'Sobre os processos disciplinares' (Dan Almeida, Juliana S. e Mariana Amaral)

Na presente tribuna, buscaremos examinar um pouco mais a fundo os problemas inerentes a nossos próprios institutos para a resolução de conflitos no interior do partido, em especial no que diz respeito ao tópico dos casos de violência ou opressão no interior de uma organização comunista.

'Sobre os processos disciplinares' (Dan Almeida, Juliana S. e Mariana Amaral)

Por Dan Almeida, Juliana S. e Mariana Amaral para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Muito temos falado, ao longo dos últimos anos, sobre os limites e contradições dos chamados “Processos disciplinares” - PDs - em nosso partido. O caso de Leonardo Godim, bem como diversas outras expulsões de militantes já denunciadas nas redes, não nos deixam dúvidas quanto aos usos de PDs na promoção de perseguição a figuras com divergências políticas em relação a suas direções.

Paralelamente, nosso último período de crise partidária tem escancarado denúncias antigas sobre como diversos casos de opressões, racismo, machismo, LGBTfobia e violência em geral, foram ignorados ou acobertados em nosso partido.

Até agora, nosso debate tem permanecido na superfície da polêmica. Há casos de “quebra de disciplina”, há mecanismos no partido supostamente voltados a coibir essas situações e há também um “uso seletivo” de tais institutos em nossas fileiras.

Na presente tribuna, buscaremos examinar um pouco mais a fundo os problemas inerentes a nossos próprios institutos para a resolução de conflitos no interior do partido, em especial no que diz respeito ao tópico dos casos de violência ou opressão no interior de uma organização comunista, e delinear algumas sugestões sobre medidas que podem ser tomadas para avançarmos nessas questões.

1. Para que servem os Processos Disciplinares?

Inicialmente, cabem algumas considerações sobre como o PCB atualmente formula a questão dos casos de violência e resolução de conflitos. Vamos relevar aqui o quanto nosso estatuto é ignorado cotidianamente, relevemos também o fato de que para alguns dirigentes o estatuto é mera perfumaria jurídica e façamos uma reflexão sobre os limites de nosso estatuto mesmo em circunstâncias em que fosse seguido à risca.

A dinâmica de processos disciplinares do PCB é organizada no capítulo IV de nosso estatuto, dos artigos 12 a 18 com um apanhado de parágrafos complementares. Recomendamos a todos/as nossos/as camaradas que leiam esses artigos, será uma leitura breve e não muito complexa.

Reparem bem, camaradas, que temos um único capítulo de todo nosso estatuto montado para a resolução de todos os conflitos e situações em que um militante “viole a ética partidária”. Um único capítulo onde é uma proposta uma metodologia unitária para a resolução de todas as situações de “quebra de disciplina”, seja ela uma fala descentralizada em um evento público ou uma agressão física contra outra pessoa, uma atuação equivocada em alguma tarefa ou uma série de condutas racistas.

Todas essas situações das mais diversas naturezas podem ser “resolvidas” através da aplicação das mesmas 7 medidas. O estatuto não traça parâmetros para a forma de responsabilização, apenas lista 7 possíveis medidas a serem aplicadas e “confia” nas instâncias para aplicá-las de modo adequado. Na prática, podemos ter um caso hipotético de dois militantes tendo a exata mesma conduta e sendo responsabilizados de modo diverso. Ou, um militante notório por condutas machistas pode receber uma “censura verbal” ao passo que os desafetos de certos dirigentes podem ser expulsos por divulgarem um livro “em desacordo com a literatura partidária”.

O que se constata é que nosso estatuto busca emular, na dinâmica de seus processos disciplinares, a própria formula geral da forma jurídica e do direito burguês. Mas mesmo aí, emula de modo tosco e anêmico. Não chegamos a ter um processo, no sentido mais qualificado do termo em temas de direito civil ou penal, já que os mecanismos de ampla defesa são quase nulos para além da “possibilidade de recorrer”.

A dinâmica de processo disciplinar prevista no estatuto reproduz o que há de mais patético na forma geral do direito burguês, a pretensão de uma “troca equivalente”, mas em nosso caso isso ocorre sem a garantia "formal" de equivalência. Onde o direito burguês em geral serve para mediar relações de troca e a relação penal (a relação jurídica de “máxima disciplina”) trata de uma troca “pós fato”, onde o preço por uma conduta é definido em uma punição proporcional ao dano dela, nosso estatuto larga qualquer pretensão prática de garantir proporcionalidade.

