'Violência política: Dentro e fora dos partidos comunistas' (Soeli)
É angustiante ser dos grupos de minorias sociais, sofrer opressão e ver que a nossa dor não é levada a sério por aqueles/as que compõem o mesmo espaço de luta, espaço esse que deveria ser de acolhimento.
Por Soeli para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Camaradas, as reflexões que trago a esta tribuna é também de um desabafo. Parte deste texto foi escrito no início do ano, enquanto eu ainda compunha a militância do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro. Na época foi direcionado internamente para a Coordenação Estadual de São Paulo para discussões internas no coletivo. Acabou que ele empacou em algum lugar e eu não tive a devolutiva. Abordo principalmente as opressões cometidas contra nós mulheres. Algumas situações eu vivi ou presenciei dentro da militância, porém, optei por não citar quais. Fora da militância eu nem preciso mencionar. Só imaginem essas somadas às que vivenciamos na militância. Essas violências vão acontecendo de forma gradual, e,vejo que em alguns casos também percorrem um ciclo. Nem todas as violências são perceptíveis e identificadas como tal por boa parte da militância que é predominantemente masculina. Avalio que mesmo entre nós mulheres comunistas, deixamos de relatar o que aconteceu e de buscar ajuda. Isso é grave, justamente porque essas violências não foram levadas a sério dentro do partido. Denúncias relatadas nas tribunas e nas cartas de desligamento do PCB-CC deixam claro.
É angustiante ser dos grupos de minorias sociais, sofrer opressão e ver que a nossa dor não é levada a sério por aqueles/as que compõem o mesmo espaço de luta, espaço esse que deveria ser de acolhimento. É inadmissível que dentro de um organismo de luta como o nosso, se faça vista grossa para algo tão sério que são essas opressões.
Dito isso, trago alguns dados de violência política de gênero, de raça, violência contra pessoas com deficiência e alguns apontamentos de como o PCB analisou e tratou os casos de opressão e indagar quais as medidas que já estão sendo estabelecidas pelo PCB-RR nesse processo de criação de organismo de direção provisória para a preparação do XVII congresso extraordinário do Partido Comunista Brasileiro - Reconstrução Revolucionária.
Em tempo. Na última plenária estadual, em outubro, a qual eu participei enquanto delegada, representando a célula que milito, eu questionei se está sendo levado em consideração o histórico da militância que está compondo as secretarias provisórias. A resposta foi que sim, a direção é composta por camaradas sem histórico de opressão.
O PCB-RR não pode ter nas suas instâncias de direção, mesmo que provisórias pessoas com histórico comprovado de ter cometido algum ato opressor. Sabemos que estamos numa situação atípica, mas é importante que esse processo se dê da forma mais transparente possível. Negligenciar é criar novo(s) Mazzeo(s) nas nossas fileiras.
O que é violência política?
De acordo com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, a violência política consiste num conjunto de comportamentos que resultam em violência e exclusão da mulher dos espaços de discussão, decisão e atuação política. Pode se dar de forma aberta ou velada e configuram-se através de agressões físicas, sexuais, assassinato, sequestro, ameaça de morte, calúnias, censuras, deslegitimação, desestabilização psicológica, assédio moral dentre outras. Ou seja, se trata de um ato impeditivo e/ou dificultador de um indivíduo ou um grupo do pleno exercício de suas ações e direitos políticos.
A violência de gênero é conceituada por Heleieth Saffioti como um processo de ruptura dos diferentes tipos de integridade humana, seja ela física, moral, sexual ou emocional. Essas violências não acontecem de forma isolada, e, não acaba no momento do ocorrido, ela perdura e é absorvida através de traumas.
Essas violências são usadas como instrumento de dominação, não atingem somente as mulheres cis, é uma ação patriarcal, machista, capacitista, racista e LGBTfóbica que é intrínseca ao sistema capitalista que cada vez mais vêm impactando negativamente a vida da classe trabalhadora, e como é uma expressão social proveniente deste sistema opressor, nós comunistas não estamos imunes à reprodução. Ou seja, se grupos minoritários têm dificuldades de entrar e permanecer dentro da nossa organização, estaremos praticando a violência política. Eis a questão: Como estamos lidando com militantes ou aproximados neurodivergentes, por exemplo? Digo isso porque neste período de militância tenho me deparado com pessoas que desistiram do recrutamento ou que pediram desligamento por sofrerem discriminação no partido/coletivo ou que já nos procuram com receios se iremos levar em consideração as suas especificidades. É importante realizarmos esse mapeamento.
De acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em 2022, a população brasileira tem o total de 51,1% de mulheres, 56,1% de pessoas negras, 14% de pessoas LGBT+. A estimativa da população com deficiência acima de 2 anos de idade é de 18,6 milhões de pessoas no Brasil. Deste total, mais da metade são mulheres. A taxa de analfabetismo é de 19,5%. Somos as parcelas mais precarizadas e invisibilizadas da classe trabalhadora. Sendo assim, o olhar de um partido que se propõe ser revolucionário precisa propiciar a inserção e permanência dessas maiorias nos espaços de debate e decisões políticas na construção de uma nova sociedade.
Até aqui o PCB não cumpriu o papel de um partido agregador. Cito a situação do Coletivo Feminista classista Ana Montenegro diante de situações de machismo. No caderno de teses do VXI congresso do PCB, no item 126 é citado que em determinado momento, no passado não muito distante, o CFCAM ficou sobrecarregado por ter sido chamado para resolução de machismo no partido e nos demais coletivos partidários, que agora é necessário que cada organismo se responsabilize de tratar os casos de opressão ocorrida nas respectivas instancias. Já nas teses da conferência do coletivo no item 82, diz que cabe ao coletivo propor formação que abordem a temática. Ou seja, é referendada pelo Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro a ideia de que as mulheres devem seguir sendo quem indica os caminhos para os homens a não serem machistas. Quando se tem formação para debater as questões de gênero, por exemplo, a presença de homens é baixíssima. A luta contra a opressão é secundarizada e os acúmulos de debates não são socializados com militantes fora dos coletivos. Por que secundarizar tema tão caro a um partido que se propõe ser revolucionário?
Nós, dos movimentos revolucionários temos potencial de intervenção e transformação da sociedade, porém, não estamos imunes a reproduzir comportamentos burgueses, se portar ora sendo a pessoa oprimida, ora a pessoa opressora, seja ela de forma intencional ou não. Acreditar que não há reprodução de violência entre comunistas é uma idealização. Ainda estamos muito distantes dessa realidade. Vide o caso da camarada Ana Karen que foi violentada propositalmente. Cito casos de camaradas que tiveram que esconder casos de assédios cometidos por pessoas que ocupam a função de direção por medo de denunciar e não saberem como demais pessoas iria reagir. Em todo canto têm mulheres que quando são assediadas acabam num autoflagelo achando que ela tem culpa do acontecido. Isso porque quando a denúncia é feita, a vítima passa pelo processo de revitimização, é ridicularizada, ou nos casos ocorridos no PCB-CC, por conta de amiguismo, a denúncia foi/é totalmente apagada por um processo disciplinar obscuro.
Li vários relatos em cartas divulgadas no Médium, relatos no twitter e no Instagram neste período de efervescência da crise no partido. Creio que muitos casos continuam no anonimato. Há relatos de camarada que recebeu do partido a proposta de disputar uma eleição e foi abandonada durante e a após o processo eleitoral e ainda acabar com uma dívida eleitoral em seu nome, camaradas que receberam fotos do órgão genital e o assediador ainda admitir em carta aberta que passou dos limites, mas não assumiu que foi assédio. São alguns relatos que me lembro de ter lido, e, me causaram revolta.
Quando pessoas de grupos minoritários adentram a uma organização, e, se colocam como pessoas críticas, há uma grande luta para se manter atuante e com respaldo. Essa sociedade machista e patriarcal quer nos ver no lugar de mulher que ouve, obedece e não questiona.
Exclusão de pessoas dos grupos minoritários dos espaços institucionais de decisão política.
Trago aqui alguns exemplos de exclusão das mulheres dos meios de decisões e casos de pessoas que foram atingidas pela violência nos espaços institucionais. A ideia é fazer uma pequena analogia entre período colonial e o atual.
