'O Partido não é um Leviatã' (Zenem Sanchez)

A classe revolucionária surge através de um processo de lutas; lutas econômicas contra os patrões e os governantes, lutas ideológicas para desvencilhar-se da ideologia burguesa e lutas políticas buscando interferir no poder e na organização da sociedade.

'O Partido não é um Leviatã' (Zenem Sanchez)

Por Zenem Sanchez, da célula de São Carlos, para a Tribuna de Debates Preparatória para o XVII Congresso Extraordinário.

(Este texto foi enviado para ser publicado na página nacional do PCB no dia 17 de maio deste ano, muito antes do início da crise partidária que acompanhamos atualmente. Sua publicação foi negada sob justificativa de evitar exposição pública de debates e a resposta orientou aguardar a efetivação do Boletim Interno de Debates, o qual até hoje não foi efetivado. Como recentemente aderi ao Manifesto em defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB e ingressei nas fileiras do PCB-RR, aproveito a oportunidade para compartilhar as presentes reflexões com os revolucionários de todas as organizações, sempre de peito aberto para receber críticas e continuar refletindo sobre a construção de um instrumento revolucionário.)

Para Hobbes, de forma bem simplificada (e até grosseira), em seu estado de natureza, o homem é egoísta e buscará defender sua liberdade, propriedade (além de conquistar a propriedade do outro), família e iniciará uma guerra de todos contra todos. O homem é o lobo do homem. A solução dessa guerra eterna passa por um contrato social: abrir mão da liberdade irrestrita e submeter-se à um novo corpo que concentrará o poder: o Estado Leviatã. Consciente ou inconscientemente, muitos militantes comunistas aplicam de forma equivocada a mesma lógica hobbesiana acima ao Partido Político. O Partido Comunista torna-se um Leviatã, uma nova criatura externa aos próprios revolucionários e a classe, em que ser comunista está em aceitar o contrato do "centralismo democrático" (entre aspas, porque de centralismo democrático não tem nada).

Essa lógica leva a considerar o Partido Político não como um instrumento dos revolucionários e da classe trabalhadora, mas como um corpo novo, externo, mágico e puro — detentor da verdade revolucionária. Nessa forma de ver o partido e a luta revolucionária, os militantes revolucionários já estão prontos (ou deveriam estar) e o Partido é o bastião da verdade revolucionária. Basta acertar algumas questões e resolver o verdadeiro problema: a ignorância da classe trabalhadora.

Assim, todos os debates e polêmicas que tocam a revolução devem ser internos ao Partido. Primeiro, porque não interessariam à classe trabalhadora e porque ela não teria capacidade de compreender tais debates. Segundo, porque polemizar publicamente é mostrar a fraqueza do Leviatã comunista e sua falta de  "unidade ideológica". O caminho tomado, portanto, é a realização dos debates internos, encontrando a verdade revolucionária, para depois ir até a classe e educá-la.

O centralismo democrático, importante instrumento dos revolucionários, aparece como um depurador entre "revolucionários" e "oportunistas" e o momento do novo contrato formador do Leviatã: "eu abandono minha posição individual oportunista e respeito a decisão partidária, me afirmando como verdadeiro comunista". Pouco importa as condições do debate, seus conteúdos, suas sínteses, seus reflexos na consciência dos militantes e da classe. O importante é a urgente centralização da verdade revolucionária para levá-la para a classe. Ser comunista deixa de ser uma prática cotidiana conectada com um objetivo final revolucionário e passa a ser submeter-se ao Levitã vermelho. O que seria uma exigência de "não exposição" pública para blindar o Leviatã Vermelho, transforma-se também numa exigência de submissão a um abstrato centralismo democrático, que não é construído concretamente através de uma permanente comunicação e um processo de crítica-autocrítica entre bases e direções, mas uma fidelidade religiosa ao Partido. E assim, os militantes revolucionários vão abaixando suas cabeças como súditos para o novo soberano, o Partido Comunista — que no fim nada mais será que a expressão da vontade de alguns poucos burocratas.

Essa lógica traz gigantescos danos para o movimento revolucionário. Os debates são suprimidos e controlados. As polêmicas são vistas como oportunismo e tentativas de divisionismo. Cresce a desconfiança e a tensão interna. E o Partido torna-se um instrumento preso em si mesmo. Vamos nos desvencilhar-se desses equívocos.

É necessário abandonar essa equivocada concepção do Partido como algo externo à classe. Não existe essa baboseira de que a classe trabalhadora está em um lugar X e lá longe em um lugar Y estão os comunistas e a revolução acontecerá quando os comunistas forem até a classe trabalhadora, elevarem sua consciência e dirigirem a tomada do poder. Os comunistas fazem parte da classe, se não completamente economicamente falando, pelo menos politicamente. O Partido Revolucionário surge e se forma no processo de luta da classe. É a partir das possibilidades abertas pelo poder coletivo das massas trabalhadoras, de paralisar a sociedade burguesa, conquistar o poder político e reorganizar a sociedade, que surgem um conjunto de trabalhadores que abraçam essa possibilidade, se juntam e organizam uma coletividade política chamada Partido Comunista.

Os comunistas não são seres iluminados fora da classe que carregam a verdade. São integrantes da classe que, no processo da vida na sociedade capitalista e no processo de lutas contra as mazelas cotidianas, compreenderam a possibilidade de ruptura com o atual sistema e resolveram praticar essa possibilidade no seu cotidiano. Os comunistas são aqueles que compreenderam que a solução para nossos problemas é o socialismo-comunismo. E essa formação de elementos revolucionários dentro da classe resulta do próprio processo de vida e luta da classe, da contradição da consciência entre a ideologia dominante e realidade de fato, do estudo e da prática.

