'Uma reflexão sobre as violências nas nossas fileiras' (Nath)

[...] podemos perceber que temos uma estrutura que permite e até gera opressões, sendo necessário iniciar com mais afinco os debates e formulações sobre as questões organizativas, políticas e de vida interna onde isto se apresenta

'Uma reflexão sobre as violências nas nossas fileiras' (Nath)

Por Nath para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Introdução

Há algum tempo venho pensando sobre a estrutura e a organização do nosso complexo partidário, por causa de sobrecarga e outros problemas acabei me afastando de tudo e até mesmo evitei acompanhar as tribunas, mas nas últimas semanas retornei com muitos questionamentos e com a leitura das tribunas, e percebendo assim que muitas colocações que eu pensava que seriam “locais” são mais generalizadas do que podemos imaginar. A questão das violências e opressões nas nossas fileiras é uma delas, partindo logo do início, já nos recrutamentos, e até na nossa estrutura e forma de lidar com os acontecimentos. 

Me organizei há dois anos e já atuei no movimento de massas universitário, na Juventude e no Coletivo Negro, já escutei e presenciei situações extermamente delicadas e passei por elas também, porém por mais absurdas e graves que fossem os ocorridos, sempre existiu uma dificuldade coletiva de identificar as violências e até de saber como lidar com elas. Atualmente tratamos qualquer assunto como se fosse mais importante do que pensar nas contradições relacionadas à vida interna e aos camaradas pertencentes às minorias sociais. Antes de terminar meu recrutamento o que mais escutava era “a UJC é uma Juventude de homens cis brancos, o que você vai fazer lá?”, sempre defendi nossa linha política, mas admito que como uma mulher cis preta que passou por várias experiências negativas no espaço de militância, cada vez mais questiono o que somos, o que deveríamos ser e o que realmente queremos ser.

Já adianto que esta tribuna será de fato uma reflexão sobre esta questão, e em alguns momentos vou até me aproximar de um desabafo, mas creio que seja necessário trazer cada vez mais assuntos como este para a “pauta do dia”. É visível nossa falta de diversidade, a forma como “excluímos” camaradas de minorias nos coletivos, dividimos tarefas de maneira mecânica e quebramos muitos quadros em um espaço que deveria ser de acolhimento e luta conjunta contra todos os tipos de opressão. Este é mais um convite para que todos, principalmente os camaradas homens cis brancos, comecem a pensar e elaborar como as violências aparecem em seus núcleos, como podemos formular sobre coletivamente e abandonar a ideia elitista e privilegiada de que machismo, misoginia, racismo, LGBTfobia, capacitismo, xenofobia, entre outras opressões não existem no nosso complexo partidário.

Violências internas

Há muitos tipos de contradições, opressões e violências nas nossas fileiras, principalmente com pessoas pertencentes às minorias sociais, sendo que vou abordar aqui mais sobre questões relacionadas à machismo, misoginia e racismo, pontos mais presentes nas minhas experiências e observações na militância. É evidente como a porcentagem de mulheres e pessoas racializadas nas nossas fileiras é pequena e me espanta escutar quantos já “perdemos” por sobrecarregar  ou simplesmente não conseguir um ambiente minimamente saudável para atuação destes camaradas.

Se analisarmos no ponto das mulheres é possível identificar ações de descrédito implícitas ou explícitas, sendo muito frequente o paternalismo e os questionamentos sobre as capacidades políticas femininas. No espaço interno enfrentamos violência política, psicológica, física e até sexual, mas o estatuto da UJC é tão raso sobre isto quanto o estatuto do Partido como é bem apontado na tribuna “'Sobre os processos disciplinares'” das camaradas Dan Almeida, Juliana S. e Mariana Amaral. Então vamos para dois dados do estatuto da UJC que me chamaram atenção e podemos identificar de forma rápida: I) o capítulo sobre infrações e processos disciplinares conta com somente 12 artigos que explicam e estabelecem parâmetros de como podemos proceder com quaisquer “descumprimentos práticos” dos regulamentos do complexo partidário; II) em todo arquivo referente ao IX Congresso Nacional da UJC a palavra “acolhimento” aparece 11 vezes, sendo que somente uma é relacionada aos militante da Juventude.

É evidente que não é possível o estatuto abordar o tema como deveria nas suas quatro páginas referente a isto e é mais evidente ainda como priorizamos apontar, analisar e focar nas formas de lidar com as violências externas, ignorando e negligenciando as nossas próprias reproduções. Colocar em um parágrafo que “o organismo deve garantir acolhimento, com base nos princípios de camaradagem” não soluciona absolutamente nada exatamente porque antes disso precisamos pensar se todos os militantes foram extremamente bem formados para compreender o que é a “camaradagem”, se todos militantes foram bem formados para compreenderem e atuarem no acolhimento de vítimas em qualquer tipo de ocorrência sem gerar exposição e revitimização. E entram as perguntas: temos formação para isso? Temos sequer um planejamento para formular sobre? Até onde eu sei não temos nenhuma dessas coisas.

