'Trabalho de cuidado: setor estratégico do proletariado' (Leonardo Vinhó)

A Teoria da Reprodução Social busca retomar e desenvolver uma proposição pouco investigada em 'O capital': a reprodução da força de trabalho.

'Trabalho de cuidado: setor estratégico do proletariado' (Leonardo Vinhó)
Cartaz do estúdio e coletivo feminista londrino “See Red Women's Workshop” intitulado “Sozinhas somos impotentes, juntas somos fortes”, 1976. Na imagem, lê-se em inglês: “o que você fez hoje, meu bem?” [*]

Por Leonardo Vinhó para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

“§76 É preciso reconhecer o protagonismo de mulheres negras, mães e trabalhadoras nas ocupações urbanas e demais frentes de movimentos de luta por moradia. Quanto mais buscarmos compreender a articulação dessas camadas da população nas lutas urbanas, e as implicações das opressões na articulação das formas organizativas da classe trabalhadora, mais qualificada será a nossa possibilidade de intervenção nessa frente de atuação.”

— Caderno de teses ao XVII Congresso (Extraordinário) do Partido Comunista Brasileiro - Reconstrução Revolucionária, Resoluções de Estratégia e Táticas

Esta tribuna objetiva defender a inclusão das trabalhadoras de cuidado (em especial donas de casa e trabalhadoras domésticas) enquanto setor estratégico do proletariado nas resoluções congressuais da Reconstrução Revolucionária (RR), nos termos e critérios apresentados no caderno. 

Na seção “sobre o movimento feminista”, do caderno de estratégia e táticas, o Comitê Nacional Provisório (CNP) se refere à linha do partido como sendo a da corrente do feminismo marxista. Esta, por sua vez, é fundada em torno da Teoria da Reprodução Social (TRS). Existe, porém, um descolamento entre a proposição da TRS e a ausência, em primeiro lugar, de uma exposição de seus conceitos básicos e, em segundo lugar, de desdobramentos consequentes em termos de estratégia, táticas e realidade brasileira. Para defendermos a inclusão das trabalhadoras do cuidado, então, é à TRS que precisamos nos referir primeiramente.

“Quem produz o trabalhador?”

A Teoria da Reprodução Social busca retomar e desenvolver uma proposição pouco investigada em “O capital”. Para Marx, a força de trabalho é uma mercadoria, a única de que trabalhadores dispõem no mercado. Uma mercadoria especial por ser fonte de valor e, portanto, núcleo de todo o processo de produção capitalista. Não há produção de mercadorias acrescidas de mais-valor sem a força de trabalho, sequer há produção sem a compra da mercadoria força de trabalho por parte do capitalista. 

Marx o percebe explicitamente quando diz que “A manutenção e reprodução constantes da classe trabalhadora continuam a ser uma condição constante para a reprodução do capital.” Porém se debruça muito pouco sobre o processo de reprodução da força de trabalho, se limitando a dizer que “o capitalista pode abandonar confiadamente o preenchimento dessa condição ao impulso de autoconservação e procriação dos trabalhadores”. Para ele esse impulso é suprido pela aquisição de mercadorias, nomeados como “meios de subsistência”, e a respeito dos quais discorre tão somente na relação entre a força de trabalho vendida por trabalhadores para receber um salário equivalente ao preço desses meios de subsitência versus o excedente de trabalho do qual se apropria o capitalista. [1]

Esses aspectos começaram a ser explorados por teóricas feministas a partir dos anos 1970, tanto as autonomistas como Silvia Federici, Mariarosa Dalla Costa e Selma James, quanto (e principalmente) as que fundariam a corrente teórica do feminismo marxista, como Lise Vogel, Martha Gimenez e Johanna Brenner. Se a força de trabalho é uma mercadoria, a única que trabalhadores possuem para vender, quem a reproduz diariamente? Através de quais trabalhos? E, no cerne da questão,

“Se a totalidade do sistema capitalista é atingida por essa ‘mercadoria’ que não é produzida à maneira de outras, quais são os pontos de determinação e/ou contradições necessariamente constitutivos do sistema, mas que devem ser superados dentro dele?” [2]

A historiadora Tithi Bhattacharya identifica três processos interconectados:

“1. Atividades que regeneram a trabalhadora fora do processo de produção e que a permitem retornar a ele. Elas incluem, entre uma variedade de outras coisas, comida, uma cama para dormir, mas também cuidados psíquicos que mantêm uma pessoa íntegra.

