planetários. Se isso já é uma dificuldade no nosso país, imaginemos nós o tamanho dessa tarefa em escala internacional. Mas essa não é uma tarefa que está abandonada por vários PCs – nomeadamente aqueles que buscam construir e fortalecer o chamado bloco revolucionário ou polo marxista-leninista do MCI. Foi de muita utilidade no processo da nossa cisão com o velho PCB, e segue sendo, o conjunto de reflexões apresentadas pelo Secretário-Geral do TKP, Kemal Okuyan, quando expôs seus pensamentos em voz alta sobre a construção de uma nova Internacional Comunista. Já peço desculpas pela extensão da citação, mas são fundamentais as palavras do camarada:
Precisamos fazer debates ousados.
[...]
Pelos esforços muito significativos de alguns partidos, notadamente o Partido Comunista da Grécia, tornou-se uma tarefa prioritária reunir o que restava em nome do comunismo. Os Partidos Comunistas e Operários se reuniram 22 vezes. Isso em si tem sido extremamente importante. Porém, esse período não serviu para que o movimento comunista reconstruísse suas próprias referências da forma que precisava.
E, eventualmente, a visão de que os partidos comunistas não precisam de referências teóricas e políticas começou a se consolidar.
Hoje, não temos um mecanismo funcional para examinar as diferenças fundamentais que podem ser observadas quando olhamos não apenas os partidos membros da Solidnet que participam dos Encontros Internacionais de Partidos Comunistas e Operários, mas todos os partidos que se identificam como comunistas.
Seria um grande erro racionalizar essa falta de comunicação escondendo-se atrás do princípio da não ingerência nos assuntos internos, apesar de ser um princípio que pensamos que deve ser rigorosamente preservado no período vindouro.
Em última análise, o processo revolucionário mundial é um todo, e a forma como cada partido que se identifica como comunista se relaciona com esse processo diz respeito a todos os outros atores que fazem parte desse processo.
[...]
Precisamos organizar um debate, um debate realmente ousado.
Isso não deve ser entendido como um apelo para que os partidos comunistas se envolvam em um confronto ideológico dentro e entre eles. A extensão da decadência do capitalismo confronta os partidos comunistas com a tarefa de canalizar uma alternativa real o mais rápido possível. Neste momento, não podemos nos limitar a um debate acadêmico, teórico.
O que precisamos é o seguinte: estabelecer um esclarecimento dos referenciais teóricos e políticos a partir dos quais cada partido comunista atua. Não faz sentido considerar isso como um problema interno de cada partido. A interação é um dos privilégios mais importantes de um movimento universal como o marxismo.
Infelizmente, não estamos passando por um período saudável para os partidos comunistas se ouvirem e se entenderem.
O que precisamos é que todos contribuam para criar verdadeiros espaços de discussão sem rotular nenhuma outra parte.
Mesmo que existam fatos suficientes para rotular um partido, a necessidade de abster-se de fazê-lo não é uma questão de cortesia política, mas está totalmente relacionada às condições particulares de hoje.
O processo em que os partidos comunistas perderam suas referências já dura quase 70 anos. O problema é profundo demais para ser superado por tentativas prematuras de divisões ou separações.
Sem dúvida, as partes que têm posições semelhantes ou que consideram formar parcerias estratégicas podem e devem estabelecer plataformas bilaterais, múltiplas, regionais ou internacionais para reforçá-las. Mas a realidade é que sua contribuição para a formação desses pontos referenciais será limitada.
A organização de um debate saudável exige evitar o recurso a epítetos como reformista, sectário, aventureiro ou oportunista. Como dito acima, a cortesia política não é o fator decisivo aqui. De fato, no passado, epítetos muito mais duros e ofensivos foram usados pelos marxistas. Mas cada um desses conflitos anteriores amadureceu sobre os pontos de referência que se pensavam existir e compartilhavam entre si.
Suponho que o ponto em que precisamos esclarecer o que entendemos pela palavra “referência” esteja agora alcançado.
Estamos falando de pontos de partida históricos, teóricos e morais que floresceram no seio do marxismo e foram endossados internacionalmente.
Por exemplo, antes que a Segunda Internacional fosse manchada com a vergonha de 1914, a oposição categórica à guerra imperialista era uma posição de princípio que foi endossada unanimemente. Esse princípio foi fruto da atuação do marxismo sobre referências comuns, embora as divergências sobre o tema ainda não estivessem totalmente cristalizadas.
Outro princípio bem conhecido, de não participação nos governos burgueses, também decorria das mesmas referências.
Tais exemplos podem ser multiplicados. O que precisamos ter em mente é que o que está na raiz dos conflitos e divisões entre os marxistas nos primeiros 25 anos do século XX são essas antigas referências comuns.
Essa semelhança foi a razão por trás de Lênin culpar Kautsky e outros como “renegados”.
Como sublinhei acima, a Terceira Internacional desenvolveu códigos que se tornaram novas fontes de referência para o movimento comunista após o aprofundamento das diferenças em 1914 que levaram a uma cisão. Enquanto alguns partidos não foram corajosos o suficiente para declarar abertamente sua distância a essas referências, alguns outros partidos os defenderam sinceramente e os seguiram. Em qualquer caso, o movimento comunista internacional moveu-se dentro de um quadro teórico e político.
Mencionei acima que essas referências já começaram a perder sua influência muito antes de 1991, quando a União Soviética se dissolveu e, além disso, é impossível hoje estabelecer um novo quadro que fosse endossado por todos.
No entanto, é óbvio que haverá graves consequências para os partidos comunistas agirem num terreno cujos limites históricos, teóricos e políticos estão completamente perdidos.
O debate e a comunicação aqui devem servir para esclarecer o conjunto de princípios que obrigam os partidos comunistas, sem ceder a essa falta de referências.
A divergência (se for inevitável) servirá para o avanço apenas quando for o resultado de tal processo.
É claro que é possível e necessário neste processo, apesar de todas as diferenças, desenvolver posições e ações comuns sobre questões internacionais, como guerra e paz, ou a luta contra o racismo, o fascismo e o anticomunismo. Se não ignorarmos e não banalizarmos as diferenças, as posições tomadas podem se tornar mais reais e as ações conjuntas mais poderosas.
O objetivo certamente não é a divisão. O objetivo deve ser ajudar o movimento comunista, que afirma ser a vanguarda do processo revolucionário mundial desigual e combinado, a se transformar em um movimento conjunto acima e além dos elementos individuais.
O que queremos dizer com um movimento conjunto não é, obviamente, formar um modelo que não leve em conta as particularidades das lutas que acontecem em diferentes países. Por outro lado, todos precisaríamos nos preocupar com o motivo pelo qual a dicotomia “questões internas” e “relações internacionais” se tornou uma zona de conforto como nunca antes em nossos 170 anos de história.
Debate, interação e comunicação são importantes por causa de tudo isso.
Mas como e sobre o que devemos debater?
Nesse ponto, não deve haver espaço para “tabus” ou áreas intocáveis.
[...]
Não há problema a ser deixado de lado para aqueles que testemunharam o trágico colapso da União Soviética. Para nós, é infundada a ideia de que discutir determinados assuntos ameaçaria os valores que nos ligam ao nosso próprio passado. O que realmente ameaça nossos valores é a falta de referência de hoje. Se pudermos evitar que algumas questões se transformem em tabu, veremos claramente que a história comum do movimento comunista é muito mais rica do que se supõe.
[...]
Os comunistas não devem ter reservas em discutir qualquer tema pertencente à história das lutas de classes. No entanto, mecanismos de debate mais sofisticados são necessários se não quisermos permitir que nossas discussões sejam inibidas pelo respeito às preferências dos partidos comunistas que lutam em cada país.
