'Resgate Histórico e Balanço do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro' (Ana Karen Oliveira e Maria Fernanda Portolani)
O rico arcabouço teórico produzido nas últimas décadas foi pouco assimilado pela militância do próprio coletivo e a nível partidário. Esse problema não pode ser atribuído a um único fator, porém é um ponto chave que precisa ser trabalhado nesse processo de Reconstrução Revolucionária.
Por Ana Karen Oliveira e Maria Fernanda Portolani para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Que a memória esteja viva como vento em chamas. Que nossos erros e acertos nos impulsionem a lutar.
Neste documento, apresentamos um balanço e alguns apontamentos históricos sobre o Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro, a partir da análise de duas militantes que estiveram na direção nacional nos últimos dez anos, a fim de refletir sobre seu processo de nacionalização, sua inserção entre as mulheres trabalhadoras e as dificuldades encontradas.
As lutas das mulheres comunistas pelo fim da sociedade de classes perpassaram toda a história do PCB, apesar de terem sido vistas e encabeçadas de formas diferentes ao longo da vida do partido. A necessidade de organizar uma frente do órgão em torno das lutas feministas e dar mais organicidade as tais pautas dentro e fora do partido, fizeram o Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro surgir no ano de 2005, mesmo ano em que o PCB, no seu XIII Congresso, reafirma e aprofunda a estratégia socialista da revolução brasileira.” ( I Declaração Política da Coordenação Nacional do CFCAM, eleita em Encontro Nacional – 2015).
O Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro surgiu em 2005, ainda com o nome de Coletivo de Mulheres, com o protagonismo de Mercedes Lima, respondendo à necessidade do PCB de ter uma frente para atuar na Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIM). Anteriormente, a última organização de mulheres que teve influência do PCB, com abrangência nacional, foi a Federação Democrática de Mulheres, que abarcou a militância de diversos comitês locais, organizados amplamente no país. O principal instrumento aglutinador da formulação política das militantes do PCB, na década de 60, foi o jornal O Momento Feminino, mecanismo dirigido por Arcelina Mochel. Deste modo, a partir da direção e atuação do jornal, militantes do PCB passaram a compor a FDIM nesse período. Durante a ditadura militar, um grupo de exiladas reuniram-se em grupos, objetivando manter a organização de mulheres e fomentar formações sobre o movimento comunista e os novos debates feministas, que emergiram na Europa, a partir dos anos 60. Esse conjunto de estudos geraram documentos enviados à direção, que, apesar da importância, não teve grande influência no partido. Uma das principais lideranças desses coletivos foi Zuleika Alambert, a qual mais tarde saiu das fileiras da organização, por divergências dos rumos tomados.
Apesar de militantes, como Ana Montenegro, formularem sobre as lutas das mulheres feministas e mesmo daquelas que assim não se reinvindicavam, no Brasil e no mundo, houve um grande vácuo na organização desse setor, entre a década de 60 e o início dos anos 2000, no PCB. As formulações produzidas nos países que fizeram revoluções socialistas e entre feministas e marxistas, internacionalmente, demoraram muito para chegar ao país e, mais ainda, para adentrar as fileiras do PCB. Mesmo com a existência do CFCAM, o rico arcabouço teórico produzido nas últimas décadas foi pouco assimilado pela militância do próprio coletivo e a nível partidário. Esse problema não pode ser atribuído a um único fator, porém é um ponto chave que precisa ser trabalhado nesse processo de Reconstrução Revolucionária.
Entre 2005 e 2013, o coletivo existiu de forma mais ou menos orgânica somente nos estados de São Paulo e Minas Gerais, com algumas atividades realizadas em Pernambuco, Rio de Janeiro e Paraná. Neste momento, não existia uma política organizativa do coletivo a nível nacional, bem como documentos com o direcionamento de nossas principais linhas políticas. O Coletivo participava enquanto tal de atividades feministas e de mulheres, com intervenções no 8 de março e atividades de solidariedade internacional. No referido período, existia uma coordenação nacional provisória composta por 5 militantes.
Em 2013, surgem os primeiros núcleos em Sergipe e na Bahia, no mesmo ano em que aconteceu o I Ativo Nacional de Organização, em São Paulo. Neste ativo, foi ampliada a Coordenação Nacional Provisória, indicada anteriormente pelo Comitê Central, momento em que foi escrita a I Declaração Política Nacional, discutindo a nossa posição em relação a diferentes setores das lutas das mulheres a nível nacional e internacional. Participaram dessa atividade militantes de São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro, Sergipe, Minas Gerais, Bahia e Amapá. Abaixo, segue uma das primeiras comunicações internas, com o resgate histórico desse período, escrita por Carolina Lopes, militante que ocupou, inicialmente, a Secretaria Política da I Coordenação Nacional, eleita em 2016:
“Em aspectos de alinhamento político organizativo, garantiu-se o início das conversas com a militância, a respeito de o coletivo ser do PCB, por ser dirigido pelas militantes mulheres comunistas e por se inserir taticamente no programa estratégico da construção da revolução socialista desse partido. Além disso, aprofundou-se o entendimento entre as dirigentes comunistas de como construir o coletivo, para atuar no movimento feminista, tanto com as bandeiras históricas da luta das trabalhadoras, quanto com o programa partidário de construção do socialismo, cuidando para que não houvesse uma atuação dessas dirigentes do PCB para dentro do partido, de modo que as caracterizassem como uma tendência.” ( COMUNICAÇÃO INTERNA, 2016, secretária política Carolina Lopes).
