'A importância do movimento feminista classista dentro de uma organização comunista' (Deisy Yumi, Jessica Uchôa, Flora)

O horizonte de nossa luta é que todo o Partido se aproprie do feminismo classista, tanto em teoria quanto em prática, mas reconhecemos que temos ainda um longo caminho pelo qual devemos combater coletivamente e de maneira firme todos os desvios e violências baseados em gênero, raça e sexualidade.

'A importância do movimento feminista classista dentro de uma organização comunista' (Deisy Yumi, Jessica Uchôa, Flora)
"Nossa tática não é, portanto, a fragmentação e o antagonismo entre mulheres e homens trabalhadores, mas justamente o oposto: é a união da classe trabalhadora em sua totalidade para colocar fim ao sistema capitalista."

Por Deisy Yumi, Jessica Uchôa, Flora para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Introdução

Elaboramos aqui sobre o feminismo classista, cuja luta central é a de classes, compreendida e analisada pelo método do materialismo histórico e dialético. Assim, a partir de uma análise materialista-histórica da realidade, enquanto comunistas, compreendemos que, a sociedade capitalista é dividida em classes, com a burguesia sendo a classe dominante, responsável pela exploração do proletariado. Essa, no entanto, não constitui uma classe homogênea, mas é formada por diferentes sujeitos, cuja vivência sob o capitalismo, não é dada apenas sob sua condição enquanto classe, mas também é permeada pelas dimensões de gênero, raça e sexualidade. Tais recortes, por sua vez, são mobilizados pelo próprio sistema para, por um lado, criar hierarquias entre os trabalhadores e, por outro lado, intensificar a exploração das minorias.

O feminismo classista reconhece, desse modo, que, assim como a opressão de classe, as opressões de gênero, de raça e sexualidade, possuem uma origem comum: o capitalismo, sendo necessária a superação desse sistema, por meio da revolução socialista do proletariado, para que haja a plena eliminação dessas opressões. Trata-se de uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que o combate efetivo às opressões só é possível quando alinhado à luta anticapitalista, o movimento revolucionário apenas será bem-sucedido quando, enquanto expressão da classe trabalhadora, incorporar as lutas feministas classistas, antirracistas e LGBT+. Nossa tática não é, portanto, a fragmentação e o antagonismo entre mulheres e homens trabalhadores, mas justamente o oposto: é a união da classe trabalhadora em sua totalidade para colocar fim ao sistema capitalista.

Precisamos lembrar que a fragmentação da nossa classe, inaugurando uma forma de opressão de nós por nós mesmos, foi imposta ou aprofundada pelo capitalismo para minar a nossa capacidade revolucionária.

Em seu livro, Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, Silvia Federici registra:

“Assim como o sexismo, o racismo teve que ser legislado e imposto. Dentre as proibições mais reveladoras, devemos, mais uma vez, levar em conta que o casamento e as relações sexuais entre negros e brancos foram proibidos. As mulheres brancas que se casaram com escravos negros foram condenadas e os filhos gerados desses casamentos foram escravizados pelo resto de suas vidas. Estas leis, aprovadas em Maryland e na Virginia, na década de 1660, são provas da criação de cima para baixo de uma sociedade segregada e racista, e de que as relações íntimas entre “negros” e “brancos” deveriam ser, efetivamente, muito comuns, se para acabar com elas considerou-se necessário recorrer à escravização perpétua.” [FREDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017, p.216]

Sobre o feminismo classista

O campo de disputa que enfrentamos é contra a propagação do feminismo burguês orientado sobre uma falsa ideia de liberdade, baseada em pautas identitárias, que apenas acomoda a mulher no mundo da exploração sobre prerrogativas que encobrem a real necessidade de elevação da classe operária. Acreditamos que a nossa real emancipação enquanto mulheres, pessoas negras e LGBT+ só poderá ser alcançada com a superação da sociedade dividida em classes por meio da revolução socialista. Porém, as contradições de uma sociedade não findam magicamente com a queda do sistema político e econômico vigente. É preciso, dentro do processo de transição, lutar para que todas as opressões, impregnadas dentro da nossa classe, se dissolvam. Sobre isso, Aleksandra M. Kollontai, liderança da Revolução de 1917, ressalta:

“Aquilo que as proletárias alcançaram em termos de elevação de sua condição econômica se deve, acima de tudo, aos esforços conjuntos da classe trabalhadora e, em especial, a si próprias.