2. Atividades que mantêm e regeneram não-trabalhadores que estão fora do processo de produção — isto é, os que são futuros ou antigos trabalhadores, como crianças, adultos que estão fora do mercado de trabalho por qualquer motivo, seja pela idade avançada, deficiência ou desemprego. 

3. Reprodução de trabalhadores frescos, ou seja, dar à luz.” [3]

Esses processos essenciais à reprodução da força de trabalho, como lavar e passar roupas (além de lençóis e toalhas), cozinhar, lavar a louça, limpar a casa, fazer compras, cuidar de eventuais crianças e animais de estimação, de pessoas idosas e/ou adoentadas, é predominantemente realizado fora do espaço da produção capitalista, num espaço baseado em relações de parentesco chamado família. No entanto, neste “impulso de autoconservação dos trabalhadores” teorizado por Marx, parece haver muito pouco de impulso e ainda menos de “auto”. Conforme apontam as teóricas da TRS, esses processos são ordenados por relações sociais generificadas, ou seja, resultam em um encargo desproporcional às mulheres cisgêneras de cada família, estejam elas mesmas inseridas no mercado de trabalho ou não. 

Uma pesquisa demonstra essa situação no Brasil: segundo a Pnad Contínua, pesquisa do IBGE, homens despenderam, em média, 11,7 horas semanais em trabalhos domésticos em 2022, enquanto mulheres gastaram 21,3 horas semanais, quase o dobro. É também a primeira vez que a diferença entre os dois valores foi inferior a 10 horas desde que a pesquisa teve início em 2016. Como se poderia imaginar, mulheres pretas e pardas despendem mais horas com cuidados a outras pessoas do que mulheres brancas, mas estes três grupos gastam mais tempo do que qualquer homem de qualquer etnia. Outros dados podem ser cruzados e aproveitados para uma análise ainda mais completa, e estão disponíveis no site do IBGE. [4]

O dado que mais nos interessa aqui é este: as mulheres brasileiras gastam mais tempo com tarefas domésticas quando casadas, ou seja, constituindo uma família com o marido, num espaço onde essas tarefas supostamente deveriam ser divididas. Tratam-se de 24,1 horas em média, quase três horas a mais do que a média total. É evidente, portanto, que estas mulheres estão assumindo mais trabalhos do que os para sua própria reprodução, seja com filhos ou assumindo trabalhos do marido.

Esse fenômeno está relacionado com a chamada separação estrutural entre a economia doméstica e a economia pública. Este processo é um pouco mais familiar quando estudamos a história do desenvolvimento da revolução industrial, pouco a pouco transferindo produções manufatureiras para as fábricas. Menos discutido, porém, é o fato de que essa clivagem também atingiu as mulheres. Conforme nos diz a filósofa Angela Davis sobre a situação estadunidense, 

“Na economia agrária pré-industrial da América do Norte, uma mulher realizando seus afazeres domésticos era, portanto, fiadeira, tecelã, costureira e também padeira, produtora de manteiga, fabricante de velas e de sabão.” [5]

Todos estes trabalhos também foram apropriados pelas indústrias nascentes, e as tarefas de reprodução social tomaram o primeiro plano dos afazeres domésticos. A idealização da mulher como “dona de casa” é fruto deste processo histórico. Um fenômeno materialmente restrito às mulheres de classe média, brancas, cujos maridos ganhavam um salário suficiente para todos os gastos, porém ideologicamente replicado enquanto o “modelo universal de feminilidade”. Já às mulheres pobres, sobretudo racializadas (negras e imigrantes), as duplas e triplas jornadas de trabalho foram uma realidade desde o fim da escravidão. No Brasil de 2022, mulheres trabalhadoras gastaram 6,8 horas a mais do que homens trabalhadores nas tarefas domésticas, em média, segundo a mesma pesquisa da Pnad Contínua.

Isso gera a aparência de que, no capitalismo, se tratam de duas esferas independentes, e que o trabalho doméstico em nada contribui para o mundo da produção. Porém, conforme vimos acima, nada seria mais errado do que tomar a aparência pela essência do fenômeno. Bhattacharya nos informa que 

“(...) como a relação salário/trabalho, no capitalismo, ‘ocupa os espaços da vida cotidiana não remunerada’ [citação de Marx], o tempo da reprodução deve necessariamente responder aos impulsos estruturantes do tempo da produção. O impulso estruturante, porém, não constitui uma correspondência simples, e é importante destacar esse ponto — pois, embora o capitalismo limite nosso horizonte de possibilidades em ambas as esferas, ele simultaneamente precisa renunciar ao controle absoluto sobre o tempo de reprodução.”