Por fim, e talvez o mais grave, nosso estatuto traz ainda menos respaldo para a vítima, para a parte ofendida, do que o direito burguês.

No direito penal burguês não há, via de regra, grande preocupação com a satisfação dos interesses da vítima. Sua dor e seu sofrimento fundamentam o processo penal, são a base formal com a qual o “preço” da ação de um acusado será medido, mas no essencial a vítima é encarada como simples instrumento do processo. A vítima é um meio de se provar a ocorrência ou não de um fato. Mas ao menos algumas disposições, vagas e ignoradas que sejam, são feitas sobre ela. Em nosso estatuto não há essa preocupação.

Tal qual na justiça burguesa, nós centramos nosso debate no ofensor: Qual o tamanho do mal que fez? Até onde deve pagar pelo que fez? Uma autocrítica é suficiente? Ou ele deve ser expulso de nossas fileiras? Essas são as perguntas que nosso estatuto promove.

Como está a vítima? Quais são suas demandas? Ela tem demandas distintas perante a coletividade do partido e em relação ao camarada sendo avaliado? O que o agressor, a instância da vítima e o próprio partido em sentido amplo podem fazer para auxiliar a vítima e reparar o dano que sofreu? Alguma dessas medidas é do interesse da vítima? Nenhuma dessas perguntas é encaminhada por nosso estatuto.

Com a construção de um XVII congresso, temos a oportunidade de discutir coletivamente em que termos queremos lidar com nossos conflitos internos. Sabemos que quanto mais crescer nosso partido, quanto mais camaradas distintos estiverem compondo nossas fileiras, maiores as contradições que teremos de enfrentar. Se não queremos ser uma seita de militantes iluminados, precisamos reconhecer que é inevitável o surgimento de conflitos e manifestações diversas de opressões em nossas fileiras. Mesmo o melhor e mais qualificado militante está sujeito a reproduzir o que há de mais grotesco na sociabilidade capitalista, ainda que sem ter essa intenção. O que ditará a qualidade de nosso partido, e de nossa militância, está na forma como irão responder a tais contradições quando elas (inevitavelmente) se manifestarem.

2. Menos disciplinamento, mais responsabilização e acolhimento

Primeiramente, é necessário separar o joio do trigo. Precisamos de procedimentos diversos para lidar com atitudes “descentralizadas” ou que ferem a “disciplina partidária em geral” para as situações onde um militante agiu de modo a promover algum dano perante outro camarada, seja este dano de natureza física, psicológica ou moral.

Na medida em que nosso estatuto e nossas dinâmicas internas de resolução de conflitos reproduzem alguns aspectos da justiça burguesa, podemos contar com alguns acúmulos dos debates críticos sobre o direito para avançarmos no tratamento de nossos conflitos internos.

Façamos então uma breve digressão para analisar algumas perspectivas de metodologias para a resolução de conflitos que caminhem para além da dinâmica tradicional da justiça burguesa, de avaliar a “pena” a ser paga pelo ofensor.

Passando por ao menos uma referência abolicionista penal, Angela Davis traz uma perspectiva sobre formas de responsabilização que vão além da dinâmica punitiva tradicional:

“É no contexto dessas alternativas abolicionistas concebidas de forma mais ampla que faz sentido abordar a questão das transformações no sistema de justiça existente […] além de minimizar, por meio de várias estratégias, os tipos de comportamento que levam as pessoas a ter contato com a polícia e os sistemas de justiça, há a questão de como tratar aqueles que violam os direitos e o corpo dos outros. […] Em casos limitados, alguns governos tentaram implementar alternativas que abrangem desde a resolução de conflitos até a justiça restaurativa. […] Existe uma literatura crescente sobre a remodelação dos sistemas de justiça por meio de estratégias de reparação, em vez de retaliação, bem como um crescente número de evidências empíricas das vantagens dessas abordagens para a justiça e das possibilidades democráticas que elas prometem” (DAVIS, 2018, p. 122-123).

