'Cinco contribuições do Coletivo LGBT Comunista que devem ser consideradas pela Reconstrução Revolucionária do PCB' (Matheus Gonçalves e Ricardo Souza)

Apostar que é possível acabar com o preconceito e conquistar direitos para a população LGBT através da negociação com o Estado e com a burguesia é compreender a existência das identidades LGBT isoladas da totalidade social e da luta de classes.

'Cinco contribuições do Coletivo LGBT Comunista que devem ser consideradas pela Reconstrução Revolucionária do PCB' (Matheus Gonçalves e Ricardo Souza)
"A violência contra a população LGBT não é uma questão simplesmente moral ou religiosa, mas tem raízes na própria estrutura do capitalismo. Essa violência é funcional para a reprodução do próprio sistema."

Por Matheus Gonçalves e Ricardo Souza para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Nosso objetivo com esta tribuna é resgatar algumas das formulações políticas e teóricas que produzimos coletivamente enquanto militantes do Coletivo LGBT Comunista. Para isso, revisitamos  textos do coletivo escritos durante a pandemia que trazem sínteses dos nossos  estudos políticos nos últimos dois anos. Trata-se de um esforço inicial para socializar esses acúmulos, visto que desde 2015 o LGBT Comunista tem produzido conteúdos que propõem uma alternativa comunista para o movimento LGBT brasileiro e que seria impossível abordá-lo inteiro em uma única tribuna. Também não pretendemos dar a palavra final no debate sobre a luta LGBT nesta ou sugerir que ele se limita aos temas aqui abordados. Pretendemos, sim, propor caminhos para avançarmos na elaboração de teorias marxistas sobre gênero e sexualidade e para a formulação de teses para o nosso XVII Congresso Extraordinário.

Um acúmulo importante do Coletivo diz respeito à história de construção do movimento LGBT no Brasil, os primeiros grupos organizados e a transformação de suas reivindicações ao longo do tempo, bem como as aproximações políticas entre essas organizações e diferentes espectros políticos. No texto “Movimento LGBT: da luta antissistêmica à institucionalidade”, o Coletivo apresenta a ideia de que a institucionalização do movimento LGBT retirou o caráter de luta antissistêmica que era presente em seu início. Quando surge o grupo SOMOS no final da década de 1970, o primeiro movimento organizado em defesa dos direitos das LGBTs no Brasil, se tratava de um grupo orientado para a luta contra a ditadura e para o questionamento da violência contra pessoas homossexuais. O texto relata que tais questionamentos ao Estado perdem a força com o processo de redemocratização e transformam-se em uma postura de colaboração e negociação com o Estado na luta pelo tratamento gratuito no SUS para pessoas que vivem com HIV.

Esta mudança no caráter do movimento LGBT brasileiro acompanhou uma mudança geral de estratégia política dentro do movimento dos trabalhadores. Ambos, após a redemocratização, não mais se orientavam no sentido de uma transformação radical da realidade. No texto “A estratégia demorático-popular e a luta LGBT”, o Coletivo traçou um paralelo entre a ascensão do projeto político liderado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e o esvaziamento e institucionalização do movimento LGBT. Segundo o texto, a esquerda em geral, e o movimento LGBT particularmente, foram deseducados na prática da luta socialista radicalizada, tomando como seus objetivos a disputa em esferas institucionais do poder como eleições e conselhos. É com a ascensão do PT que o movimento LGBT brasileiro passa a ter o advocacy (a negociação de pautas entre a sociedade civil, entes privados e representantes do Estado) como uma de suas principais táticas políticas. Uma discussão mais detida sobre o assunto está presente no vídeo “Advocacy e a luta LGBT”, disponível no instagram no coletivo.

Apostar que é possível acabar com o preconceito e conquistar direitos para a população LGBT através da negociação com o Estado e com a burguesia é compreender a existência das identidades LGBT isoladas da totalidade social e da luta de classes. Em seu texto “Racismo, LGBTfobia e a armadilha da identidade”, o Coletivo propôs uma aproximação entre os argumentos a respeito das violências de raça, sexualidade e gênero dos historiadores estadunidenses Asad Haider e John d’Emilio.

Haider, em seu livro “Armadilha da Identidade: raça e classe nos dias de hoje” argumenta contra a ideia de uma “branquitude eterna”. Ao analisar a historia da violência de raça nos Estados Unidos, o autor observa que foi com o objetivo de dispersar as forças do movimento organizado dos trabalhadores que a burguesia daquele país assimilou grupos que antes considerava inferiores, como os imigrantes irlandeses, à ideia de uma “raça branca”, superior aos trabalhadores negros. Para o autor, analisar os movimentos sociais sem levar em conta a luta de classes seria cair na “armadilha da identidade”.