A história da luta das trabalhadoras por melhores condições de trabalho, por uma vida tolerável é a história da luta do proletariado por sua libertação.” [KOLLONTAI, Aleksandra. A mulher trabalhadora na sociedade contemporânea. In: A revolução das mulheres. São Paulo: Boitempo, 2017, p.153].

Portanto, um modo de produção baseado na acumulação e na reificação do ser social está intrinsecamente ligado ao ideal de perpetuação do regime patriarcal, pois interessa ao capital que a mulher não se profissionalize e se mantenha ocupada pelo trabalho reprodutivo não remunerado ao passo que fomenta uma realidade material, na qual, a mulher tenha que também vender a sua força de trabalho. Em outras palavras, a violência contra a mulher é institucionalizada a partir do controle dos corpos das pessoas que gestam e pela divisão sexual do trabalho, que historicamente encarrega a mulher dos deveres domésticos em sua esfera privada, de forma a condená-las a uma dupla jornada, uma vez que o Estado burguês impõe a necessidade de sustento individual e familiar a partir do trabalho remunerado, muitas vezes ainda incapaz de suprir as demandas de sobrevivência básicas, levando à uma ainda maior precarização das mulheres, principalmente mulheres negras, que compõem a nossa classe.

A luta das mulheres trabalhadoras assim como a luta dos movimentos negro e LGBT+ são, portanto, cruciais para os comunistas. Não por acaso, a primeira experiência de um Estado socialista e revolucionário promoveu políticas públicas pioneiras voltadas para a população feminina, que consideravam a condição de dupla exploração das mulheres e buscavam sua emancipação. A legalização do aborto deu-se já em 1920, antes mesmo da proclamação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, e foi seguida de outras medidas que visavam a socialização das atividades de reprodução social relegadas às mulheres no sistema capitalista, como por exemplo a criação de lavanderias e refeitórios comunitários. Por meio dessas ações, o Estado soviético buscou retirar a carga do trabalho doméstico não pago que recai sobre as mulheres, promovendo, assim, não apenas o reconhecimento do trabalho de reprodução social, mas um avanço importante no que diz respeito à emancipação feminina.

Todos esses avanços para as mulheres trabalhadoras promovidos pelo Estado socialista foram possíveis, justamente, porque essa instituição, a partir de uma análise materialista histórica-dialética da realidade, reconhecia, por um lado, a condição de dupla subjugação das mulheres sob o capitalismo, que se vale da superexploração do trabalho feminino, e, por outro lado, compreendia a centralidade de se combater a opressão contra as mulheres proletárias para garantir o sucesso do desenvolvimento do socialismo no país.

Desafios dentro do Partido

Essa tribuna se faz necessária levando em consideração a constante invalidação das nossas demandas e existência enquanto movimento por parte de militantes dentro do Partido. A quantidade de denúncias internas de assédio e o recorrente tratamento paternalista com as nossas camaradas, por exemplo, são prova de que os homens dentro desse espaço reproduzem a lógica sexista e misógina do sistema ao qual visam combater. Por isso devemos nos questionar, se o coletivo comprometido com as pautas do feminismo classista cumpriu muitas tarefas de forma exemplar e avançou no movimento de massas, por que não conseguimos formar nossos próprios companheiros de fileiras?

Durante anos a luta das mulheres foi relegada dentro do PCB-CC a partir de uma ótica não materialista sobre a realidade da mulher brasileira que levou à instrumentalização do CFCAM, dado que era atribuído ao coletivo todas as preocupações relativas ao movimento feminista, além da cobrança de presença nas tarefas gerais da militância, pois assim o Partido se fazia presente no movimento de massas à medida que não absorvia em seu regimento interno a formação feminista classista operada no coletivo. Com isso, devemos considerar também as inúmeras denúncias de machismo e misoginia dentro do complexo, que, ao invés de serem tratadas e refletidas pelas direções, foram, imprudentemente, terceirizadas ao coletivo.

Ademais, essa alta demanda aos núcleos do CFCAM era administrada por um número restrito de militantes ativas, uma quantidade não justificada pela falta de recrutamentos, mas devido à alta rotatividade de militantes dentro do coletivo, provocada pela sobrecarga de tarefas não conciliativas com o cenário da mulher trabalhadora num sistema de preservação da exploração patriarcal. A limitação frente às nossas demandas não apenas refletiu nos sucessivos afastamentos e na pouca profissionalização das militantes, mas também na desconsideração do caráter político do coletivo por parte das direções e, em consequência, por parcela significativa do complexo - pois não é de se assustar a lacuna de acúmulo teórico sobre a produção de mulheres marxistas por grande parte da militância - garantindo a continuidade de um regimento sectário e oportunista.