Vale elaborar um pouco mais sobre a ideia de que os debates não devem envolver estigmatização. É óbvio que um partido comunista pode rotular outro, explícita ou implicitamente. Claro, não podemos considerar tudo isso como infundado. Hoje, não é segredo que existem alguns partidos comunistas adquirindo caráter social-democrata. A identificação de alguns partidos praticamente inexistentes politicamente como “proclamatórios” ou “sectários” também pode ser tomada como justificada. No entanto, podemos observar que esses rótulos não servem para a interação e o debate que mais precisamos no momento.
Já mencionamos que faltam referências comuns no cenário internacional. No entanto, outra verdade é que muitos partidos carregam dentro de si o potencial de mudança. Podemos caracterizar essa mudança como positiva ou negativa em cada caso. No entanto, também podemos ver que as ondas do grande terremoto que atingiu todos os partidos comunistas na segunda metade da década de 1980 ainda continuam e que muitos partidos não se estabilizaram ideológica e politicamente.
Seria errado atribuir um significado negativo a essas dores de mudança, que às vezes levam a rupturas e cisões. O que está errado, na verdade, é que esses conflitos internos muitas vezes não coincidem com um processo tangível e perceptível de debate ou divisão. A falta de “debate” entre os partidos comunistas desempenha um papel nessa crueldade.
Nesse sentido, podemos argumentar que os problemas são causados por tentativas de desvalorização ou difamação disfarçadas de polidez, ao invés de acusações abertas.
É inevitável que as relações se tornem menos saudáveis na falta de uma verdadeira plataforma de debate.
Até agora, discorremos sobre as consequências da falta de referências teóricas e políticas. Outro problema surge nos critérios de avaliação dos partidos comunistas. Ao avaliar um partido comunista, prestamos atenção ao seu programa, ideologia, status organizacional, ações, sua influência na sociedade, desempenho eleitoral, publicações e padrões de quadros. Alguns deles são puramente qualitativos, mas outros podem ser medidos quantitativamente. Porém, deixando de lado suas preferências ideológicas, e não levando em conta rótulos fáceis de colocar como “reformista”, “sectário”, “aventureiro” etc., podemos julgar um partido político apenas questionando se ele é influente ou não.
Nesse contexto, fica claro que a distinção “partido grande vs. partido pequeno” não é um critério “revolucionário”. Em particular, não faz sentido avaliar a magnitude de um partido com base principalmente em resultados eleitorais.
Não é preciso lembrar que estamos fazendo essa ênfase não em nome de um partido até então sem vitória parlamentar, mas com base na tradição que se formou desde o início do século XX.
Como a igualdade entre os partidos comunistas é um dos princípios mais importantes e universalmente defendidos, vale a pena dar mais ênfase a ele.
A classificação de “partido grande vs. partido pequeno” não serve para estimular os partidos a progredir. Mas um verdadeiro debate é absolutamente benéfico. Hoje, qualquer comunista que viva em qualquer país tem o direito, e o dever, de se perguntar como outro partido comunista está reagindo aos acontecimentos naquele país, de fazer perguntas e de expressar opiniões a respeito.
Quaisquer que sejam as condições em que opere, quaisquer que sejam as oportunidades que tenha, é sempre possível para um partido comunista agir mais, melhor e mais revolucionário do que antes. Assim, os princípios de respeito mútuo e não interferência em questões internas não devem anular as abordagens críticas, e os partidos comunistas não devem permanecer em uma zona de conforto onde estão sozinhos.
Os partidos comunistas não se classificam, mas acompanham-se uns aos outros, discutem e procuram formas de colaboração. As bases para isso podem ser criadas avaliando os partidos comunistas com critérios sólidos.
[...]
Neste momento, podemos ser mais específicos sobre o que queremos dizer com um “debate real”. O que está por trás da necessidade de não deixar um único ponto de nossa própria história sem luz ou sem avaliação honesta certamente não é o rigor acadêmico. Quando examinamos com atenção, vemos que a “identificação das tarefas prioritárias” esteve no centro de todos os debates, desde a 1ª Internacional até a dissolução da União Soviética. É essa simples questão que determina os debates e as divisões dentro do marxismo.
As tarefas prioritárias foram uma vez definidas como a derrubada da monarquia e do feudalismo, outras vezes a expansão do direito da classe trabalhadora de se organizar e se engajar na política e, em alguns outros casos, a neutralização da ameaça do fascismo ou da guerra.
Agora também, os partidos comunistas têm visões diferentes sobre qual é a tarefa prioritária do processo revolucionário mundial, do qual eles próprios constituem elementos.
As necessidades do processo revolucionário mundial são determinantes.
Naturalmente, cada partido comunista avalia essas necessidades do ponto de vista de seu próprio país e dos interesses da luta em seu próprio país. A distância entre as necessidades gerais do processo revolucionário mundial e os interesses dentro de um país é um dos problemas mais sérios que os comunistas têm que resolver ou administrar. Às vezes, essa distância pode se transformar em um conflito. Também aqui os partidos comunistas têm um papel importante a desempenhar.
Devemos admitir que hoje as diferenças entre os partidos comunistas são produzidas pelas diferentes respostas à questão de qual é a tarefa prioritária da revolução mundial.
Uma abordagem muito difundida e antiga afirma que expandir o espaço para a democracia e as liberdades é a tarefa prioritária do processo revolucionário mundial.
Mais uma vez, ouvimos cada vez mais descrições de tarefas como “repelir o imperialismo dos EUA” e “repelir o perigo do fascismo e da guerra”.
É óbvio que essas tarefas não podem ser negligenciadas. No entanto, tais definições de tarefas podem eventualmente se transformar em defesa de iniciativas e movimentações de política externa deste ou daquele país.
É também uma escolha definir a tarefa urgente no que diz respeito aos interesses da revolução mundial hoje como tornar o socialismo uma opção oportuna. Essa abordagem, que também adotamos, deve ser vista como o produto da determinação de rejeitar e acabar com o status em que o socialismo, única alternativa ao capitalismo, vive seu momento menos influente e assertivo durante um período de 170 anos.
Determinar a tarefa principal com base na oportunidade do socialismo e, portanto, da revolução, significa também eliminar as adversidades que podem ser causadas por outras abordagens que limitam ou pacificam a classe trabalhadora.
Falando realisticamente, é impossível para a classe trabalhadora em sua forma atual ser a principal força capaz de repelir o imperialismo dos EUA ou neutralizar a ameaça do fascismo e da guerra. Para que os comunistas exerçam peso nessas tarefas históricas, eles precisam ter vontade de cumprir sua missão principal.
O movimento comunista não terá futuro imitando outras forças, enquadrando-se numa definição mais ampla de esquerda. A isso não podemos nem chamar de um mergulho kamikaze porque não fará nenhum mal ao inimigo. Também não é um harakiri porque não levará a um fim “honroso”.
Como estratégia de crescimento, as prioridades acima mencionadas não ajudarão o movimento comunista a florescer e se desenvolver.
Claro, não podemos falar de um teste de sinceridade aqui. A história é o juiz mais justo. Mas todos nós sabemos que o comunismo tem limites.
Se esses limites se tornaram ambíguos, isso pode ser um ponto de partida para nós. Sem cair na repetição, sem se esgotar com palavras de ordem, citações ou papagaiagem.
A grande obra de Marx e Lênin está na totalidade de seus pensamentos e ações. Se o que define a vida de Marx foi seu ódio infinito ao capitalismo, a revolução e a tomada do poder político o fazem para Lênin.