d’Emilio, em seu discurso “Capitalismo e Identidade Gay”, defende que foi apenas com a consolidação do modo de produção capitalista e com a massificação da força de trabalho assalariada que se tornou possível converter desejos e comportamentos homossexuais em identidades. Ao analisar a história estadunidense, d’Emilio destaca que a família era uma unidade de produção social. Isto significa que para sobreviver era necessário estar integrado a um núcleo familiar grande o suficiente para realizar a reprodução social de todos os que o compunham. Com o capitalismo, sobreviver fora de um núcleo familiar tornou-se uma possibilidade. d’Emilio defende que o trabalho assalariado, associado à modernização das cidades e suas múltiplas oportunidades sexuais e de sociabilidade em geral, permitiu com que determinados comportamentos anteriormente identificados como “sodomitas” pudessem se converter em identidades e estilos de vida. Ao mesmo tempo, o processo de violência contra a população trabalhadora também se desenvolve e se cristaliza nos campos médico, legal e religioso, forjando simultaneamente a “norma” - a heterossexualidade - e o desviante - a homossexualidade.

As leituras e discussões sobre a perspectiva desses autores foram muito significativas para que pudéssemos formular uma crítica ao identitarismo sem cair em espantalhos. Entendemos que as violências de raça, gênero e sexualidade não podem ser compreendidas como adjetivas ou alheias aos demais movimentos políticos. Tais processos de violência são determinados pela luta de classes ao mesmo tempo em que a determinam. A ideologia que fundamenta tais violências é fundamental para que os trabalhadores se mantenham divididos e não se reconheçam uns nos outros.

É preciso considerar que a violência que determina as identidades LGBT é uma manifestação particular da violência de classe. Assim, não podemos cair no equívoco de considerar que quando formulamos políticas para “trabalhadores”, no abstrato, estamos necessariamente considerando todas e todos os trabalhadores, bem como as múltiplas determinações da violência que demarca a luta de classes.

A pesquisa “Diagnóstico LGBT+ na pandemia”, analisada pelo Coletivo no texto “Notas sobre um cenário trágico: pandemia, capitalismo e saúde mental da população LGBT brasileira”, traz exemplos concretos de como as existências LGBT partilham demandas políticas com toda a classe trabalhadora ao mesmo tempo em que apresentam especificidades. As preocupações com a estabilidade do trabalho, incerteza sobre a renda e restrições ao convívio social foram aspectos que atingiram severamente a vida de toda a classe trabalhadora nesse período. Somado a isso, as LGBT enfrentaram essas limitações em uma dinâmica familiar muitas vezes hostil ou mesmo na completa solidão, sob condições de trabalho precárias, sobretudo no que se refere à população T. Em que pese o número baixo de pessoas que responderam a pesquisa, apresenta-se o dado de que a taxa de diagnóstico de depressão nas pessoas LGBT é cerca de cinco vezes maior que na população em geral.

Pesquisas como essa nos dão uma ideia vaga sobre as particularidades da opressão às LGBT, mas não possibilitam que tenhamos noção da real dimensão de como a violência afeta essa população. Durante a pandemia, o Coletivo se debruçou cerca de um ano sobre o problema da ausência de dados confiáveis sobre a população LGBT brasileira. Como resultado deste estudo foram produzidos uma série de textos onde o Coletivo analisou diversas pesquisas e dossiês que se propõem a produzir dados sobre nós. Em geral, se entendeu que todas as pesquisas analisadas eram muito limitadas, sobretudo porque eram subnotificadas. A subnotificação é um dos grandes impasses para a elaboração de políticas públicas dedicadas às necessidades das LGBTs trabalhadoras.

Em seu texto “Por que a ausência de estatísticas confiáveis sobre a população LGBT é um problema na elaboração de políticas públicas”, o Coletivo analisa quatro silêncios: a inexistência de estatísticas nacionais referentes à inserção das LGBT no mercado de trabalho; o desconhecimento da distribuição geográfica das pessoas LGBT tanto a nível nacional quanto local; a subnotificação das informações coletadas sobre a violência LGBTfóbica no país; a dificuldade de se analisar o atendimento à população LGBT pelo Sistema Único de Saúde. A partir desta análise, se constata uma dupla constante: as ausências levam ao desconhecimento e subsequente dificuldade de especialização do Estado no combate aos problemas enfrentados pela população LGBT; e à invisibilização das LGBT enquanto constituintes da totalidade social. No texto, a conclusão é de que precisamos exigir a coleta e a disponibilidade de dados sobre a população LGBT. Um caminho possível apontado é a articulação de campanhas a nível nacional e local que proponham enfrentar de cabeça erguida tanto o cristianismo organizado quanto a cúpula política oportunista, combatendo a prática petista de rifar os interesses da população trabalhadora LGBT em favor da burguesia.

Atrelado a isso, o Coletivo também pesquisou sobre a violência enquanto conceito. Como podemos caracterizá-la e de que forma ela é empregada historicamente, por quais meios e com quais objetivos, e como ela atinge a população LGBT em específico são perguntas que o Coletivo buscou responder no texto “O conceito de violência na luta de classes”. Precedidas por leituras dos autores Frantz Fanon, Octavio Ianni e Ignacio Martín-Baró, as atividades formativas que deram origem ao texto geraram discussões que contribuíram para que o Coletivo se apropriasse do conceito de violência estrutural, que acreditamos ser de fundamental importância para a compreensão das lutas anti-opressão no sistema capitalista. Não se trata de um ataque localizado ou individual, nem de uma resposta em defesa a uma ofensiva das mulheres, negros e LGBTs;, mas de uma violência ostensiva, institucionalmente legítima, perpetrada contra esses grupos abertamente em favor da manutenção da ordem social.