O que é possível falar de externo à classe poderia ser a teoria revolucionária. Mas não no sentido de ser construída fora da classe e levada para ela, muito menos no sentido de ser produto dos intelectuais que agora os trabalhadores precisam aprender. Mas na realidade, no sentido de que a teoria revolucionária é a consciência buscando superar o particular, a situação particular de vida e luta proletária, para compreender a totalidade social, a relação entre as demais classes e seus interesses na formação social, o Estado e seu papel enquanto instrumento de dominação, a relação da vida cotidiana com o funcionamento de um modo de organização econômico, o antes, o agora e as possibilidades de futuro — dentre elas, a possibilidade de não ser mais proletário através do socialismo-comunismo.

A revolução é produto da classe revolucionária, e essa classe surge nos processos da luta de classes. Poderiam me acusar: "economicista, espontaneísta!". Percebam que não disse que a classe revolucionária surge no processo das lutas econômicas, nem disse que a classe revolucionária surge misticamente de forma espontânea quase como um instinto interno da classe. O que estou afirmando é: a classe revolucionária surge através de um processo de lutas; lutas econômicas contra os patrões e os governantes, lutas ideológicas para desvencilhar-se da ideologia burguesa e lutas políticas buscando interferir no poder e na organização da sociedade. É desse processo de lutas que se forma a classe revolucionária. E existe um elemento dentro da classe que surge e se desenvolve nesse processo que, sem ele, não seria possível a classe revolucionária se concretizar: o partido revolucionário.

O Partido Revolucionário é um instrumento de reunião e organização da ação dos elementos mais conscientes da classe. A classe revolucionária surge da interação e fusão entre a classe e esses elementos revolucionários no processo de lutas. O Partido é esse novo ser coletivo revolucionário surgindo dentro da classe, interagindo e buscando fundir-se organicamente com ela. E os revolucionários são forjados nesse mesmo processo: erram, aprendem, entendem as experiências e angústias da classe, impulsionam a organização, são derrotados, vencem, buscam colher as experiências da luta, refletem criticamente sobre elas, estudam, discutem as bandeiras, buscam avançar além do particular e refletir sobre o país e a dinâmica internacional, etc. Se os militantes comunistas precisam ser intelectuais orgânicos da classe, não é porque um tipo específico de intelectualidade "revolucionária" garante essa organicidade; mas porque esse intelectual é forjado nos processos de luta junto com a classe, organicamente. Inclusive, o partido revolucionário precisa também se submeter a crítica da classe.

E durante esse processo, o debate, a troca de experiências e impressões, o confronto de concepções e acúmulos teóricos e políticos é fundamental. E a formação da classe revolucionária a partir da interação entre a classe e o partido revolucionário nas lutas depende da formação de uma nova consciência coletiva revolucionária. É nisso que reside o núcleo fundamental do centralismo democrático. A democracia não é uma mera formalidade. É um instrumento de construção ideológica e política dos revolucionários — e da classe. É nos debates democráticos que sintetiza-se a nova consciência coletiva surgida através da prática revolucionária, da experiência das lutas e do estudo teórico. E o centralismo é a compreensão da necessária unidade de ação para a prática revolucionária, surgida não de uma disciplina formal, mas da real possibilidade de debates, do confronto de ideias, da concordância e discordância conscientes, do avanço dessa consciência coletiva revolucionária. Um partido que tem medo de debates e polêmicas está fadado a travar o processo da luta revolucionária. E um partido que tem medo de realizar esses debates de forma pública, com a classe, é um partido que não entendeu seu papel e não conseguirá cumprir seu potencial de vanguarda.

Enganam-se aqueles que acreditam que os militantes da base e a classe irão aprender quando chegarmos para eles com a "verdade pronta". Não é possível compreender a justeza da posição X desconectada da polêmica com a posição Y. No máximo, é possível repetir que nem papagaio que X é melhor. Mas o aprendizado e o conhecimento, o avanço da consciência, constroem-se no processo, na contradição, no debate, na polêmica, na experiência e na educação coletiva. Não é abaixando a cabeça para um suposto Leviatã do Centralismo Democrático que nos tornamos mais ou menos revolucionários. Nos tornamos revolucionários no processo das lutas, aprendendo, disputando, praticando e debatendo, nos educando coletivamente, entre nós revolucionários e entre nós partido-classe.

Um Partido Revolucionário que restringe os aspectos democráticos de sua construção, está fadado ao fracasso. Sem uma intensa circulação de informações, trocas constantes entre base e direção e espaço para debates e polêmicas, o grande conjunto da militância nunca conseguirá se constituir enquanto sujeito político. Muitos militantes acabam enxergando disputas políticas fundamentais enquanto "briguinhas" de dirigentes e afirmam que o fundamental é o trabalho prático e o trabalho de base. É claro que o trabalho prático e de base é fundamental. Mas esse fenômeno é expressão de uma organização pouco democrática em que os sujeitos da construção política são as direções (pois tem acesso as informações fundamentais) e as bases militantes são transformadas em objetos da política dessas direções. Os próprios militantes acabam recusando o debate político e fetichizando sua condição de mero executores. Como poderia uma organização, em que os próprios militantes não são sujeitos da política que executam, conseguir realizar um processo revolucionário em que a tarefa é construir uma interação com nossa classe no sentido de transformá-la em sujeito político?

O Partido não é um Leviatã.