Nos anos anteriores, a cada momento em que os partidos comunistas se esqueciam de sua própria razão de ser, passavam por alguns percalços que hoje podem ser julgados como “erros”.
Por esta razão, se, em vez de querelas caóticas e infrutíferas, os partidos comunistas puderem contribuir para os debates, dando respostas claras sobre como eles se relacionam com o processo revolucionário mundial e demonstrando referências ideológicas e políticas apropriadas, um resultado coletivamente significativo surgirá para cada um dos partidos comunistas. Assim, posições comuns, ações conjuntas ou separações acontecerão em um terreno muito mais sólido.
O TKP fará suas modestas contribuições para a arena internacional com essa perspectiva.
Para além da generosidade com que o TKP se apresenta ao MCI e da sóbria postura crítica e autocrítica das palavras do camarada Okuyan, temos que compreender profundamente suas implicações práticas. Podemos ver também, recentemente, o processo de conformação da Ação Comunista Europeia como um novo espaço de articulação da Iniciativa Comunista Europeia depois da dissolução desta última. Esse processo pode nos servir como um exemplo importante para nossa construção internacional também, com a exigência de darmos atenção, em primeiro lugar, aos marcos políticos que exigem essa conformação (e o nível de unidade necessária e divergência permissível), e, em segundo lugar, às intervenções que devemos fazer nesses espaços para aumentar a nossa influência, mas também nosso aprendizado com as experiências alheias. Se isso for feito no rumo do avanço ideológico e estratégico do MCI, dará bons frutos. Se for feito com submissão e diplomacia cínica, ou com sectarismo e autoproclamação, estaremos, de ambos modos, reduzindo o potencial de unificação orgânica e política do MCI – e isso não nos interessa.
Como o próprio camarada Okuyan menciona, não podemos ter tabus sobre nenhum assunto. Devemos expor, com clareza, todas as opiniões que nosso Partido julgar corretas sobre qualquer assunto em concordância ou discordância dentro do MCI. Isso exige de nós compreender – descobrir por meio da análise e não escolher com base em nossas opiniões – quais são os pontos-chave de discussão que realmente dividem ou não o MCI hoje. É de conhecimento internacional o fato de que o KKE possui uma posição retrógrada nos assuntos LGBT, por exemplo, tendo se posicionado contra o casamento igualitário; é também de conhecimento internacional o fato de que o Partido Comunista Português, por sua vez, foi favorável ao casamento igualitário. Ao mesmo tempo, o KKE defende uma estratégia socialista revolucionária e socialista, e o PCP defende uma estratégia colaboracionista de “Democracia Avançada”. Isso não significa, contudo, que estão os dois posicionados da mesma maneira, como “partidos que têm erros e acertos”, no MCI. Enquanto um deles erra de maneira crassa ao não compreender de maneira totalizante a unidade necessária de todo o proletariado no curso da revolução socialista, porque não compreende o desenvolvimento histórico do gênero e da orientação sexual; o outro confina todo o proletariado, inclusive suas camadas LGBT, aos marcos da democracia burguesa. Há uma diferença substancial aqui. Isso faz com que tenhamos que “passar pano” para o KKE? Ao contrário, devemos demonstrar com todo o rigor suas posições equivocadas em matéria de gênero, sexualidade e família, temas que não são menores. E devemos também demonstrar com todo o rigor suas posições avançadas em matéria de Aliança Popular, de estratégia, de programa, de desenvolvimento do partido no seio do proletariado e de internacionalismo proletário. Hoje, como também coloca o camarada Okuyan, são esses últimos temas que produzem uma fissura objetiva no MCI, porque dizem respeito às alianças de classe construídas em nível nacional e internacional pelos diferentes Partidos, que inclusive colocam partidos um contra o outro em lutas objetivas – como, por exemplo, na questão do apoio do PCTR à guerra da Ucrânia; ou ainda, como nós teremos que enfrentar o capital chinês, apoiado e gerido pelo PC Chinês, em empresas privatizadas do setor de energia no Brasil se quisermos desenvolver nosso trabalho sindical junto a esse setor.
Não faremos nenhuma dessas tarefas com arroubos de revolucionarismo. Faremos com a sobriedade e a paciência-urgência de apontar os rumos programáticos que todo o MCI deve seguir, ouvindo de volta também as contribuições de todos. Para isso, inclusive, devemos e podemos propagandear nossa visão renovada do centralismo democrático e do papel da polêmica pública para a construção da unidade ideológica no seio do MCI. Isso tampouco será uma coisa simples – de diversos lados, o papel dessa ampla crítica para o desenvolvimento ideológico dos comunistas não foi compreendida ainda em sua potencialidade (e, eu dira, nem mesmo entre nós, de certa forma). Mas fazer com que esses debates reacendam a chama do marxismo-leninismo em aspectos considerados pacificados pelas degradações políticas e organizativas dos PCs mundo afora é certamente uma oferta que temos a fazer para o MCI.
Penso que haverá aproximações e afastamentos nesse processo, como há e houve entre diversos outros PCs. Devemos ter como responsabilidade primeira o desenvolvimento de um polo marxista-leninista e revolucionário no MCI – dando as nossas contribuições para isso, sem qualquer tabu – e isso exige de nós criar pontes, construir coletivamente e unificar ao máximo os partidos e organizações que busquem esse mesmo avanço. Temos continuado a conversar com diversos partidos e organizações comunistas pelo mundo, indicando esse objetivo. Alguns desses virão ao nosso Congresso e poderemos aprender muito com suas experiências melhor consolidadas de um rumo efetivamente revolucionário e marxista-leninista de construção partidária.
Por fim, tenho acordo, em geral, com os destaques do camarada P. Acácio na questão das RI, conforme apresentado em sua Tribuna. O camarada destaca a Ação Comunista Europeia como um dos espaços privilegiados de reagrupamento dos marxistas-leninistas em nível internacional, acrescentando o PC Argentino, do México e da Venezuela como partidos destacados no que devem ser nossas alianças em nível internacional. Além disso, haverá outras organizações várias com as quais podemos e devemos nos articular e fazê-las avançar ao ponto de se entenderem como um verdadeiro Partido Comunista, parte do MCI.
III
Problemas secundários no XVII Congresso
Qual era, então, a essência da questão em disputa? Eu já disse no congresso, e desde então tenho repetido várias vezes, que “não considero de forma alguma nossas divergências (sobre o § 1º) tão vitais a ponto de serem uma questão de vida ou morte ao partido. Certamente não morreremos por causa de uma cláusula infeliz nos estatutos!” (p. 250). Considerada por si só, essa divergência, embora revelasse nuances de princípio, jamais poderia ter provocado aquela divergência (na verdade, para falar sem hesitação, aquela cisão) que ocorreu após o congresso. Mas toda pequena divergência pode se tornar uma grande divergência se insistirmos nela, se for colocada em primeiro plano, se as pessoas começarem a procurar todas as raízes e ramos da divergência. Qualquer pequena divergência pode assumir uma enorme importância se servir como ponto de partida para uma guinada em direção a concepções equivocadas, e se essas concepções forem combinadas, em virtude de novas divergências adicionais, a atos anárquicos que guiem o partido à cisão.