Nesta comunicação, há dois elementos importantes para pensar nossos desafios organizativos, os quais impulsionaram nossa atuação e análises na época, e apresentam-se ainda como um desafio no atual momento de nosso movimento. Foi preciso formular e construir um mecanismo que auxiliasse na inserção entre as lutas feministas, mas que não se configurasse como uma corrente interna. Nesse período, a União da Juventude Comunista utilizava a formulação da autonomia relativa, incorporada para os demais coletivos criados. Se por um lado essa forma adotada pelos coletivos partidários auxiliou o crescimento nacional e nossa inserção entre as mulheres, principalmente, entre as mais jovens e setores médios, por outro também gerou uma série de contradições.
Em 2014, no XV Congresso do PCB, foi aprovada a realização do I Congresso do coletivo, bem como a mudança de nome, que passou a se chamar Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro. No centro dessa mudança, estava a necessidade de disputar o movimento feminista, a partir da centralidade da luta de classes, com a ampliação do coletivo para uma composição mista, superando a auto-organização (adotada por algumas vertentes do movimento feminista) e a distinção dos “coletivos de mulheres", que se caracterizam por ter diversas finalidades, mas não necessariamente políticas.
Apesar da aprovação da realização do I Congresso do coletivo, após debates internos, decidiu-se realizar o I Encontro Nacional do CFCAM. Embora tenha tido o mesmo formato e objetivo de um congresso, a atividade foi chamada de encontro, por haver avaliações as quais julgavam ser atencipada a realização congressual. No entanto, em uma análise aprofundada, tal decisão se mostra constituída por elementos de certa tutela, paternalismo e desconfiança com os movimentos feministas, apesar de sua linha marxista.
O espaço foi extremamente exitoso e contou com a participação da militância de 16 estados. Nele foi eleita a primeira Coordenação Nacional (CN) do CFCAM. O encontro contribuiu para uma maior coesão nacional, estimulou uma maior organização dos núcleos, coordenações estaduais e ganho de experiências. Diversos temas candentes para o movimento feminista e comunista foram debatidos, como as transformações do capital em sua fase imperialista, as atuais condições das mulheres no mundo do trabalho, a importância e as dificuldades da inserção das mulheres nos espaços políticos, assim como o combate à violência sexista. Foi relevante o aprofundamento da categorização do feminismo classista, relacionando-o com a estratégia socialista. Um dos elementos que, inicialmente, apesar de estar no temário, não obteve formulações, refere-se às diferentes correntes do feminismo. Em relação ao debate sobre o trabalho sexual, o mesmo foi realizado, contudo chegou-se à conclusão da necessidade de maior aprofundamento coletivo sobre o tema.
Merece destaque as teses sobre a organização e a luta das mulheres, considerando suas particularidades dentro dos espaços políticos. Apesar do conjunto de resoluções que discutiam as formas da expressão do machismo e violências nos diversos espaços sociais, bem como os apontamentos relacionados às maiores dificuldades das mulheres, LGBTI+s e pessoas racializadas se manterem na militância, muitas dessas resoluções sempre pareceram letra morta para a maior parte do partido. Vale recordar e deixar registrado neste documento as resoluções 105, 113 e 114:
105. Os poucos registros da luta das mulheres negras, indígenas, transexuais, comunistas, etc. são uma forma de silenciar a história dessas lutadoras e funciona como mais uma forma de alienação. Muitas dessas mulheres estavam na construção, organização e no protagonismo das lutas desses povos e em sindicatos e organizações de trabalhadores e trabalhadoras, inclusive na União Soviética. Apesar disso, foram apagadas da história oficial ou muitas vezes silenciadas e escondidas por seus próprios companheiros, absorvidas nas tarefas burocráticas e organizacionais. Silenciamento esse que também se expressa na não valoração dos espaços onde as mulheres estão presentes e/ou protagonizando.
113. A luta não é contra os homens, nem contra um indivíduo singular, no entanto, são nas práticas individuais cotidianas de nossos camaradas que se manifestam comportamentos opressores e até violentos. Cabe-nos identificar, alertar e combater. O Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro tem um grande desafio, o da educação comunista como um instrumento a serviço da revolução, como um dos mediadores para a reconstrução revolucionária do PCB.
