'Os comunistas e a questão indígena, reflexão sobre palavras de ordem e horizontes' (João Thiago)

Enquanto não desenvolvermos uma consciência plena das nossas potencialidades revolucionárias, seguiremos repetindo palavras de ordem que não dialogam verdadeiramente com as populações indígenas, negras e tradicionais do país.

'Os comunistas e a questão indígena, reflexão sobre palavras de ordem e horizontes' (João Thiago)
"De fato o que está em jogo é uma questão agrária, de defesa da vida, mas no caso específico de tais comunidades, o que tem sido pautado pelos próprios movimentos, é a preservação e proteção dos seus modos de vida tradicionais em simbiose com a natureza."

Por João Thiago* para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Sobre a palavra de ordem: Terra para quem vive e trabalha, não para o capital, viva os povos indígenas, abaixo o marco temporal. Defendida pela Reconstrução Revolucionária.

Primeiramente camaradas, me coloco enquanto um militante da UJC deslocado dos grandes centros urbanos, resido na zona da mata pernambucana. Sou estudante de graduação em história, tenho pesquisado sobre cultura popular e manifestações culturais indígenas/negras da região, em específico do coco de roda e maracatus de baque solto. Durante todo esse processo de construção da Reconstrução Revolucionária a caminho do XVII Congresso (extraordinário) do PCB, tenho tentado refletir sobre os rumos que o movimento comunista brasileiro está tomando, até mesmo para além de nossas fileiras! Acredito que em específico na questão indígena e sobre populações tradicionais, os rumos apresentados são animadores de fato.

No dia 29 de agosto, houveram diversas mobilizações contra a tese do Marco Temporal que estava sendo julgada pelo STF neste momento. Milhares de indígenas marcham em Brasília e em todo país, em defesa de seus territórios, seus modos de vida e pela demarcação de terras aos companheiros que ainda estão na luta. As redes sociais também tomam espaço de agitação e propaganda nesse cenário, os perfis da RR em diferentes redes compartilharam # e palavras de ordem em apoio a causa indígena em ressonância ao cenário que se colocava naquele momento.

A postagem em específico a que vou me ater no momento, é a seguinte:

Legenda: "🚩 TERRA PARA QUEM VIVE E TRABALHA, VIVA OS POVOS INDÍGENAS!

O Marco Temporal ignora que o Brasil é terra indígena. É mais um capítulo da ofensiva do chamado agronegócio para expropriar territórios e atacar o direito originário dos povos indígenas. A maior parte dos conflitos entre monopólios e povos indígenas ocorre em terras que ainda não foram demarcadas. A aprovação do marco absurdo de 1988 para definir esses conflitos significará uma onda de violência ainda maior em todo o país. Tudo para transformar a natureza em matéria-prima da força destruidora do capital. Junto à expansão das fazendas chega o desmatamento, o uso intensivo de insumos químicos que promovem a degradação da natureza, reduzindo a biodiversidade, a qualidade das águas, do solo e do clima. É fundamental derrotar a tese do Marco Temporal e defender a demarcação imediata dos Territórios Indígenas, considerando sua ancestralidade e direito originário às terras que tradicionalmente ocupam. A saída política da classe trabalhadora para a questão agrária e indígena, de forma mais ampla, só pode ser a nacionalização de todas as terras e a abolição da propriedade privada do solo.

TERRA PARA QUEM VIVE E TRABALHA, NÃO PARA O CAPITAL! VIVA OS POVOS INDÍGENAS, ABAIXO O MARCO TEMPORAL!"

Pois bem, compreendo que é de suma importância que tenhamos o máximo de consciência histórica sobre a construção do capitalismo brasileiro. Digo isso, não por acreditar que es camaradas desconhecem o tema, mas tal palavra de ordem me deixara questionamentos reais sobre a compreensão das nossas fileiras sobre as questões indígenas atuais e históricas. Mesmo que haja questões de classe, não necessariamente há relações de trabalho, camaradas!

Historicamente, a grande maioria dos povos originários tiveram e tem outras relações de contato com a terra que fogem do "trabalho" que delimitamos enquanto categoria histórica. De forma que as funções sociais e divisão de tarefas na manutenção da vida não giram em torno da produção, acúmulo ou exploração da terra a fim de agregar valor.