[...] O pequeno erro de Mártov e Axelrod sobre o § 1º foi uma pequena rachadura em nosso vaso (como eu disse no congresso da Liga). O vaso poderia ser amarrado firmemente com um nó duplo (e não um nó corrediço, como foi mal interpretado por Mártov, que durante o congresso da Liga estava em um estado que beirava a histeria); ou todos os esforços poderiam ser direcionados para aumentar a rachadura e partir o vaso em dois. E foi isso que aconteceu, graças ao boicote e a semelhantes medidas anárquicas dos zelosos partidários de Mártov. [Lênin; grifos meus]
Busquei, nas últimas páginas, colocar minha visão sobre o rumo que devem tomar as questões de princípio em nosso Partido a partir desse XVII Congresso. Sem a unidade ideológica bem definida entre revolucionários marxistas-leninistas, qualquer Partido pode afundar no ecletismo e perder qualquer lastro na teoria revolucionária – impactando de maneira muitas vezes inescapável o desenvolvimento do Partido como uma força de fato revolucionária. Estabelecer com clareza nossos princípios é uma condição indispensável.
E, no entanto, diversas questões secundárias aparecem em nossas formulações. Separei de maneira bastante distinta isso no texto justamente porque gostaria de estimular e provocar os camaradas a fazerem esse esforço: quais são as questões principais e secundárias em nosso movimento? Certamente, alguns camaradas considerarão principal o que eu considero secundário, assim como o inverso. Acho correto que façamos o debate. Mas precisamos compreender, de maneira bastante clara, quais são nossos temas de princípio, aqueles que nos unem e sobre o qual se erige nosso Partido, e aqueles cuja aplicação não passa de tática, de movimento temporário e possível – ainda que certamente haja posições mais e menos corretas nesses assuntos (e arrisco dizer, posições cientificamente corretas também neles). Como algumas delas ganharam um imerecido papel de destaque em nossas discussões em algum momento (fenômeno que atribuo ainda a certa imaturidade de nosso Partido, de modo geral), tampouco poderia deixar de mencionar, ainda que de passagem, as posições que defendo em relação a elas. Não vou, é claro, me ater a problemas de método do nosso momento político (delegados natos, por exemplo), pois se uma questão de mérito político duradouro já pode ser considerada secundária, ainda mais os métodos dos nossos trabalhos – que são, quando muito, indiretamente políticos.
O jornal
Bem estabelecidos acima os problemas centrais para pensar um jornal político para todo o Brasil, nos cabe falar sobre o jornal no que ele tem de absolutamente secundário: seu nome. Eu particularmente não gostei do nome Palmares e fui dos que defendi contra na II Plenária Nacional. Certamente entendo e reivindico a importância histórica e o exemplo do Quilombo dos Palmares para a conformação da história de lutas das classes trabalhadoras brasileiras, tanto em seu aspecto simbólico, quanto seu aspecto político-militar. Avalio que chamar o jornal de Palmares guarda certa semelhança com o momento em que os revolucionários (Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Clara Zetkin etc.) rompem com o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) e formam a Liga Espártaco, dando o nome em homenagem ao líder da revolta de escravos na República Romana como forma de apontar esse vínculo histórico. Rapidamente os camaradas alemães se uniram a outras correntes comunistas e formaram finalmente o Partido Comunista da Alemanha.
Acho, no entanto, que temos uma outra tarefa com o jornal. A experiência de Palmares deve ser reivindicada pelo nosso Partido na compreensão da legitimidade e necessidade da resistência do povo negro, e propagandeada a partir de uma leitura histórica “a contrapelo”, como diz Walter Benjamin. Essa leitura cabe, considerando de uma maneira mais ligada à divisão de tarefas, à propaganda do Partido, mais do que à agitação. Sou dos que defendem que tenhamos uma revista teórica, conforme proposto no Caderno de Teses, e ficaria bastante satisfeito se essa revista (ou se uma de nossas revistas, sobretudo se for uma ligada diretamente às análises do desenvolvimento histórico do Brasil) tivesse esse nome. Nosso jornal, pelo meu entendimento, cumpre outra função: a de se apresentar sobretudo como instrumento de agitação e denúncia.
Analisando os nomes dos jornais de PCs pelo mundo afora, podemos encontrar alguns exemplos interessantes: o jornal do TKP se chama “Esquerda”; o do PC Argentino, “Orientação”; o do PC do México, “O Facão”; o do KKE, “O Radical”; o do PCTE, “Novo Rumo”; o do Partido Comunista Revolucionário da França (PCRF), “Intervenção Comunista”; o do PC da Venezuela, “Tribuna Popular”; o do Partido do Trabalho (PdA, Áustria), “Jornal do Trabalho”; o do PC da Finlândia, “Notícias do povo trabalhador”; do Novo Partido Comunista dos Países Baixos, “Manifesto”; do PC da Suécia, “O Alvo”. Lembrando também os nomes dos jornais bolcheviques, tivemos “Avante”, “Faísca”, “Proletários” e finalmente “Verdade”. São apenas exemplos, mas nos mostram algumas possibilidades.
Precisamos alterar o nome aprovado na II Plenária. Não tenho propostas diretas, mas me parece que devemos apontar para um nome mais programaticamente correto, que aponte para as tarefas atuais do proletariado brasileiro e internacional. “O Futuro”, retomando o nome da revista da UJC, é um bom nome; também é um bom nome “Em frente!”, proposto pelo camarada Doni em sua Tribuna. Novamente destaco: esse é um tema absolutamente secundário, não é matéria de princípio, mas acharia por bem ter uma adequação maior do nome do jornal.
O nome do nosso Partido
Engels teve de pronunciar-se sobre isto em ligação com a questão da inexatidão científica da denominação «social-democrata».
No prefácio à edição dos seus artigos da década de 1870 sobre diversos temas, principalmente de conteúdo «internacional» (Internationales aus dem «Volksstaat»), prefácio datado de 3 de Janeiro de 1894, isto é, escrito um ano e meio antes da morte de Engels, ele escrevia que em todos os artigos se emprega a palavra «comunista», e não «social-democrata», porque então se chamavam a si próprios sociais-democratas os proudhonistas em França, os lassallianos na Alemanha.
«... Para Marx e para mim — prossegue Engels — era, por isso, absolutamente impossível escolher, para designar o nosso ponto de vista especial, uma expressão tão elástica. Hoje as coisas mudaram, e assim a palavra» («social-democrata») «pode passar (mag passieren) ainda que continue a ser inadequada (unpassend, imprópria) para um partido cujo programa económico não é meramente socialista em geral, mas directamente comunista, e cujo objectivo político final é a superação de todo o Estado, portanto também da democracia. Os nomes de partidos políticos reais» (sublinhado de Engels) «porém, nunca estão completamente certos; o partido desenvolve-se, o nome permanece».
O dialéctico Engels, no ocaso dos seus dias, permanece fiel à dialéctica.
“Marx e eu, diz, tínhamos um belo nome para o partido, cientificamente preciso, mas não existia um verdadeiro partido proletário, isto é, de massas. Agora (fim do século XIX), existe um verdadeiro partido, mas a sua denominação é cientificamente inexacta. Não interessa, «passa», desde que o partido se desenvolva, desde que a imprecisão científica da sua denominação não lhe seja escondida e não o impeça de se desenvolver na direcção justa!”
Talvez um espirituoso qualquer se pusesse a consolar-nos também a nós, bolcheviques, à maneira de Engels: temos um verdadeiro partido, ele desenvolve-se admiravelmente; «passa» também uma palavra tão absurda e feia como «bolchevique», que não exprime absolutamente nada, senão a circunstância puramente casual de que no Congresso de Bruxelas-Londres de 1903 tivemos a maioria... Talvez agora, quando as perseguições de Julho-Agosto contra o nosso partido pelos republicanos e a democracia pequeno-burguesa «revolucionária» tornaram a palavra «bolchevique» tão honrosa entre todo o povo, quando elas marcaram além disso um histórico e imenso passo em frente dado pelo nosso partido no seu desenvolvimento real, talvez eu próprio hesitasse na minha proposta de Abril de mudar a denominação do nosso partido. Talvez propusesse aos meus camaradas um «compromisso»: chamarmo-nos partido comunista, mas conservar entre parêntesis a palavra bolchevique ...