Muitas ações de machismo e misoginia são tratadas como normais ou inexistentes tanto por reproduzirmos internamente o funcionamento da sociedade capitalista dentro do complexo quanto por não formularmos sobre. Grande parte das vezes não temos preparo, ou até disposição em alguns casos, para identificar situações de opressão vindas de “camaradas”, não sabemos como agir com a situação ou como lidar com os envolvidos. E sabemos que a resposta pronta sempre é um “processo disciplinar”. Mas será que o processo, nos formatos que temos atualmente no complexo, realmente representa o que defendemos ou já caímos no puro punitivismo do sistema burguês? O que consideramos “disciplinar” um camarada? Qual é o nosso objetivo? Pautamos penalização, responsabilização ou só é um processo vazio para tranquilizar a consciência do coletivo?

Um texto que li várias vezes nos últimos dias é intitulado “A Violência de Gênero nas Esquerdas” e foi escrito pela camarada Natália Silva, camarada do Minervino, e indico a leitura integral dele para todos os militantes do complexo partidário (é uma produção curta e deixei o link na bibliografia). Por alguns motivos o texto da camarada foi um tapa necessário na minha cara. É um texto coerente que apresenta de forma nítida ideias que, de uma forma interna ou até mesmo inconscientemente, eu não conseguia sintetizar ou processar. É um texto que você lê e simplesmente pensa em como ou porquê não havia lido isso antes. Vou colocar só um trechinho do texto para colaborar com a “curiosidade” sobre o conteúdo:

E sim, eu sou antipunitivista. Tão antipunitivista que venho dedicando boa parte da minha vida à construção do socialismo para que possamos, enfim, iniciar a materialização de uma política antipunitivista verdadeira e eficaz. Até lá, o que teremos serão ações que irão flertar com o antipunitivismo e que lidarão com as limitações de uma sociedade pautada, justamente, pelo oposto do que acreditamos, a criminalização de corpos racializados e pobres, bem como, a legitimação de violências que reafirmam opressões basilares para a permanência do capitalismo. Nesse sentido, existe um perigo claro que uma política antipunitivista tocada sem a estrutura necessária pode cometer, reforçar essas opressões.

E repito, leiam este texto. É imprescindível que os camaradas homens cis leiam, mas para as camaradas mulheres e pessoas que já sofreram opressões nas nossas fileiras eu digo para que leiam quantas vezes forem necessárias, talvez seja um pouco do acolhimento e do choque que você precisa e que provavelmente poucas pessoas te falarão.

É um tema extenso, mas partindo para outra parte da mesma questão temos como as pessoas negras são tratadas internamente. Além das ações de racismos veladas ou explícitas, temos um problema que afeta todas nossas fileiras, mas de forma intensificada nos negros, que é a mecanização da divisão de tarefas e a sobrecarga. Já escutei sobre muitos camaradas que quebraram ou que se transferiram para o Minervino a fim de terem um espaço mais saudável ou tarefas mais coerentes com suas realidades. É assustador perceber que os coletivos que deveriam funcionar como lugares de aprofundamento das pautas específicas para todo o complexo são tratados como simples acessórios ou consultorias, cuja função também se tornou encaminhar camaradas pertencentes a minorias.

As pessoas negras no Brasil representam a parcela com maior carga horária de trabalho ao mesmo tempo que recebem as menores remunerações, então é relativamente provável que um militante negro não apresentará as mesmas condições materiais que um militante que é homem cis branco. A situação terá ainda mais disparidade se este militante negro não for um homem cis. Qual é a nossa posição interna para proporcionar uma militância sem sobrecargas para esta pessoa negra? A partir da nossa linha temos uma estrutura que permita, por exemplo, uma mulher negra proletária ocupar um cargo de dirigência sem que cobranças irreais e violências políticas aconteçam? Permitimos e possibilitamos que nossos militantes proletários tenham uma formação tão boa e positiva como os outros militantes ou geramos um espaço segregado que oprime nossos trabalhadores? Entender nossa linha política é importante, mas compreender a complexidade das nossas ações, estrutura e vida interna é indispensável nestes quesitos.

Um trecho que me marcou sobre esta relação foi da tribuna “'Necessidade de uma luta antiopressão na prática dentro das nossas fileiras – uma resposta a tribuna “Camaradagem; o vínculo de proximidade político que se forja”' da camarada Pâmela:

É cansativo ser a pessoa que é violentada e ter que ser a pessoa que expõe e tenta formular sobre isso. Essa responsabilidade não deveria ser só nossa, mas parece que quem não sofre essas opressões, literalmente não vê elas. E quem é oprimido acaba formulando mais sobre suas vivências de opressão do que sobre políticas de planejamento e direção do partido em si. Algo que pessoas que não sofrem essas determinadas opressões, não precisam passar, não formulam sobre, conseguem focar na direção.