A violência contra a população LGBT não é uma questão simplesmente moral ou religiosa, mas tem raízes na própria estrutura do capitalismo. Essa violência é funcional para a reprodução do próprio sistema. Ela divide a classe trabalhadora em grupos de interesses aparentemente opostos, dificultando a organização coletiva; ela justifica as contradições do capitalismo pela via religiosa e moral, desviando a revolta popular das razões que a alimentam; ela contribui para a redução do nível geral dos salários, ao empurrar parte considerável da população trabalhadora para o exército industrial de reserva, no qual trabalhadores são submetidos a aceitar condições de trabalho miseráveis por falta de alternativa. Além disso, é inegável o papel da família heterossexual monogâmica, no modelo burguês, para a reprodução social do modo de produção capitalista.

Neste sentido, camaradas, consideramos importante que nosso movimento, e que a futura organização que dele surgir com o nosso congresso, considere pelo menos os cinco acúmulos do Coletivo LGBT Comunista acima apresentados: a avaliação sobre a história do movimento LGBT no Brasil - de onde viemos e para onde devemos caminhar; a crítica à Estratégia Democrático Popular petista e sua relação com os rumos do movimento LGBT brasileiro; o acúmulo teórico sobre a determinação social da violência LGBTfóbica e sobre o surgimento das identidades LGBT no capitalismo; o levantamento realizado pelo LGBT Comunista SP sobre os dados disponíveis sobre a população LGBT brasileira; a formulação política sobre a importância de pleitear estatísticas confiáveis sobre as LGBTs brasileiras.

Deixamos abaixo o link de todos os textos mencionados em nossa tribuna e convidamos todo mundo a realizar não apenas as leituras sugeridas, mas também entrar em contato com as redes sociais, site e páginas de instagram e facebook do Coletivo LGBT Comunista. Em sua história, avaliamos que o Coletivo foi boicotado pelo partido, sendo uma expressão disso que seus acúmulos não fossem amplamente socializados para o restante de nossa militância. No momento que enfrentamos, de Reconstrução Revolucionária, é urgente que resgatemos estes acúmulos e que deles partamos para redigirmos nossas próprias formulações. Seja para criticá-las, seja para reiterá-las. O que não podemos é continuar reproduzindo o desconhecimento geral das formulações políticas das LGBTs comunistas de nossa organização. Tampouco é justa a criação de espantalhos sobre esta história ou sobre a linha política ali formulada, mesmo que no intuito de superar as suas insuficiências. Nossas diferenças e críticas ao PCB-CC e ao LGBT Comunista-CC devem ser afirmadas de forma qualificada, reconhecendo que desde 2015 as LGBTs comunistas disputam tanto o movimento LGBT brasileiro quanto o Partido Comunista Brasileiro, contribuindo para formulações políticas da esquerda como um todo sobre o movimento.

LGBTs têm classe e tomam partido!

Matheus Gonçalves e Ricardo Souza

Militantes da célula LGBT do PCB-RR em São Paulo


Referências:

Movimento LGBT: da luta antissistêmica à institucionalidade: https://lgbtcomunista.org/2021/05/07/movimento-lgbt-da-luta-antissistemica-a-institucionalidade/

A estratégia demorático-popular e a luta LGBT: https://pcb.org.br/portal2/26217

Advocacy e a luta LGBT: https://web.facebook.com/watch/?v=281489150047834

Racismo, LGBTfobia e a armadilha da identidade: https://lgbtcomunista.org/2021/02/02/racismo-lgbtfobia-e-a-armadilha-da-identidade/

Notas sobre um cenário trágico: pandemia, capitalismo e saúde mental da população LGBT brasileira: https://lgbtcomunista.org/2021/05/07/notas-sobre-um-cenario-tragico-pandemia-capitalismo-e-saude-mental-da-populacao-lgbt-brasileira/

Por que a ausência de estatísticas confiáveis sobre a população LGBT é um problema na elaboração de políticas públicas: https://www.instagram.com/p/CaIHT4Fte1M/?utm_source=ig_web_copy_link&igshid=MzRlODBiNWFlZA==

O conceito de violência na luta de classes:
https://medium.com/@lgbtcomunistasp/o-conceito-de-viol%C3%AAncia-na-luta-de-classes-614616902fb4

Site do Coletivo LGBT Comunista:
https://lgbtcomunista.org/

Instagram do Coletivo LGBT Comunista SP, onde está disponível o levantamento realizado sobre os dados da população LGBT Brasileira (buscar:
https://www.instagram.com/lgbtcomunistasp/