Mas a questão da denominação do partido é incomparavelmente menos importante do que a questão da atitude do proletariado revolucionário em relação ao Estado. [Lênin]
Fico com Lênin e sua última frase. O nome do Partido é “incomparavelmente menos importante” do que todo o resto que estamos debatendo em nosso Congresso.
Entendo que, do ponto de vista da história do Partido, seria cientificamente exato que nosso nome fosse PCB-RR, mas convenhamos que isso não passa de uma denominação provisória, contanto que mantenhamos viva a chama da luta pela Reconstrução Revolucionária do Partido Comunista em nosso país – que é o que verdadeiramente importa. Nomes como PC dos Trabalhadores do Brasil, PC Brasileiro Revolucionário, ou pura e simplesmente “PC”, todos me parecem iguais e qualquer critério pretensamente “estético” sobre eles me parece 100% secundário. Passemos.
Sobre questões organizativas pontuais
Falarei sobre trẽs questões organizativas bastante pontuais e secundárias: o lugar da UJC no Partido; a questão dos recrutamentos; e a existência dos assim-chamados “Processos Disciplinares”.
Alguns camaradas talvez considerem que eu aqui subestimo o peso de uma decisão como a da articulação orgânica da UJC com o Partido. Essa proposta foi debatida na Tribuna de Debates antes e durante do Caderno de Teses ser enviado ao conjunto da militância e, portanto, é um dos pontos em que o próprio debate das Tribunas influenciou a escrita e aprovação do Caderno. A proposta indicada pela II Plenária é bastante condizente com a proposta do camarada Felipe Carvalho, de articulação orgânica da UJC com o Partido, de modo a eliminar duplicidades e ao mesmo tempo manter a UJC como ferramenta para os trabalhos especificamente de juventude no todo de nossas tarefas revolucionárias como Partido.
A vida prática e as conexões de uma organização política dizem mais sobre ela do que seus trâmites internos, que variam conforme as necessidades conjunturais, baseados, é claro, nos princípios que busquei delimitar na parte anterior. Se isso já é verdade para um Partido, que varia internamente com extrema flexibilidade, conforme necessidades das lutas de classes, mesmo que mantendo princípios organizacionais básicos (ainda que seja verdade que não nos acostumamos a essa flexibilidade na prática e nos acostumamos, no velho PCB, a um senso de pertencimento quase identitário à “minha célula”, “meu CR” etc.), é ainda mais verdade para uma organização de juventude, que deve continuar a ser a expressão juvenil do Partido Comunista. Gostaria de dialogar aqui com as Tribunas de alguns camaradas, pois me parece que há dois erros crassos nas discussões sobre esse tema.
O primeiro é o de dissolução da UJC inteiramente, como propõe o camarada P. Acácio. Como na questão do nome para os bolcheviques, o compromisso com a existência de uma fórmula reconhecida pelas bases é uma questão importante, pois trata justamente de manter vínculos e conexões com setores do proletariado com os quais desenvolvemos trabalho há muito tempo. Se infelizmente a cisão nos obriga a mudar o nome do Partido para manter viva a Reconstrução Revolucionária, isso não ocorre com a UJC, que continua tendo esse reconhecimento (ainda que pífio, é claro, considerando o conjunto do proletariado brasileiro). Tendo a concordar com o camarada Gabriel Tavares que isso seria “jogar o bebê fora com a água do banho”.
O outro erro, igualmente crasso, é a transposição mecânica de experiências históricas que fazem os camaradas Tavares e Machado em sua Tribuna. Pecam por anacronismo: os bolcheviques, por diversas razões como a clandestinidade, mas também pela idade de seus próprios militantes, simplesmente não tinham uma juventude antes da revolução. Depois da revolução, surgem inúmeros grupos de juventude organizada na Rússia Soviética, que o PCR(b) faz questão de buscar organizar sob uma única forma, a da União das Juventudes Comunistas Leninistas (Komsomol), como organização independente do Partido. E no mesmo texto que os camaradas citam, não citam a frase imediatamente posterior, em que Lênin afirma que “Como para uma perfeita direção da luta revolucionária é necessário o máximo de centralização e unidade, nos países onde a evolução histórica colocou a juventude na dependência do partido, essas relações devem ser mantidas a título de regra” e completa dizendo que “Uma das tarefas mais urgentes e mais importantes da juventude é se desembaraçar de todos os resquícios da ideia de seu papel político dirigente, remanescente do período de absoluta autonomia”. Estou convencido de que seria um passo atrás no nosso processo de Reconstrução Revolucionária voltar a separar de maneira brusca a UJC do Partido – inclusive no que isso implicará nos processos democráticos internos, considerando que a UJC está organicamente integrada neste Congresso e sua separação organizativa teria implicações diversas para nosso próximo Congresso.
Como afirmei antes, sou partidário da visão apresentada pelo camarada Felipe e pelo Caderno de Teses. É ela que melhor garante o desenvolvimento da unidade ideológica que pretendemos com a Reconstrução Revolucionária do PCB. Eu entendo as angústias dos camaradas, uma pela absoluta eficácia interna (que despreza as especificidades dos movimentos de juventude); a outra, de indefinição ideológica e burocratismo (que despreza, por sua vez, o próprio fato de que o Partido deve se beneficiar organicamente dos avanços ideológicos que se construíram na UJC no período anterior).
E, apesar de tudo isso, considero essa uma questão menor, absolutamente secundária. Aos camaradas que, por ventura, queiram eleger essa questão como uma questão de princípio, sugiro repensarem suas posições – os diversos PCs mundo afora tiveram experiências diversificadas com suas juventudes (incluindo nós mesmos, que agora estamos num quarto ou quinto modelo de JC/UJC e talvez caminhemos para um sexto modelo) e nenhuma das três posições apresentadas pelos camaradas me parece absolutamente incorreta, em matéria de princípio.
A questão dos recrutamentos é a segunda questão organizativa que acho importante pontuar, ainda que seja um tema secundário. Tivemos um processo de consolidação pós-cisão com grande número de camaradas. Ainda assim, esses números não revelam, por si só, um avanço em nossa unidade ideológica e em nossa capacidade prática de intervenção na sociedade. É possível até que haja aqueles que, entre nós, nem sequer leram o Manifesto em Defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB ou que, não concordando com o Manifesto, ainda assim acharam por bem se desvincular do velho PCB por questões secundárias, como as organizativas. É compreensível, assim, que haja camaradas saindo nesse nosso processo de esclarecimento e repensando suas vidas e sua militância. É sempre uma pena quando não conseguimos fazer avançar ideologicamente alguns quadros, muitas vezes de grande capacidade, e os perdemos para outras posições ideológicas.
Vejo, assim, muitos camaradas preocupados (corretamente) com o crescimento do Partido e com afastamentos, desligamentos e um refluxo de nosso trabalho prático. Incorreto seria, e esse é meu ponto aqui, achar que o que precisamos é puramente crescimento. Já cansei de ouvir, desde que entrei na UJC, pautas em reuniões sobre “recrutamento” que se definem não pela necessidade de consolidar o recrutamento de trabalhadores que já estão compondo lutas conosco, mas sim de buscar, de maneira meio imediatista e artificial, aumentar nossas fileiras. No velho PCB, com o verdadeiro inchaço do Partido nos últimos anos, isso era visto com bons olhos – elementos ideológica e praticamente despreparados eram recrutados para o Partido de maneira quase sem critério e não havia nem experimentação deles nas lutas e nem formação teórica no seu processo. O famigerado documento Preparar o Partido para o Novo Ciclo, que é parte do abandono da Reconstrução Revolucionária pelo PCB, aponta isso – um caráter confuso entre as estruturas internas e externas ao Partido, um desprezo pela necessidade de estabelecer com clareza as fronteiras do Partido e uma gana pela manutenção de um controle burocrático sobre a UJC, a UC e os Coletivos.