As consequências destas relações nas nossas reflexões, portanto, não podem ser outras: “Se, como propomos, a separação espacial entre produção (pública) e reprodução (privada) é uma forma histórica de aparência, então o trabalho realizado em ambas as esferas também deve ser teorizado de modo integrado.” [2]

Estratégia e táticas da reprodução social 

As pré-teses congressuais, no parágrafo 60 das resoluções de estratégia e táticas, definem os setores estratégicos do proletariado como sendo

“(...) as condições de organização e influência político-econômica que cada fração distinta do proletariado possui em função de seu próprio posicionamento em setores dinâmicos ou nevrálgicos da economia capitalista, sendo capazes de afetar com suas mobilizações a produção e reprodução capitalista de maneira mais ou menos profunda.”

Nos parece evidente, a partir da exposição acima, que o trabalho de reprodução social empreendido diariamente por trabalhadoras de cuidado, sejam donas de casa, empregadas domésticas ou mesmo proletárias em duplas e triplas jornadas, têm um caráter bem mais estratégico do que poderia parecer à primeira vista. Por um lado, esta esfera constitui um elo bastante fraco do capital, da qual ele depende quase que completamente para seguir funcionando. E, ainda assim, como propõe a filósofa Nancy Fraser, a acumulação ilimitada “tende a desestabilizar os próprios processos de reprodução social em que se baseia” [6] nos momentos de crise. Ao privatizar, cortar investimentos orçamentários em nome da austeridade e reduzir salários, o capital empurra os processos de reprodução social de volta ao âmbito da família. Por outro lado, que toda a vanguarda da luta do proletariado compreenda a importância da organização das mulheres, agora integrada sob o prisma da Teoria da Reprodução Social, pode não só auxiliar na superação das condições que viabilizam o capitalismo, como entende-las importantes para a própria libertação das mulheres.

Uma série de debates táticos podem ser feitos a partir dessa posição. O primeiro deles questiona se a tática adotada pelas autonomistas em décadas passadas de reivindicar um salário por este trabalho é a melhor escolha, ou se a tática acertada seria a luta por lavanderias e restaurantes públicos, além de outras formas de socializar este trabalho (ou automatiza-lo com maior acesso a eletrodomésticos). Esta segunda, que nos parece mais condizente com o objetivo de libertação das mulheres, já está contemplada no programa anexado ao caderno, inclusive. Diz, no item 7 da letra D, “construção de moradias, creches, equipamentos educacionais e de saúde, refeitórios e lavanderias estatais com investimentos públicos e capacitação suficientes às necessidades populares, em todos os bairros.”

A outra tática é mais espinhosa, e diz respeito às formas organizativas do próprio partido. Trata-se indiscutivelmente de um trabalho, embora de um tipo diferente do trabalho assalariado sob o capitalismo. Contudo, ele é realizado num espaço diferente do espaço de produção e circulação de mercadorias, isto é, dentro das casas. De tal sorte que há um debate a ser feito se essa atuação se encaixa em células por local de trabalho ou células de moradia - ou células de comunidades, conforme algumas sugestões vêm apontando por essa particularidade neste período de debates congressuais.

Independente de qual escolha tática, parece claro que trata-se de uma estratégia acertada dedicar esforços na organização deste setor, à luz das novas reflexões fornecidas pela TRS. Afinal, para além da relevância deste trabalho para o capital,

"(...) não é verdade que a classe trabalhadora não pode lutar na esfera da reprodução. Mas é verdade, no entanto, que ela só pode vencer o sistema na esfera da produção. Algumas das maiores lutas da história da classe trabalhadora começaram fora da esfera da produção. As duas revoluções mais significativas do mundo moderno, a francesa e a russa, começaram como revoltas por pão, lideradas por mulheres." [3]

Alterações nas teses “Sobre o movimento feminista”

Embora estejamos de acordo com a proposição da Teoria da Reprodução Social enquanto referencial teórico, consideramos que o CNP fez um trabalho bastante precário, praticamente inexistente, de explicar seus conceitos, consideravelmente novos ao conjunto da esquerda brasileira, e ainda mais novos às bases do partido que busca convencer. [7] 