A mediação proposta por Davis se firma a partir de não mais centrar nosso debate na aplicação de uma “pena” e sim no enfoque para a questão da “reparação do dano”. A discussão deixa de ser sobre o quanto alguém deve sofrer para ser disciplinado por sua transgressão e se torna um debate sobre como um dano pode ser reparado.

Numa linha diversa mas com margem para diálogo com Davis, Nils Christie traz uma proposta que consideramos interessante. Embora este criminológo seja profundamente averso ao marxismo de modo geral, e não nos sirva enquanto referência teórica em sentido amplo, há reflexões suas que são ao menos em parte aproveitáveis.

Reconhecendo a dinâmica com a qual a justiça burguesa sequestra das vítimas de crimes a autonomia sobre a resolução de seus conflitos, o teórico escandinavo traz a proposta de um tribunal orientado a partir das demandas da vítima.

Chegada a denúncia sobre um conflito, uma situação onde uma pessoa sofreu algum dano de outra, a primeira resposta proposta por Christie é a realização de uma apuração para determinar a materialidade da ocorrência. Até aí, nada revolucionário. Ao menos em tese este é um procedimento formalmente reconhecido em algum nível até mesmo por nosso estatuto vigente.

Constatada a materialidade, vem uma segunda fase onde a dinâmica proposta por Christie começa a se diferenciar. Dada a materialidade da ofensa, se encaminha uma “segunda fase” da resolução de conflitos, uma onde começa a se firmar a construção de um “tribunal orientado para a vítima”:

“Esta seria a fase em que a situação da vítima é levada em consideração, todos os detalhes sobre o que aconteceu – juridicamente relevantes ou não – são trazidos à atenção do tribunal. Particularmente importante aqui seriam as considerações sobre o que pode ser feito pela vítima, primeiramente, por seu ofensor; depois, pela comunidade local; e, por último, pelo Estado. Seria possível compensar os danos, consertar a janela quebrada no incidente, trocar a fechadura arrombada, pintar as paredes, ressarcir a perda de tempo pelo roubo do carro através de faxinas na casa ou lavar o carro por dez domingos seguidos? Ou, talvez, quando a discussão comece, os danos não pareçam tão graves quanto pareciam nos documentos escritos para comover as companhias de seguro? Seria possível que o sofrimento físico ficasse um pouco menos doloroso diante de alguma retribuição do ofensor durante dias, meses ou anos? Além disso, a comunidade esgotou todos os recursos possíveis e disponíveis para ajudar no caso? Será que o hospital local poderia fazer alguma coisa?” (CHRISTIE, 1977. Tradução de autoria nossa)

Somente após esse procedimento é que Christie coloca em pauta a necessidade de uma “punição”. O próprio processo de apuração e reparação do dano à vítima pode ser considerado “punitivo” o suficiente para responsabilizar um ofensor. Mas há situações em que, mesmo reparando o dano ou diante da impossibilidade de reparação, a comunidade tenha a demanda por alguma sanção.

Por fim, Christie também pondera que após esse extenso procedimento, devem ser avaliadas as demandas do próprio ofensor. Não é preciso muita imaginação para supor que, em especial após um procedimento onde alguém é julgado coletivamente, essa pessoa tenha suas próprias demandas diversas, que podem ser de natureza social, educacional, médica ou até mesmo religiosa.

Dadas as devidas proporções, e reconhecemos que são propostas de contextos completamente distintos entre si, podemos reivindicar no histórico do marxismo experimentos que dialogam em maior ou menor medidas com as propostas de resolução de conflitos coletivas e focadas na garantia de agência e autonomia para a comunidade afetada. Um exemplo notável é o relato de Louise Bryant sobre os tribunais populares no contexto da revolução russa (BRYANT, 2022).

Nenhuma das propostas elencadas anteriormente é livre de contradições. Pode-se dizer a mudança de ênfase “da punição” para a “reparação dos danos" não sai dos marcos da dinâmica geral da forma jurídica apontada por Pachukanis. O fato de que algo não é chamado de punição também não significa que não será vivenciado como uma experiência punitiva, afinal a reparação de um dano (tanto quanto qualquer forma de responsabilização) pode ser uma experiência que impõe sofrimento mesmo onde isso não é um objetivo intencional.