Penso que é um grande avanço (que ainda não vi debatido em Tribunas) a existência dos “núcleos”, estruturas externas ao Partido, sobre as quais o Partido não tem qualquer controle burocrático e servem, aberta e explicitamente, como ferramentas de experimentação e formação de novos militantes antes de aderirem ao Partido. Devemos recusar o ingresso em nosso Partido de militantes ainda não preparados teórica e praticamente, sem desprezar, obviamente, seu trabalho prático. Não queremos “amigos do Partido” que simplesmente contribuam com dinheiro mensalmente; temos que querer militantes ativos, candidatos ao ingresso no Partido, que saibam exatamente sua relação com o Partido. Experimento semelhante é utilizado largamente na Juventude Comunista da Venezuela e dá como resultado a formação de uma juventude que cresce a passos sólidos, ideologicamente bem preparada e pronta para o combate. Esse modelo é um dos modelos possíveis de recrutamento (por isso figura como parte secundária desta Tribuna), mas devemos desenvolver algum modelo.
O terceiro e último tema organizativo pontual que pretendo abordar é sobre os assim-chamados “Processos Disciplinares”. Infelizmente, tivemos sérios problemas com as atas da II Plenária, que foram compiladas a partir de transcrição simultânea por um aplicativo, e não tivemos quaisquer condições no CNP para corrigir, editar e publicá-las. Alguns dos debates que trago aqui foram feitos lá e poderíamos ter avançado muito mais se eles tivessem sido estudados de perto pela militância. Um desses debates é sobre a excrescência a que chamamos de Processos Disciplinares no velho PCB.
O processo de construção da disciplina partidária, para os comunistas, é um processo árduo, que envolve desenvolver um determinado desprendimento da “máxima liberdade do indivíduo” em prol do cumprimento organizado das tarefas e da construção de uma determinada coletividade. Falar em disciplina para os comunistas, no entanto, é muito diverso de falar de disciplina para os militares, por exemplo: nossa disciplina não é uma disciplina imposta, mas uma disciplina voluntária, uma disciplina consciente de sua função no desenvolvimento das lutas de classe. Hoje, vivemos em uma situação de maior abertura democrática e nossa disciplina ainda está muito longe de ser o que ela precisa ser; pior ainda estaríamos se estivéssemos em uma situação de fechamento de regime, que pode vir a acontecer, e nossa falta de disciplina pudesse custar as vidas de nossos camaradas, pudesse custar o andamento de lutas da nossa classe.
Como uma disciplina consciente, nos marcos do centralismo democrático, sua principal fonte de existência são as próprias condições subjetivas de nossa militância. Sem o debate franco e aberto, sem as discussões feitas sobre os temas principais, sem a recusa a tergiversar sobre nossos problemas, essa disciplina não se desenvolve, porque ela não encontra respaldo em uma nova unidade ideológica que precisamos criar. Isso significa que, no curso de nossas discussões e, principalmente, de nossa prática partidária, teremos diversos desvios, erros, descaminhos de militantes coletiva e individualmente. “Como corrigir esses desvios?” é a pergunta para a qual alguns camaradas nossos ainda respondem “com processos disciplinares”. Essa resposta me parece trocar o principal pelo secundário, novamente, e devemos aproveitar esse novo momento para limpar o terreno também nessa questão.
No velho PCB, os processos disciplinares se multiplicavam aos baldes no último período. Isso por si só demonstrava o quão frágil era nossa unidade ideológica e, ainda, que diversas questões políticas eram tratadas como “infrações à disciplina”. Pergunto sinceramente, camaradas: em quantos casos vocês viram um processo disciplinar efetivamente servir para corrigir os desvios de um camarada? Gastávamos dias, semanas, às vezes meses com “oitivas” absolutamente contraproducentes e burocráticas, com “lisuras do processo” dignas de um série estadunidense de advogados e, no geral, elas não resultavam em absolutamente nada de novo: as pessoas dispostas a corrigir seus erros os corrigiam sem os processos disciplinares e as indispostas não os corrigiam nunca. Ainda piores eram as sanções aplicáveis, em especial os “afastamentos” dos organismos. Pergunto novamente: alguém crê, em sã consciência, que afastar um militante pode contribuir de qualquer maneira que seja para sua correção? Como é possível avançar ideologicamente sem a dinâmica do próprio Partido, sem seus debates e sem suas formas de convencimento, crítica, autocrítica, formação etc. etc.
Tudo isso me parece um conjunto de excrescências burocráticas, que não devem ter lugar no nosso Partido. De nada adianta, na prática, simular uma neutralidade jurídica sobre os temas disciplinares quando eles, efetivamente, são parciais e políticos – e isso é correto, corretíssimo, do ponto de vista de um partido político! Nenhum problema é disciplinar de maneira apartada dos problemas ideológicos que tivermos. O processo de desenvolvimento da disciplina consciente deve ser simples e eficiente: é só a discussão política entre camaradas, incluindo o pleno direito ao contraditório, que pode nos corrigir uns aos outros. Mas qualquer um que seja considerado incorrigível não deve compartilhar das nossas fileiras. E ponto. Esse é o fundamento pela inexistência de processos disciplinares na proposta de Estatuto desenvolvida pela II Plenária e eu o considero da mais correta visada. Como todas as questões secundárias do nosso Congresso, essa também é uma sobre a qual certamente podemos manter entre nós as nossas divergências, são questões apenas de método. Eu defendo métodos mais simples e eficientes do que os que tínhamos anteriormente.
O partido fora do divã
Por fim, encerrando a lista dos temas secundários, quero falar sobre a forja dos nossos militantes para a luta revolucionária. Diversos camaradas, com as melhores das intenções, têm debatido isso desde que eu entrei na UJC em 2015. Em 2018, os camaradas Boina e Gustavo, que compunham à época a Coordenação Estadual da UJC em SP, coletaram e elaboraram materiais sobre essa questão, que foram sistematizados numa apostila de saúde mental. Com base em reflexões das teorias da determinação social do processo saúde-doença, chegaram às seguintes conclusões:
É razoável concluir que, após tudo o que foi exposto e demonstrado, a atividade militante não constitui as principais determinações do adoecimento mental. Ficou bem estabelecido que os elementos, processos e mecanismos que determinam a saúde mental dos trabalhadores em geral são derivados da forma de organização social da produção que o capitalismo impõe à sociedade:
• Exploração da capacidade física e mental dos trabalhadores na linha de produção gerando desgaste físico e mental.
• A submissão dos trabalhadores a uma lógica organizativa e produtiva que está totalmente alheia às suas necessidades e interesses concretos.
• O cerceamento da capacidade de organização coletiva dos trabalhadores para estes determinarem, mesmo que minimamente, suas vidas em sociedade.
• A coação, através da condição de não-proprietários dos meios de produção e de vendedores de sua capacidade de trabalho enquanto mercadoria para garantir sua sobrevivência, dos trabalhadores a um modo de vida cada vez mais individualizado e atomizado.
• O cerceamento do acesso dos trabalhadores ao consumo de riquezas produzidas socialmente garantem uma reprodução da vida mais confortável e menos desgastante.