Entendemos que um partido leninista existe para fazer e dirigir as lutas sociais, e que suas resoluções devem informar as diretrizes desta luta. Contudo, quando colocadas lado-a-lado com as resoluções estratégicas d’A Classe Trabalhadora, é visível que as resoluções do movimento feminista perderam a perspectiva das lutas concretas e a substituiu pela perspectiva da luta de classes na teoria. O que não é, de forma alguma, um âmbito desprezível ou minoritário, apenas não é o espaço adequado para tal. Em segundo lugar, as teses feministas instrumentalizam o feminismo marxista e a TRS apenas para o combate teórico-ideológico a outras vertentes, sem se preocupar com explicar seus pressupostos básicos ou — o que deveria ser o objetivo das resoluções de um partido revolucionário — apresentar uma análise da condição das mulheres trabalhadoras brasileiras a partir dessas categorias, e traçar a estratégia de luta a partir daí. Disto não pode resultar outra coisa senão o empobrecimento tanto desta seção como de todas as outras, uma vez que a TRS tem muito mais a oferecer para pensar e atuar sobre a realidade do que uma repetitiva demarcação de posições frente a outras correntes teóricas. Foi também o que buscamos demonstrar acima.

Apesar de as teses afirmarem que “todo o Partido deve se apropriar teoricamente do feminismo marxista”, não há esforço algum em convencer o conjunto da militância da justeza da TRS, uma exposição breve que seja. Pode-se argumentar que este é um trabalho do debate e, portanto, das tribunas. Respondemos perguntando onde estão as tribunas de dirigentes nacionais da RR, seja sobre este ou outros destaques e questionamentos às teses já apresentados. 

De tal sorte que nos somamos aos apontamentos de que esta seção do caderno precisa ser reformulada. Esperamos que este texto possa contribuir com a tarefa e, acima de tudo, para despertar o interesse de mais militantes no esforço de formular uma linha política à altura das reflexões teóricas do feminismo marxista e das mulheres trabalhadoras brasileiras.


Notas

[*] DESCRIÇÃO DE IMAGEM: Um cartaz em preto e branco, com uma arte que parece inspirada nos trabalhos de Maurits Escher, conhecido pela arte em padrões geométricos e formas impossíveis que geram ilusões de ótica e confusão. Consiste em vários cubos empilhados, de forma que apenas duas laterais e o topo de cada um são visíveis. Cada lado deles é adornado com pontilhados, listras, linhas curvas ou pequenos tijolos. Na lateral de cada cubo há uma janela onde vê-se o mesmo desenho de uma mãe segurando um bebê e olhando para fora, cada cubo simulando assim uma casa.

[1] MARX, Karl. O capital: crítica da economia política, livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.

[2] BHATTACHARYA, Tithi. Mapeando a teoria da reprodução social. In: _______ (org.). Teoria da reprodução social: remapeamento de classe, recentralização da opressão. São Paulo: Elefante, 2023.

[3] BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social?. Revista Outubro, n. 32, p. 99-113, set. de 2019.

[4] Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37621-em-2022-mulheres-dedicaram-9-6-horas-por-semana-a-mais-do-que-os-homens-aos-afazeres-domesticos-ou-ao-cuidado-de-pessoas

[5] DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

[6] FRASER, Nancy. Crise do cuidado? Sobre as contradições sociorreprodutivas do capitalismo contemporâneo. In: BHATTACHARYA, Tithi (org.). Teoria da reprodução social: remapeamento de classe, recentralização da opressão. São Paulo: Elefante, 2023.

[7] Pensemos que os primeiros livros de autoras da TRS, como “Ligações Perigosas - casamentos e divórcios entre marxismo e feminismo” de Cinzia Arruzza, ou “Feminismo para os 99%”, de Arruzza, Nancy Fraser e Tithi Bhattacharya foram publicados no Brasil em 2019. Já obras fundamentais como “Marxismo e a opressão às mulheres: rumo a uma teoria unitária” de Lise Vogel, e “Teoria da reprodução social”, organizado por Bhattacharya, foram publicados somente em novembro de 2022 e abril de 2023, respectivamente. A baixa popularização do debate ainda é agravada pela insistente tendência geral a secundarizar estas pautas.