114. Ao mesmo tempo entendemos que devemos aprofundar cada vez mais nossa formação sobre as questões de classe, gênero e raça não voltando atenção apenas sobre ações machistas e sexistas, propondo somente punição aos que as praticam, e deixando de avaliar outros aspectos da construção sociocultural que têm moldado os sujeitos. Essa atitude restritiva quanto às questões que tocam especificamente pode causar a divisão da luta e de nossas pautas, isolando a mulher como única responsável por combater as violências a que está cotidianamente submetida, deixando de problematizar o fato de que também cabe aos homens trabalhar para romper com o sistema patriarcal, machista e desigual dentro do qual todas e todos estão inseridos, agindo, portanto, para que os homens também assumam o feminismo classista como bandeira de luta universal.
Atuação Política e Organizativa
Na última década, o movimento feminista internacionalmente foi um grande impulsor das movimentações de massas e aglutinador das lutas antissistêmicas, que estouraram após 2008. O movimento NiUnaMenos e a greve de mulheres, convocada na Argentina em 2016, surtiu o efeito de centelha em pólvora e inspirou um conjunto de lutas que ganharam o mundo. As conjunturas da Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, EUA e Brasil, por exemplo, não podem ser analisadas hoje, sem olhar para as diversas nuances do movimento feminista, tal como as lutas indígenas, LGBTIA+ e negras. Uma importante particularidade dessa última onda feminista é o predomínio do caráter anticapitalista e anti-imperialista.
Esses avanços internacionais também tiveram repercussões no Brasil e entre nossa militância. A partir de 2016, foi ampliada a participação nacional do CFCAM na construção e atuação nos atos do Dia Internacional das Mulheres, nos atos contra as propostas no Governo Temer, no “Ele Não”, na luta pela descriminalização do aborto e nas manifestações contra o Governo Bolsonaro. As atividades organizadas pelos Comitês de Solidariedade e de Combate a Fome durante a pandemia também foram importantes formas de diálogo com nossa classe. Tivemos experiências de organização de cursinhos populares, um mandato coletivo (São José do Rio Preto) e inserção entre ocupações urbanas. A atuação no 8 de março, que, a partir de 2017, ganhou força internacional, consolidou-se como importante momento de atuação e formação de militantes, agitação e propaganda e na ampliação de alianças e recrutamento. No espaço eleitoral, aumentamos o número de candidatas, assim como a expressão pública das ideias feministas e comunistas. O lançamento da plataforma feminista, em 2020, ampliou o debate nacional no âmbito partidário e do próprio coletivo sobre a ocupação de mulheres nessa frente de lutas.
Em relação a essa inserção, vale considerar duas questões: A primeira, relativa aos nossos trabalhos de bases - o qual precisamos avaliar a falta de socialização desses mecanismos, a fim de aprendermos com as experiências exitosas e com as dificuldades e erros enfrentados. A exceção foi um espaço coletivo produzido no curso nacional de formação, no qual essas experiências foram socializadas; Segundo, a disputa das eleições como incipiente, mal planejada, com alta sobrecarga individual para as militantes - gerando adoecimento e alguns afastamentos das fileiras partidárias. Ao não planejarmos coletivamente, a nível nacional e estadual, a atuação nas eleições se deu de forma desorganizada e sem conexão com um conjunto de trabalhos prévios. A necessidade de paridade de gênero para a disputa eleitoral burguesa também induziu o aumento das candidaturas femininas, o que agravou o descolamento entre a projeção de mulheres nos espaços eleitorais e nossa política de quadros. A existência de um padrão organizativo para garantir uma política contínua e planejada de formação de militantes, que leve em consideração as desigualdades de gênero e raça nas esferas partidárias, estava longe de existir no PCB, o que reiterou os problemas enfrentados estruturalmente.
Também é importante considerar que uma das características das movimentações feministas no último período foi a utilização das redes sociais como espaço organizador, difusor, transmissor e aglutinador das ideias e lutas. Nesse quesito, apesar de termos avançado, nossa atuação foi aquém das necessidades da agitação e propaganda. A realização de um trabalho estruturado e planejado, para intervir coletivamente nas redes, esteve ligado à falta de centralização e organização desse trabalho a nível partidário.
Em relação à política de formação, vale destacar o I Encontro Nacional de Formação e Organização do CFCAM, realizado em Salvador, no ano de 2017. Neste encontro, foram trabalhados os seguintes temas: materialismo histórico e dialético, imperialismo, pós–modernidade, economia política em Marx, inserção das mulheres em movimentos populares, cursinhos, movimentos sindicalistas, particularidades das lutas das mulheres negras e a prostituição. O segundo encontro nacional de formação foi adiado pela possibilidade de realização do I Congresso em 2018 e, depois, em 2019 - os quais não se efetivaram, devido às questões organizativas e conjunturais -, demonstrando a fragilidade organizativa das pautas das mulheres trabalhadoras dentro da estrutura partidária.