Quando os colonizadores portugueses chegaram ao Brasil, realizaram uma votação para decidir quem iria governar a Vila de São Vicente- São Paulo. As mulheres foram alijadas desse processo de escolha, ou seja, só os “homens bons, os nobres de linhagem, os senhores de engenho, os membros da alta burocracia militar, os burgueses” tinham o direito de votar e ser votado.
Quando a justiça eleitoral foi criada lá em 1932 não foi diferente, a princípio só os homens tinham o direito de votar. As mulheres brasileiras só tiveram a primeira oportunidade de votar no ano de 1933, para a Assembleia Nacional Constituinte. O código eleitoral até 1946 permitia que somente as mulheres casadas e com o aval do marido pudessem votar. Passaram-se 90 anos desde a conquista do direito de a mulher votar e ser votada. Até agora tivemos uma única mulher que foi eleita para a presidência do Brasil, eleita por dois mandatos, porém, sofreu golpe no segundo mandato, mesmo sendo ela a ocupante do maior cargo na democracia representativa do Brasil, não escapou de ser vítima de misoginia diversas vezes.
De acordo com um levantamento feito pela CNN Brasil, em 2022, 38 mulheres concorreu ao cargo de governadora e 94 candidatas ao cargo de vice-governadora na última eleição. Destas, apenas duas foram eleitas ao cargo de governadora, no Rio Grande do Norte Fátima Bezerra (PT) e em Pernambuco Raquel Lyra (PSDB). Este mesmo veículo de comunicação traz também a informação do decréscimo nítido das candidaturas femininas no Brasil. De 2010 a 2014 o aumento foi 60,6%, de 2014 a 2018 foi de 13,3%, já em 2022 o crescimento ficou em 7,4% em comparação com as eleições gerais anteriores. Importante destacar as candidaturas laranja que são usadas como forma de preencher a cota mínima de 30% do sexo feminino, prevista na Lei 9.504/97, artigo 10, parágrafo 3º. Candidatam-se formalmente, recebem o fundo eleitoral, mas não fazem campanha. As pautas sociais são cooptadas pelos partidos liberais e usadas para ganhos de capital político.
Além das dificuldades de inserção das minorias nos espaços de decisão, a permanência é extremamente desgastante. O Instituto Marielle Franco fez um levantamento com candidatas mulheres negras, nas eleições municipais de 2020 no Brasil. Das mulheres entrevistadas, 98,5% relataram que sofreram pelo menos um tipo de violência política, 80% receberam ataques por meios virtuais, tais como ameaças e xingamentos de cunho racista, machista, transfóbico e sexista. Dentre as mulheres que sofreram esses ataques, apenas 32% registraram a ocorrência. O motivo de não denunciarem é o medo de fazer a denúncia. E, daquelas que fizeram a denúncia, 70% afirmaram que a denúncia não lhes trouxe mais segurança, que não receberam nenhuma orientação de quais medidas tomarem para se proteger. O estudo também divulgou que a violência política não atinge somente quem está na disputa eleitoral ou no exercício do mandato, atinge também quem está trabalhando na campanha, apoiando, exercendo o seu papel jornalístico, realizando pesquisa eleitoral etc.
A Lei Nº 14.192/2021, aprovada em agosto de 2021, estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher e para assegurar a participação de mulheres em debates eleitorais de forma proporcional ao número de candidatos nas eleições. Agentes públicos e as instituições têm o dever de prevenir, combater e punir todas as formas de violência contra as mulheres e outras minorias, mas o que se vê é que este é coadjuvante na perpetuação dessas violências. O caso da Mariana Ferrer deveria virar um documentário para nunca nos esquecermos disso, de que aconteceu em pleno século XXI.
Renato Freitas, um homem negro, vem sendo atacado por seus colegas de parlamento desde quando era vereador na cidade de Curitiba – PR. Erika Hilton, uma mulher transexual, está com frequência sofrendo ataques, principalmente, por integrantes da direita. Até o ano de 2015, as mulheres não tinham banheiros destinados a elas no senado, sendo necessário usar banheiros de um restaurante anexo ao Plenário, exemplo claro que na criação do parlamento não foi pensado para agregar mulheres e outras minorias.