Isto me remeteu as conversas que tive com muitos camaradas de como é extremamente cansativo passar por situações violentas onde você é tratada como responsável por, além de vivenciar a opressão, de entender a violência, se posicionar, lidar com todos acontecimentos durante e após a denúncia, “ensinar” como poderia ser um processo de acolhimento e esperar, com todas as forças, não ser somente ignorada no final. Na militância já fui tratada como quadro organizativo, político, público, agitativo e de dirigência, mas estou aqui (mais uma vez) elaborando sobre nossas violências no complexo partidário, compartilhando mais uma vez minhas experiências e posicionamentos na esperança de avançarmos em algo.

Não podemos esquecer ou ignorar que mulheres reproduzem machismos e outras violências ou que pessoas negras também reproduzem ações racistas e outras opressões. A transfobia no complexo está na ordem do dia e, com uma frequência absurda, camaradas trans têm suas capacidades políticas questionadas ou seus nomes e pronomes desrespeitados, algumas vezes até por outras minorias. Apontar de forma externa, escondendo de nós mesmos os problemas internos é esvaziar nossa linha política e lutar a partir de hipocrisia.

Erros nas fileiras

Com as colocações anteriores podemos perceber que temos uma estrutura que permite e até gera opressões, sendo necessário iniciar com mais afinco os debates e formulações sobre as questões organizativas, políticas e de vida interna onde isto se apresenta. O próprio racha é um exemplo claro de como pautas organizativas e ações práticas internas podem gerar um ambiente hostil e de exclusão entre camaradas. E como toda ação tem uma reação, um local para publicação das contribuições e tribunas de debates preparatórios do XVII Congresso Extraordinário foi uma das respostas encontradas para se compartilhar pontos de vista e iniciar assuntos importantes e maneiras de evitar determinadas situações que são insustentáveis.

Temos grandes erros na forma como pensamos e tratamos as violências internas, ou melhor, como não tratamos. Pautas de violência, opressão e contradições são muitas vezes apontadas como completamente externas, ignorando que nascemos, crescemos e vivemos no sistema capitalista e burguês, colocamos o fato de sermos organizados em um complexo partidário comunista como uma ação “mágica” que anula nossas reproduções externas, nossas vivências em sociedade e nossas experiências anteriores. As situações citadas acima ocorrem no cotidiano do Partido, só precisamos parar de ignorá-las ou neutralizá-las por causa da “camaradagem”.

Nossos erros também estão em como utilizamos as ideias, como comunistas usamos muitos termos com frequência e, sinceramente, muitos deles me geram cansaço e repulsa atualmente. “Autocrítica” com certeza é o pior deles neste momento porque removemos todo o real significado do conceito e tratamos autocrítica como um simples pedido de desculpas, sem análises, ações ou mudanças. Em 1928 Stalin já escrevia “Contra a vulgarização da autocrítica”, porém, aparentemente, 95 anos depois não conseguimos entender isso ainda e repetimos erros apontados há décadas.

A autocrítica não pode ser considerada algo efêmero e de curta duração. A autocrítica é um método particular, o método bolchevique de educação dos quadros do Partido e de toda a classe operária, no espírito do desenvolvimento revolucionário.

Principalmente nos casos de violência não podemos aceitar uma “autocrítica” que se apresenta unicamente em uma folha de papel, um docs ou uma fala rápida que envolva desculpas ou pedidos de perdão no final de uma pauta sobre o assunto. Quando foi que esquecemos que autocrítica é sobre uma análise sincera e ações reais? A autocrítica deveria ser uma parte indispensável da formação de todos militantes, mas que só se manifestará com a formação adequada e a genuína vontade da pessoa. Dizer que um camarada fez autocrítica depois de um simples “sinto muito” é esvaziar o debate, minimizar o problema e desconsiderar a violência, além de desprezar a dor gerada e criar outra pela revitimização.

Somado nisso, também há muitas dificuldades de comunicação e de organização em todo complexo que reforçam os processos de sobrecarga de militantes e a mecanização das divisões de tarefas. Em uma quantidade absurda de vezes não conseguimos estabelecer quais são as tarefas prioritárias e nem nossas áreas de atuação, acabando na tentativa de realizar todas as atividades que surgem sem um controle ou planejamento de médio ou longo prazo, já desenvolvi acima também quais são as pessoas mais afetadas por isso. Nossas formações não consideram aspectos específicos das minorias, não temos formações sobre autoestima ou autoconfiança política que poderiam evitar sobrecargas, somos deixados à própria sorte e sob o risco de superexploração nas nossas funções a fim de sermos “bons o suficiente”. Diminuir a dificuldade e o tempo demandados para adaptar ou modificar tarefas de acordo com as necessidades individuais ou coletivas é de extrema importância porque, infelizmente, boa parte das pessoas pertencentes às minorias são expostas as situações delicadas e são os primeiros a enfrentarem mudanças socioeconômicas e estruturais em qualquer oscilação da sociedade.