Isso posto, ainda acreditamos que por mais contraditórias que sejam essas propostas, o enfoque no bem estar das pessoas ofendidas, na dinâmica coletiva de resolução do conflito e na perda de centralidade do aspecto intencionalmente “punitivo” do procedimento são todos fatores positivos a serem considerados.

Destacamos, por fim, um último aspecto positivo da mudança geral de enfoque.

É comum em debates sobre casos de violência ou opressões que o debate permaneça em um binarismo: Se a vítima passou por um sofrimento real e digno de acolhimento, o ofensor deve ser escrachado e odiado. Se o ofensor ainda pode ser visto como pessoa digna de respeito, então a vítima não relatou um sofrimento tão grande.

No geral esse binarismo é uma falácia, ele encobre o fato de que vítima nenhuma recebe acolhimento que não arranque com suas próprias mãos, já que o bem estar da vítima sequer passa por mais de uma preocupação secundária e momentânea.

Contudo, mudando o foco do debate para os termos propostos acima, podemos sair dos binarismos que busgam “monstros” a serem expurgados. Podemos reconhecer que o nível de dor que uma pessoa vivenciou em uma dada situação é algo inteiramente autônomo em relação à gravidade objetiva da ofensa que alguém cometeu. Uma mesma frase ou toque pode representar graus completamente distintos de dor e sofrimento para pessoas diversas entre si, que podem ter enormes (e justas) demandas de apoio/acolhimento sem que isso necessariamente signifique que faça sentido uma sanção pesada para o ofensor.

Poderemos reconhecer que uma mesma pessoa pode ser vítima e ofensor em situações distintas ou até mesmo em momentos diversos de uma mesma relação. É até (infelizmente) comum que certas vítimas de violência reproduzam determinados comportamentos violentos com terceiros.

Podemos até mesmo reconhecer que em alguns casos, não haverá materialidade que comprove ofensa a ser punida. Os meios de investigação à nossa disposição, não raras vezes, são precários. Isso não significa que uma pessoa deixe de merecer ser acolhida, ainda que não faça sentido sancionar alguém por algo que não se pode constatar.

3. Propostas para Processos de Resolução de Conflitos

Feitas essas digressões, retomemos o debate sobre nosso próprio partido.

Sabemos que a incorporação dos acúmulos citados acima nos procedimentos internos de um partido seriam algo difícil mesmo em uma conjuntura de normalidade política. O desafio é ainda maior num momento de crise, onde boa parte do aparato partidário se encontra nas mãos de uma fração anti-leninista e burocrática.

Contudo, ainda que não se possa incorporar tudo de uma vez, tais reflexões podem ao menos delimitar um norte com o qual o partido possa guiar seu processo de reorganização.

Por essa razão, trazemos algumas propostas gerais para as formas com as quais lidamos com casos de violência, opressões e outras agressões dentro da militância.

Não é um projeto perfeito ou acabado, não é livre de contradições ou da possibilidade de instrumentalização política por parte de pessoas sem escrúpulos (nenhum aparato que permite repressão é imune a isso, todo processo é processo político). Ainda assim, é uma proposta inicial para nosso debate coletivo.

Uma proposta cuja implementação concreta demandaria esforço político, logístico e financeiro do conjunto de nossa militância. Mas é uma proposta que almeja auxiliar em uma tarefa central de nosso partido: a garantia do bem estar físico, psicológico e moral de nossos militantes. Um partido que pretende ser instrumento de combate da classe trabalhadora contra a burguesia não pode ser ele próprio um instrumento de violência contra os setores mais oprimidos da própria população trabalhadora, para tanto ele demanda estrutura.

Por fim, somos partidários da tese de que, onde nossas estruturas falharem, onde formos obrigados a escolher entre alternativas desagradáveis e não exista solução prevista em nossos estatutos, onde nossas debilidades organizativas se coloquem de modo incontornável, devemos priorizar sempre o bem estar dos/das camaradas ofendidos por algum dano. Isso vale mesmo quando causar um desconforto (injusto e lamentável que ele seja) para aqueles que causaram a ofensa.