São esses processos e mecanismos, gerados pela organização social capitalista, que determinam, em última análise, o sofrimento psíquico e mental. A militância organizada, de perspectiva revolucionária e, portanto, coletiva, é uma atividade que vai na contramão das tendências adoecedoras determinadas pelo modo de produção capitalista: afinal se fundamenta na organização, no trabalho, formulação e deliberação coletiva dos trabalhadores para que estes desenvolvam ferramentas para enfrentar, acabar e superar o parasitismo imposto pela classe dos capitalistas; ato que, individualmente, é impossível de um trabalhador realizar.
Por que então observamos camaradas padecendo de sofrimento psíquico e, por isso, se afastando da militância, muitas vezes atribuindo a ela o seu adoecimento? Para além dos processos centrais de adoecimento determinados pela produção capitalista aqui já listados, há dois principais motivos:
1. Uma organização comunista está ainda inserida em uma sociedade de classes e, internamente, poderá expressar luta de classes através da luta política interna e, consequentemente, das práticas organizativas adotadas internamente para garantir o funcionamento da organização;
2. A militância externa à uma organização comunista (entidades, frentes e espaços que disputamos) é um espaço de enfrentamento e desgaste, além de mais um espaço de reprodução da ideologia burguesa; [Grifos meus]
Concordo absolutamente com as conclusões dos camaradas: não podemos confundir as determinações sociais estruturais e superestruturais do capitalismo com seus reflexos e permanências dentro da nossa organização – inclusive concordo com eles no que é o cerne da “solução” (ou da melhoria) disso:
Uma forma em que o individualismo se manifesta está na divisão de trabalhos e na sobrecarga de camaradas. A inconstância na realização de tarefas, o não cumprimento de prazos, se negar a realizar tarefas por “não gostar” e diversas outras formas de sobreposição do “eu” sobre as tarefas da organização são atitudes que resultam na sobrecarga de tarefas em algumas pessoas. A vasta maioria dos militantes têm, também, que exercer um trabalho e se submeter às condições de adoecimento das quais já tratamos. Qualquer forma de sobrecarga na militância vai potencializar o sofrimento mental da militância. Por isso, é fundamental a divisão revolucionária do trabalho, como manifestação prática da disciplina comunista.
Mas isso nos leva a algumas reflexões um pouco menos confortáveis sobre esse tema do que gostaríamos.
A primeira dessas reflexões diz respeito ao caráter de nosso Partido como um instrumento para a direção do proletariado na luta revolucionária. Essa tarefa é efetivamente muito desgastante e dura, e não propicia condições particularmente benéficas para a saúde mental. Pensemos: quais são as condições de saúde mental de um militante clandestino num possível (talvez provável) novo fechamento de regime no Brasil? Quais são as condições de saúde mental em uma guerra civil? E a pergunta que nos interessa: como forjar militantes para um Partido que terá essas tarefas? Como forjar um exército inabalável de militantes revolucionários, para qualquer que seja a tarefa que terá que enfrentar na luta de classes?
A segunda dessas reflexões é sobre um caráter “para dentro” a que algumas posições sobre esse tema levam. Uma das contribuições anônimas a nossa Tribuna lê a contribuição do camarada Z. Sanchez nessa chave:
Quando se fala de praticar a possibilidade do socialismo no cotidiano, não podemos nos limitar a pensar apenas as tarefas de militância como os objetivos a serem cumpridos. Além de tudo, nossos espaços de militância servem para que nós possamos quebrar as lógicas que são produzidas e reproduzidas no capitalismo. Se a sociedade atual nos compele a produzir e produzir, sem nos importarmos com as consequências dessa produção, o mesmo não pode (ou não deveria) se dar nos nossos espaços organizativos.
Tendo a discordar do camarada especificamente nesse sentido. Diferentemente do que muitas vezes víamos sob a chave do “militante comunista é o embrião do novo ser humano”[3], em uma perspectiva até mesmo moralista, o senso que temos que desenvolver entre nós é bastante prático – “praticar a possibilidade do socialismo” de maneira abstraída da construção do Partido como ferramenta do proletariado para o proletariado significa retomarmos um certo utopismo. Ou como diz Brecht:
II
Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
III
Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.
Íamos, com efeito,
mudando mais frequentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.
E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quiseram
preparar terreno para a bondade
não puderam ser bons.
Não é reproduzindo ideais morais abstratos de comunismo internamente que teremos qualquer sucesso externo – antes, o contrário: é fazendo um trabalho de conexão real com as massas que teremos o avanço ideológico necessário pontuado corretamente pelo camarada. Mas esse avanço será duro, truncado. Não podemos romantizar o que vai ser uma luta encarniçada, com risco de prisão, de tortura, de morte.
Por fim, também acho que temos que considerar por uma outra chave a questão também abordada pelo camarada anônimo e aprofundada pela camarada Natascha em sua Tribuna, que é a questão do “produtivismo” em nossas fileiras. Concordo com a camarada quando ela diz como uma lógica competitivista (por postos, tarefas, em busca de reconhecimento pessoal etc.) distorce nossa forma de organização e nossos objetivos, porque muda o foco do nosso trabalho, de coletivo para individual. Mas acho que é fundamental que construamos um partido com militantes intensamente produtivos, inclusive na medida em que temos que profissionalizar uma parte significativa dos nossos militantes para trabalharem exclusivamente para o Partido. Devemos formar nossos militantes, em especial os militantes proletários, para adquirirem mais capacidade de trabalho, para dividirem melhor as suas tarefas, para desempenharem tarefas com maior qualidade – e não apontar para um partido morno, em que o nível de produtividade de nossas tarefas seja definido espontaneamente pelas nossas dificuldades individuais.
Os documentos do XVII Congresso
Camaradas, coloquei esse trecho aqui, até mesmo de forma apressada, posterior ao término do texto. Eu assumi tarefa na comissão de sistematização de SP prévia ao Congresso e percebi, para minha surpresa, muitas confusões sobre o caráter de nossos documentos, reproduzindo inclusive alguns erros que já mencionei acima, na parte sobre o Programa do Partido. Acho que é preciso fazer novamente um alerta sobre isso, quase um apelo, para que tenhamos claras as opções que teremos em nosso Congresso. Fui derrotado nessa questão na própria comissão de redação dos documentos e trago isso como uma proposta para o conjunto da militância.
Defendo um grau de síntese em nossos documentos como nunca tivemos antes no velho PCB. Devemos a todo custo recusar o impulso que há em cada um de nós para estender infinitamente as explicações, os pontos do programa, os artigos do Estatuto (acima de tudo) e mesmo nas Resoluções. Digo isso porque temos que ter a clareza de que uma série de pontos devem ser, sim, absolutamente centrais na nossa formulação, mas que o excesso em matéria de texto joga contra nós.
Queremos um Estatuto como o do velho PCB e mesmo o da UJC, com infindáveis temas, com minúcias burocráticas, com prazos fixos (!), como uma cartilha ou uma Instrução Normativa da ABNT? Ou queremos um Estatuto que configure exatamente as regras para que nós possamos desempenhar com clareza nosso trabalho para fora, junto ao proletariado?
Queremos um programa que seja apreensível para o conjunto do proletariado como síntese de uma política revolucionária e uma estratégia socialista? Ou queremos uma infindável lista de pautas, como foi no último Congresso da UJC, que simplesmente afirmam lutas particulares, mas que não se relacionam com o todo (lutas particulares que, inclusive, podem exigir outras bandeiras programáticas a depender de seu avanço particular!), um documento que se parece mais com um programa eleitoral do que com um programa político de classe?