Compreendo que há uma dualidade nessa palavra de ordem, por um lado, a defesa pela coletivização da propriedade privada da terra é indispensável para nós comunistas, de forma por compreender que tal horizonte deve respeitar e valorizar a permanência de povos originários em seus territórios ancestrais. Por outro lado, quando tal questão vem ser apresentada somente na legenda e a palavra de ordem sintetiza isso de uma forma que deixa a entender que a luta dos povos indígenas gira em torno da demarcação para gerar algo como os territórios do MST, onde a coletivização das terras gera uma cadeia de empregos e geração de renda aos assentados.

Hoje de forma geral, muitas comunidades indígenas possuem sim relações de trabalho na produção agrícola, de turismo, produção cultural e inúmeras outras atividades, o que ainda assim não faz com que os movimentos gritem algo como terra para quem trabalha. Camaradas, hoje as reivindicações indígenas por demarcações não giram em torno de uma troca da produção predatória do agronegócio para a "produção verde" de indígenas. De fato o que está em jogo é uma questão agrária, de defesa da vida, mas no caso específico de tais comunidades, o que tem sido pautado pelos próprios movimentos, é a preservação e proteção dos seus modos de vida tradicionais em simbiose com a natureza.

A defesa de tais territórios frente às investidas que a burguesia tenta emplacar através do STF e outros mecanismos, deve girar em torno do que os próprios guardiões apontam como pauta política. Entender que neste caso específico, a palavra “território” vem agregada de um sentido múltiplo, pois tais complexos sociais elevam tal termo  para algo que foge até mesmo da materialidade da terra, o território se torna acima de tudo a forma de vida construída nele. Algo que para o aparato estatal, para a política institucional, e para nós comunistas, parece algo abstrato, pelas inúmeras possibilidades políticas arestas que podem vir a surgir desse discurso.

A materialidade histórica nos mostra que modos de vida alternativos à ordem sempre existiram ao longo dos séculos, a luta de classes se fez presente no interior de sociedades inteiras ou como no caso brasileiro, com a invasão, roubo e exploração de territórios pela colonização europeia.

Camaradas, precisamos dar um passo à frente. A dialética das relações classistas brasileiras é algo de uma complexidade enorme, ainda mais quando se trata das centenas de populações originárias. Creio que a concepção engessada sobre o trabalho e as dinâmicas de classe no capitalismo brasileiro é uma herança maldita de um marxismo preso aos moldes europeus. Compreender a complexidade dos modos de viver aqui presentes, com toda certeza ajudará em nossa tarefa histórica enquanto classe, a revolução. Enquanto não desenvolvermos uma consciência plena das nossas potencialidades revolucionárias, seguiremos repetindo palavras de ordem que não dialogam verdadeiramente com as populações indígenas, negras e tradicionais do país.

Gosto bastante de analisar tal questão a partir dos terreiros de cultos afro-brasileiros e indígenas como a primeira forma de Poder Popular nacional . A dialética dos terreiros exemplificam o que são os retalhos que constróem o povo brasileiro, que a partir das diversas opressões vividas por diversas populações, emerge algo genuinamente brasileiro, genuinamente pertencente ao povo excluído, genuinamente como forma de contraposição radical ao sistema branco, burguês e policial (mesmo que obviamente, não livre de contradições internas). Vejam, mais uma vez um “território” se mostra como algo um pouco abstrato e agora metafísico, por ser constituído por uma gama de pluralidades, crenças e está presente fora do que é a terra propriamente dita.

Acrescentou que, se o comunismo quer mesmo se apresentar como uma alternativa real ao capitalismo predatório brasileiro, precisamos nos somar de forma orgânica nas trincheiras das mais variadas populações que lutam e se organizam frente aos meios de produção burgueses há séculos. O Poder Popular está no cocar, no balançar do maracá e na força do Toré, muito antes de estar na foice e martelo!

Apresento tal crítica para a construção de novos horizontes não somente para formulação de palavras de ordem melhor elaboradas, mas para que estejamos atentos às contradições herdadas pelo eurocomunismo e a colonização intelectual. Que nos próximos ciclos, a Reconstrução Revolucionária do PCB possa verdadeiramente produzir acúmulos coletivos sobre nossa história, frentes de luta e horizontes.


*Militante da UJC-PE, Núcleo Biu Alexandre (cultura e intervenção artística).