O horizonte de nossa luta é, sem dúvida, que todo o Partido se aproprie do feminismo classista, tanto em teoria quanto em prática, mas reconhecemos que temos ainda um longo e tortuoso caminho pelo qual devemos combater, coletivamente e de maneira firme, todos os desvios e violências baseados em gênero, raça e sexualidade. Dessa forma, a partir do nosso entendimento marxista-leninista, é imprescindível que a luta de alas organizadas a partir do reconhecimento de uma fraqueza ideológica dentro da militância finde em si mesma, quando, a partir de uma construção coletiva, se torne um valor hegemônico aliado à práxis do partido.

Reforçamos que essa é uma responsabilidade coletiva, se silenciar diante de uma violência a uma de nós não é, ou pelo menos não deveria ser, opção. O nosso entendimento é que a prioridade dos comunistas deve ser a de formar quadros que vão abarcar todas as realidades da nossa classe e não excluir e segregar com base em dificuldades individuais. Por isso, devemos lutar por um partido que compreenda a realidade material das populações que mais sofrem com a violência do estado e se organize de forma a não cercear essa presença nos debates, criando meios práticos que adequem a participação deliberativa com a conjuntura vivenciada por esses grupos-alvo da exploração capitalista.

Uma sugestão que fazemos, portanto, é mapear o nosso Partido e, a partir do entendimento de nossos militantes, debater as questões que aparecem, por exemplo: por que a predominância de homens brancos, especialmente em instâncias de direção?

Essa proporção reflete, é claro, a realidade material da nossa sociedade. Pessoas dentro dos grupos minorizados possuem de fato menos tempo e possibilidade para se dedicar à militância. Quando falamos de mulheres, especialmente as racializadas, estamos lidando com a carga do trabalho invisibilizado de cuidado que sobrecarrega e impossibilita a participação ativa em espaços de luta como o nosso.

Cientes dessas dificuldades, o que estamos fazendo para combater a lógica meritocrática que impera dentro do Partido? Como socializar os conhecimentos adquiridos das mais diversas formas?

Para que haja o saciamento dessas questões, defendemos a continuidade da existência de um órgão partidário que contemple a história e o legado do CFCAM sob os moldes que mais contemplarem o pleno, órgão o qual irá atuar como ala encarregada de se ocupar com a diligência política do partido - com o objetivo de instigar, organicamente, a apropriação do feminismo classista por parte de toda a militância - e não como instância meramente relacionada à organização de um espaço em comum. Propomos que haja um maior incentivo, por parte dos dirigentes, à composição de camaradas de todo o complexo partidário nas tarefas relacionadas à construção do feminismo classista, tal como a participação nas formações que tratem desse tema, devendo haver um número mínimo desses militantes cooperando nas atividades propostas, de forma a conduzir a discussão para dentro de seus respectivos organismos de base. Além disso, é de suma importância que a inserção do debate sobre a condição da mulher trabalhadora não se restrinja apenas ao âmbito teórico e passe a alcançar os locais de trabalho de base do partido, em vista da construção de um diálogo direto com a mulher trabalhadora, aspirando o reconhecimento de sua condição ocasionada pela divisão do trabalho que só poderá ser superada por meios materiais de organização coletiva.

Conclusão

Esses apontamentos nos fazem reiterar o óbvio: se a população feminina se faz presente no contingente das massas na luta de classes, é tarefa de cada camarada se atentar às questões que as tocam. É inadmissível que nossas militantes continuem sendo silenciadas, isoladas e abusadas dentro de uma organização que se pretende verdadeiramente comprometida com a luta da classe trabalhadora. Uma organização que tem em seu horizonte a extinção, enquanto classe, da burguesia, e a construção de uma sociedade comunista. É inadmissível que tenhamos que justificar como as nossas demandas se relacionam com as demandas de nossa classe. Chegou a hora desse Partido reconhecer, validar e se apropriar da luta das mulheres trabalhadoras e demais grupos oprimidos como central dentro da militância, pois, como o camarada Lênin disse mais de uma vez: “A plena libertação feminina só será possível com o socialismo”.


Referências:

[FREDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017, p.216]

[KOLLONTAI, Aleksandra. A mulher trabalhadora na sociedade contemporânea. In: A revolução das mulheres. São Paulo: Boitempo, 2017, p.153].

Autoria:
Deisy Yumi, Jessica Uchôa, Flora