Queremos resoluções claras, precisas e sintéticas sobre os pontos principais de nossa atividade, com análises para fundamentar nossas ideias e com definições práticas para nossa ação? Ou queremos explicações redundantes, inchadas, que caberiam com muito mais conforto e espaço em publicações anexas, a serem feitas posteriormente, que poderiam, aí sim, explicar com toda a calma de 20, 40, 100 páginas cada um dos temas que se desdobram de nosso programa, de nossas resoluções, de nosso Estatuto.
Queremos, por fim, que nosso Congresso se detenha em minúcias, em detalhes, ou que chegue às grandes conclusões sobre os temas principais que temos a debater, e que possa debatê-los com qualidade, tempo, democracia?
Fica meu apelo: abandonemos de vez o impulso espontâneo para colocar em nossas discussões congressuais aquilo que queremos; abracemos conscientemente que nosso congresso deve se debruçar nas questões que precisamos definir.
IV
Resgatando e aprofundando a Reconstrução Revolucionária
A tarefa que está posta para nosso Partido não é pequena e não será fácil. Devemos compreender o processo que vivemos de maneira bastante objetiva e histórica, como ele é: temos a tarefa de manter viva a luta pela reconstrução de um verdadeiro Partido Comunista em nosso país, que tenha uma estratégia revolucionária clara, um programa claro, amplas conexões com o proletariado nacional e internacional e se dedique ativamente na unidade dos revolucionários internacionalmente, como o é a luta do próprio proletariado.
Resgatar e aprofundar o legado dos revolucionários comunistas no Brasil é a tarefa que se nos apresenta. Não podemos nos dar ao luxo de cuspir em nosso passado, como outras correntes com caráter mais pequeno-burguês em suas formulações fizeram – temos a tarefa de examinar criticamente o nosso legado, a nossa herança. Somos herdeiros da fundação do Partido Comunista – Seção Brasileira da Internacional Comunista de 1922. Certamente, não os únicos, mas aqueles que têm as condições de levar à frente um legado autocrítico que não renegue nossa história, mas que a coloque exatamente onde ela esteve, sem arroubos ufanistas, como costumávamos ver no velho PCB (o mau e velho pecebismo), e também sem a negação dos caminhos que fizemos até aqui, como comunistas brasileiros.
Outros Partidos não tiveram a mesma chance que nós, nesse sentido. Basta olhar para a fragmentação e confusão ideológica no comunismo italiano para percebermos como o liquidacionismo no PCI (que, aliás, foi fonte de inspiração para Roberto Freire e sua gangue) foi forte a ponto de não gestar diretamente uma alternativa revolucionária dentro de si. Outros, ainda, em busca de caminhos revolucionários (com boas intenções, inclusive!), desviaram-se para longe do marxismo-leninismo, para longe das conquistas da revolução de 1917 e da Internacional Comunista. Os academicistas do velho PCB nada compreendem dessa autocrítica, que exige um imbricamento real do intelectual com a organização: ao olhar com exterioridade e soberba os erros do PCB, desvinculando-se deles, não são capazes de ver como o reboquismo ao trabalhismo dos anos 1960 ressuscita no reboquismo à pequena-burguesia radical nos anos desde o golpe de 2016. Também os oportunistas do velho PCB nada compreendem dessa autocrítica, que exige um esforço verdadeiramente teórico que não se contente com a nostalgia pelos tempos do “Partidão”: ao olhar com desprezo pelos avanços teóricos (qualitativos) por seu apego à “gloriosa história” não são capazes, também eles, de ver como a linha do VI Congresso do PCB desemboca em Roberto Freire.
Uso novamente um exemplo internacional. Tive a tarefa de representar a UJC no Festival da KNE (a juventude do KKE) em 2022, junto com a camarada Lígia, então Secretária de RI da UJC. Os convidados internacionais, nós inclusos, fomos levados para uma volta no centro de Atenas, em alguns pontos em que se desenrolaram batalhas históricas dos comunistas contras as forças da ocupação nazista e depois britânica na cidade. O último ponto de parada foi em uma esquina simplória, sem nenhum monumento ou grande espaço político da Grécia. O camarada historiador que nos explicava os pontos históricos disse que o prédio da esquina (uma construção de uns três ou quatro andares) foi usado como casa de torturas, especialmente contra as militantes mulheres do KKE, depois da rendição das armas assinada pelo partido em 1945, no Tratado de Varkiza, em que a Frente de Libertação Nacional e o Exército de Libertação Popular Grego (EAM-ELAS, na sigla em grego) aceitaram compor um governo de unidade nacional depois da expulsão dos invasores. O tour terminava ali porque o KKE achava importante demonstrar aos convidados internacionais que de nada vale reivindicar a história se não souber criticar seus próprios erros e aprender com eles. As posições contrárias à colaboração com qualquer governo burguês, que o KKE hoje sustenta, vêm dessa autocrítica.
Nós temos a oportunidade de seguir caminho semelhante. Devemos compreender os nossos erros como legatários do PCB e aqueles dispostos a dar consequência à sua Reconstrução Revolucionária. Não podemos ver o processo em que estamos como um “recomeçar do zero”, mas como a autocrítica de uma série de erros que nós cometemos no passado, distante ou recente. Não podemos cometer nossos próprios erros do passado e devemos analisar cientificamente suas causas, a fim de alterá-las em nosso presente e futuro. Nosso Congresso Extraordinário é um primeiro passo para isso.
O período em que vivemos é esse: o período de observar com cientificidade os dramas que o MCI acumula nas últimas décadas de contrarrevolução e saber dar novas respostas para os nossos problemas. Só assim poderemos afirmar, dentro de alguns anos, que passamos da fase de Reconstrução Revolucionária a uma fase efetiva de Construção Revolucionária; as balizas defendidas pelo camarada Landi sobre isso, ainda no XVI Congresso, seguem vigentes:
quando termina a Reconstrução e se inicia a Construção Revolucionária do partido, propriamente dita? Buscar uma cifra exata, um indicador estatístico, seria uma tolice. Mas, decerto, um dos critérios que devem nos orientar nessa apreciação é o quantitativo, combinado a algumas qualidades: enquanto o partido revolucionário não seja sequer predominante entre o conjunto das forças revolucionárias; e enquanto seja tão pouco inserido nos setores estratégicos do proletariado que não pode, efetivamente, disputar as palavras de ordens e a direção prática em quase todas as lutas de massas contra a política da maioria reformista do movimento operário; então, em um tal quadro, dificilmente poderíamos afirmar que está superada a etapa de Reconstrução Revolucionária.
Se seguirmos esse rumo, poderemos alcançar a vitória. Vida longa ao Partido Comunista!
[1] Sugiro constantemente aos camaradas que estudem a história do PC do México, do TKP, do PCTE da Espanha, do KKE, entre outros, para entendermos os diversos processos de recuperação de uma estratégia revolucionária depois das lambanças eurocomunistas no pós-Segunda Guerra.
[2] Faço aqui uma breve digressão, me apoiando em algumas formulações da Holly Lewis, em Politics of Everybody: não é científico utilizar as mesmas formas de desenvolvimento de expressões de gênero e sexualidade para toda e qualquer sociedade e a autora sustenta essa visão ao discorrer, principalmente no trecho da página 125 em diante, sobre diferentes expressões de gênero e visões sobre o espectro de gênero e sexualidade em relação ao substrato fisiológico humano em sociedades e épocas diferentes. O capitalismo, no entanto, universalizou em grande parte o desenvolvimento particularmente europeu do sistema de gênero e orientação sexual e, por isso, falo nesse desenvolvimento histórico; ele não é certamente o único, mas é seguramente o predominante hoje (mesmo considerando as particularidades dele), relegando outros sistemas de generificação para um lugar residual na sociedade capitalista moderna.
[3] “O que é o nosso Partido?”, do dirigente do PCB-CC, Lucas Silva