Projeto de Processo para Resolução de Conflitos - PRC

1. Comissão colegiada para apurar denúncias: Recebida uma denúncia de ofensa física, moral ou psicológica de um camarada para outro/a, deve ser estabelecida comissão colegiada para apurar/relatar o caso

a. Composição diversa da comissão: A comissão será composta por camaradas pertencentes a instâncias comuns tanto à parte ofensora quanto à parte ofendida, assegurando a imparcialidade do processo

b. Diversidade de gênero, raça e sexualidade: Buscaremos garantir a diversidade de gênero, raça e sexualidade entre os membros da comissão para melhor compreensão e acolhimento das partes envolvidas.

c. Respeito e acolhimento: Os membros da comissão devem agir com respeito e acolhimento perante ambas as partes, promovendo um ambiente seguro para a apresentação de relatos e depoimentos.

d. Imparcialidade emocional: A participação de qualquer pessoa emocionalmente comprometida com as partes envolvidas pode ser suspensa, assegurando a objetividade da apuração.

2. Apuração objetiva da denúncia

a. A apuração focará em questões concretas e específicas, evitando julgamentos sobre o caráter geral dos envolvidos.

b. Denúncia específica para apuração: Somente será aberta uma apuração com base em denúncia específica de um/uma camarada que tenha sido alvo de dano moral, físico ou psicológico. A apuração deve versar sobre a ocorrência ou não de ação específica e dano perante a parte ofendida, bem como da gravidade deste.

c. Sigilo da apuração: Todo o processo de apuração será conduzido em completo sigilo, sendo constituído ofensa a ambas as partes o vazamento de informações a terceiros não envolvidos no processo (partes e comissão).

d. Escuta de todas as partes: A apuração esgotará todos os meios razoáveis de investigação, incluindo a escuta da parte ofendida, da comunidade afetada e, por último, do possível ofensor.

e. Notificação e direito de defesa: O possível ofensor será notificado sobre as acusações e terá a oportunidade de rebatê-las e propor medidas de apuração que podem ou não ser acatadas.

f. Direito de saber a acusação: O ofensor tem o direito de saber do que e por quem está sendo acusado, permitindo-lhe se defender de forma adequada.

g. Última palavra do ofensor: O ofensor terá a última palavra em qualquer espaço de discussão que o envolva, na apuração ou no processo em si, antes que qualquer decisão seja tomada.

3. Relatório e deliberação coletiva: A comissão de apuração apresentará um relatório para a instância do ofensor, onde na presença do ofensor, ambos discutirão e deliberarão coletivamente sobre a existência de uma ação específica que tenha ofendido a outrem.

a. Possibilidade de recurso: Ambas as partes têm o direito de recorrer à instância superior caso discordem da decisão tomada.

b. Arquivamento: Caso se conclua pela falta de materialidade de ação específica que constitui ofensa a outre camarada, o caso é arquivado.

4. Acolhimento à parte ofendida: Independentemente da apuração e responsabilização do potencial ofensor, o acolhimento à parte ofendida será garantido.

a. Mesmo em casos onde a comissão relatora conclua pela falta de evidências de ofensa concreta e promove o arquivamento da apuração, isso não impede a necessidade de se garantir condições de acolhimento a pessoa ofendida

b. Busca-se o acolhimento de camaradas ofendidos através do amparo coletivo de demais camaradas, apoio psicológico e material, além do que mais for possível para seu bem estar físico e moral na medida das possibilidades do partido

c. Representação por terceiros: A parte ofendida poderá designar um terceiro para agir e representá-la durante o processo, garantindo sua intimidade e privacidade. Essa representação pode ser revogada a qualquer momento.

d. Sigilo e anonimato: A parte ofendida tem direito a total sigilo, com o uso de codinome para preservar sua intimidade perante terceiros e a requisitar medidas de proteção conforme as possibilidades materiais do partido

5. Resolução após afirmação da materialidade da ofensa: Se instância conclui pela materialidade da ocorrência, é convocada reunião específica para pautar a ofensa e debater medidas a serem tomadas de modo colegiado pela instância

a. A medida prioritária a ser tomada é a reparação do dano a parte ofendida e a comunidade afetada, não a punição do ofensor (ainda que a medida lhe cause desconforto)

b. Na reunião de deliberação devem ser ouvidas demandas específicas da parte ofendida em termos de reparação, sempre que existirem

c. Na reunião de deliberação, deve ser discutido como a comunidade/instâncias de ofendido/ofensor podem contribuir para a reparação do dano.