A comunicação entre as instâncias é uma vergonha (em todo complexo partidário). Se você precisar de alguma orientação, suporte ou acolhimento da instância superior, simplesmente esqueça. Na maior parte das vezes é ridículo o tempo de espera para algum desenvolvimento entre as bases e as dirigências. Situação que também ocorre entre os coletivos, já que nos tratamos como consultorias e não sabemos quais trabalhos e tarefas cada coletivo ou núcleo faz, o que sempre gera uma dificuldade para estabelecer comunicações efetivas e eficientes para qualquer coisa. A comunicação é nosso “tendão de Aquiles”, não podemos mais diminuir o problema, mas também precisamos compreender como este assunto demanda esforços e formulações organizativas, políticas, financeiras e logísticas, além de tempo.

Precisamos entender melhor como as diligências funcionam, quem as compõe e como podemos otimizá-las para melhor interação com as bases e menos sobrecarga dos militantes. Na parte de comunicação também temos que pensar como contribuições, acúmulos e experiências são compartilhadas. Na tribuna “'Onde estão as nossas direções? Um chamado à responsabilização das direções partidárias'” do camarada L. Queen temos alguns questionários e análises sobre os posicionamentos das dirigências.

Não existe o direcionamento prático, nem ideológico, por parte das direções individualmente, nem do Órgão Central enquanto sintetizador da linha partidária. Os militantes estão cansados; a cada dia mais militantes se afastam, se desligam, mais trabalhos políticos são abandonados ou paralisados e as direções pouco se conectam com a base, pouco as orientam.

Concordo com o camarada em diversos pontos, mas também estendo os questionamentos para a comunicação entre os coletivos. No meu núcleo sempre que pautamos sobre violências e acolhimentos alguém fala sobre ir atrás dos acúmulos do Ana Montenegro, mas como podemos fazer uma comunicação produtiva entre a juventude e o coletivo feminista? Além disso, em um cenário ideal, a juventude não deveria já saber dos acúmulos existentes nos coletivos do seu próprio complexo partidário? Por que isolamos todos os trabalhos? Quais são os obstáculos para a socialização das experiências? Precisamos começar do básico e formular a partir dos fatos fundamentais que temos no momento, questionar nossos hábitos e desconstruir a naturalização de uma estrutura problemática.

Conclusão

Acredito que seja claro como tenho muitos questionamentos e estou até um pouco cética com nosso complexo partidário, mas também acredito que podemos iniciar mudanças. É fundamental começarmos a pensar no que podemos realmente fazer e entendermos qual nossa estrutura e situação antes, durante e após o racha; se neste momento a prioridade é analisar e criticar as violências externas, ou melhor, se neste momento temos capacidade real de fazer isto. É natural que apontar o “defeito” ou erro dos outros é mais fácil, porém é essa nossa linha política?

As minorias presentes nas nossas fileiras sofrem diariamente opressões na sociedade, não deveríamos ser mais um espaço hostil, precisamos de formulações reais e efetivas sobre muitos assuntos e conceitos, como autocrítica, camaradagem e acolhimento. É inaceitável que a essa altura ainda temos tantas atitudes vazias que somente geram revitimização de camaradas a fim de promover um sentido de “resolução” no coletivo. Nenhum camarada que passou por uma violência deveria “ensinar” seus camaradas o que é, ou deveria ser, acolhimento. Nenhum camarada que foi vítima, em qualquer situação, deveria ser “forte” para lidar com o ocorrido por causa do despreparo de um complexo que não compreende sua própria estrutura. Nossos militantes fazem ótimas análises sociais e econômicas, mas quais são as funções internas dessas análises?

Não podemos mais achar que somos isentos de reproduzir violências, isto só dificulta de entendermos quais são nossos problemas prioritários e no processo de desenvolver táticas internas eficientes a partir de debates e formulações.  E a pergunta inicial para tudo isso é: estamos realmente dispostos a despender tempo, estudo e dedicação pela diversidade, inclusão e permanência de camaradas pertencentes às minorias? 

Esta tribuna ficou mais longa do que eu imaginava, mas além de ser uma reflexão e um desabafo também é um convite para pensarmos e definirmos qual será nossa estratégia e a partir disso formularmos as táticas externas e internas em que realmente acreditamos.

Abracinhos.


Bibliografia