O discurso que é necessário ter mais participação das minorias em espaços políticos, que é preciso proporcionar igualdade de oportunidades, que sejam lideranças, porém, a inclusão não acontece de fato. A presença dessas pessoas, na maioria das vezes, é para maquiar e passar uma imagem bonita para quem é de fora.
Logo que iniciei na militância no partido eu ouvi de uma pessoa que estava se aproximando que do coletivo feminista de que ela tinha ouvido relatos de que havia muitos casos de machismo no PCB. Na época eu fiquei sem saber o que dizer. Também ouvi relatos de mulheres que não aceitaram militar na Unidade Classista por conta da predominância masculina. Ouvi camaradas que já eram militantes de célula no PCB, sendo ela a única mulher, que procurou militar no coletivo feminista para ver se não sentida um peixe fora d'água.
Nós mulheres, por exemplo, ainda somos segregadas pelo papel social que nos foi atribuído pelo patriarcado e pelo machismo. Somos nós mulheres responsáveis pelo cuidado com a casa, com os filhos, com irmãos, com pais idosos, com dupla ou tripla jornada de trabalho, não sobra tempo para estudar e se organizar politicamente, e, quando se consegue entrar para a militância de algum partido político, novamente nos sobra àquelas atividades que os homens não querem fazer e assim somos distanciadas do trabalho intelectual. Já os homens são mais incentivados a realizarem falas públicas, análises de conjunturas, e de estar na linha de frente.
Cadê as condições materiais para que pessoas dos grupos oprimidos ocupem cada vez mais os espaços de organizações políticas? Quantos partidos, sindicatos e organizações de bairros etc dispõem de espaço para que as mães possam deixar seus filhos em segurança enquanto elas estão executando atividade da militância, para estudar, se aprimorar profissionalmente, espaço onde possam se expressar sem julgamentos? É urgente que mudemos de posturas, ou continuaremos a cometer desvios burgueses com grupos oprimidos.
Para mim dá para ver a olho nu a discrepância de militantes nas fileiras no partido, por isso, proponho um estudo estatístico para dar maior visibilidade e assim propor ações.
Desde que as tribunas foram abertas, eu alimentei as expectativas de que leria contribuições de camaradas analisando as opressões cometidas dentro das nossas fileiras e colocando propostas de como superá-las. Obviamente não consegui acompanhar todas. Mas trago aqui algumas que conseguir ler e com as quais eu concordo totalmente ou parcialmente.
Proponho aqui também algumas perguntas a toda militância. Façam esse exercício de reflexão. No seu organismo, os atos machistas sutis são percebidos de imediato ou passa despercebido? Já houve situação de um homem ser machista e os/as demais integrantes “passarem pano”? Mulher, sua opinião é respeitada? Se sentem acolhidas por outras mulheres? Já foi silenciada ou respondida com deboche? O seu combate à violência contra a mulher é só no dia 08 de março (Dia internacional da Mulher), dia 25 de novembro (Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher) ou é todos os dias?
Por fim, deixo aqui alguns links que dão acesso aos textos de camaradas que de alguma forma dialogam com este meu texto e que apontam um horizonte possível. As contribuições vão de formação, análises, processos disciplinares e representatividades.
https://emdefesadocomunismo.com.br/chamado-as-feministas-classistas-pcb/
https://emdefesadocomunismo.com.br/formacao-politica-para-o-pcb-despertando-militantes/
Referências:
https://www.institutomariadapenha.org.br/violencia-domestica/ciclo-da-violencia.html
https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/mais-mulheres-na-politica/violencia-politica
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/brasil-tera-dois-estados-governados-por-mulheres-em-2023/
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14192.htm
http://www.onumulheres.org.br/areas-tematicas/lideranca-e-participacao/
https://emdefesadocomunismo.com.br/sobre-os-coletivos-partidarios-uma-resposta-ae-camarada-anonime/
https://emdefesadocomunismo.com.br/formacao-politica-para-o-pcb-despertando-militantes/
https://emdefesadocomunismo.com.br/sobre-os-coletivos-partidarios-uma-resposta-ae-camarada-anonime/