d. Medidas de reparação podem ser tomadas cumulativamente por instâncias diversas e pela parte ofensora, tendo sempre em vista que o prioritário é o bem estar da parte ofendida e não a imposição de sofrimento ao ofensor

e. Caso pertinente, também podem ser trazidas medidas para que a parte ofensora repare seu dano perante a própria comunidade afetada

f. Após as etapas anteriores, caso o ofensor tenha propostas de reparação (financeiras, morais, éticas ou etc) estas também devem ser ouvidas

6. Reparação de danos: A medida de reparação de danos pode exigir do ofensor qualquer comprometimento de tempo, finanças ou tarefas que a instância julgadora, como aval da parte ofendida, avalie como adequada e proporcional para compensar o dano causado e promover o bem estar das partes ofendidas e/ou da comunidade afetada

a. Em circunstâncias onde não há como se reparar o dano a parte ofendida, torna-se prioridade avaliar medidas a serem impostas para o ofensor e sua comunidade repararem o dano a pessoas afetadas por casos similares e/ou prevenir ofensas similares por parte de outros/as no futuro

7. Medidas de responsabilização do ofensor: Após a deliberação sobre eventual medida de reparação do dano tanto a parte ofendida quanto à própria comunidade afetada, o debate se volta ao ofensor em si e a necessidade ou não de medidas adicionais de responsabilização

a. A reparação do dano já é em si uma forma de responsabilização pela ofensa e medidas adicionais somente podem ser tomadas em circunstâncias onde a maioria da instância avaliadora e a própria parte ofendida acreditem na necessidade de tais medidas

b. O ofendido deve ter oportunidade de apresentar previamente medidas de responsabilização que acreditar pertinentes, que podem ou não ser acatadas ao final

c. Medidas adicionais de responsabilização incluem:

i. Autocrítica interna e ou externa

ii. Afastamento provisório de tarefa/instância até a constatação de autocrítica prática, a ser avaliada pelo órgão que deliberou o afastamento

iii. Afastamento definitivo de tarefa/instância

iv. Direcionamento para tarefas específicas em que atue diretamente na melhoria das condições de pessoas afetadas por ofensas similares a cometida

v. Expulsão

d. Medidas adicionais de responsabilização podem ser sugeridas pela parte ofendida e pelo próprio ofensor, mas não por terceiros sem a anuência de ambos.

e. Qualquer medida não prevista em escrito deve levar em conta o respeito à dignidade e integridade física de todas as partes.

f. Terminado o debate sobre responsabilização e reparação, deve ser escutado o ofendido para que traga suas próprias demandas que acreditar pertinentes (psicológicas, morais, éticas e etc) para a avaliação de como sua instância pode ajudar

8. Medidas de segurança: Ao longo do processo de apuração, por deliberação da comissão relatora e a pedido da parte ofendida, é cabível medida de segurança contra o ofensor

a. Medidas somente previamente previstas em escrito como: Afastamento temporário de tarefas ou instâncias, restrição de atuação

b. Da decisão que aplica medida de segurança cabe recurso à instância superior dos membros da comissão (o recurso não suspende efeito)

c. O ofendido tem direito a anonimato perante ofensor, podendo ser representado por terceiro em todo o processo. Mas não de anonimato perante a comissão que apura a situação.

9. Reabilitação política plena: Cumpridas as medidas de reparação e responsabilização, o/a camarada que cometeu ofensa tem direito a reabilitação política plena e o uso de sua conduta prévia como fator de desqualificação moral ou política por terceiros deve ser considerado como ofensa ética

a. Nenhuma medida provisória que tenha sido tomada na fase de apuração pode persistir para além de reunião que tenha deliberado sobre quais as medidas a serem aplicadas para a reparação de danos


BRYANT, Louise. Seis meses na Rússia vermelha. São Paulo: LavraPalavra Editorial, 2022. Capítulo XIX

CHRISTIE, Nils. Conflicts as property. Publicado originalmente no The British Journal of Criminology, vol. 17, jan. 1977, n1. Disponível em: https://hotsite.mppr.mp.br/arquivos/File/MPRestaurativo/Material_de_Apoio/Conflicts_as_Pr operty_by_Nils_Christie.pdf

DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?. Tradução de Marina Vargas – 1ed. – Rio de Janeiro: Difel, 2018