Em 2022 foi realizada a I Conferência Nacional de Organização do CFCAM, na qual participaram dezessete estados. A conferência aconteceu depois de tentativas seguidas sem sucesso de marcar o I Congresso, devido às contínuas propostas de mudança de datas feitas pelo Comitê Central. A conferência teve como objetivo aprofundar as formulações em relação ao feminismo classista e na nossa organização interna. Conseguimos aprofundar nas resoluções referente ao feminismo classista, diferenciando o mesmo de outras linhas, especialmente das feministas liberais e radicais. O debate em relação ao centralismo democrático e a liberdade de crítica na imprensa foi um tema polêmico, que seguiu as deliberações do XVI Congresso, apesar de ser uma tese que foge das propostas de Lenin, bem como de Rosa Luxemburgo sobre o tema. A resolução 131 expressou de forma mais acabada a linha da ala direita do PCB, expressa na conferência do coletivo:
131. Tendo em vista nosso princípio organizativo pautado no centralismo democrático, devemos ter sempre cuidado, para evitar que as redes sociais sejam utilizadas para a discussão de encaminhamentos das decisões políticas internas, quando a forma correta de as promover é no interior do coletivo, por meio das reuniões. Ressaltando que como não possuímos centralismo teórico, o debate amplo das diversas linhas teóricas dentro do feminismo classista e do marxismo leninismo sejam fomentadas e realizadas em todos os meios de forma fraterna.
Aqui, para não deixar dúvidas, vale trazer um trecho do texto de Lenin de 1906, “ Centralismo Democrático “ Liberdade para criticar e Unidade de Ação”:
Aqueles que elaboraram a resolução têm uma concepção totalmente errada da relação entre a liberdade de criticar dentro do Partido e a unidade de ação do Partido. A crítica dentro dos limites dos princípios do Programa do Partido deve ser bastante livre (lembramos ao leitor aquilo que Plekhanov disse sobre esse assunto no Segundo Congresso do POSDR)(2), não apenas nas reuniões do Partido, mas também nas reuniões públicas. Tal crítica, ou tal “agitação” (porque a crítica é inseparável da agitação) não pode ser proibida. A ação política do partido deve ser unida. Nenhuma “convocação” que viole a unidade de ações definidas pode ser tolerada tanto em reuniões públicas, como em reuniões do Partido ou na imprensa do Partido.
Obviamente, o Comitê Central definiu a liberdade de criticar imprecisamente e de forma muito estreita, e a unidade de ação de modo impreciso e amplo.
Vamos dar um exemplo. O Congresso decidiu que o partido deveria participar nas eleições da Duma. Participar de eleições é uma ação bem definida. Durante as eleições (como em Baku hoje, por exemplo), nenhum membro do Partido, em nenhum lugar, tem qualquer direito, seja qual for, para convocar o povo a se abster de votar; tampouco a “crítica” da decisão de participar das eleições pode ser tolerada durante esse período, pois de fato comprometeria o sucesso da campanha eleitoral. Antes de as eleições terem sido anunciadas, no entanto, os membros do Partido em todos os lugares têm o perfeito direito de criticar a decisão de participar nas eleições. Naturalmente, a aplicação deste princípio na prática, por vezes, dará origem a disputas e mal-entendidos; mas somente com base neste princípio todas as disputas e todos os mal-entendidos podem ser decididos de maneira honrada para o Partido. A resolução do Comitê Central, no entanto, cria uma situação impossível.
Internacionalmente, o Coletivo efetivou a filiação à Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIM), no seu XVI Congresso, em 2016, em Bogotá. As mulheres do PCB iniciaram suas atuações na FDIM desde o seu II Congresso, via jornal Momento Feminino, como citado anteriormente. Ana Montenegro trabalhou para a Federação durante a ditadura e esteve em várias atividades internacionais da mesma. Em 2005, a criação do coletivo teve relação direta com a necessidade da atuação internacionalista. Após o último congresso, em 2022, em Caracas, o coletivo passou a atuar junto à frente de jovens da FDIM. A atuação internacionalista no Brasil vinha sendo construída principalmente a partir dos Comitês de solidariedade à Cuba e à Palestina. Nesses últimos anos, vínhamos avançando em nossa atuação internacional dentro da Federação e no diálogo com outras organizações do continente. Porém, um desafio era socializar esses acúmulos coletivos, através de formações para toda a militância. Vários documentos eram socializados, mas, na maioria das vezes, com poucas interações das bases.
Uma das principais disputas que vínhamos tentando fazer no seio da Federação era em relação à posição referente ao imperialismo, as linhas do feminismo e a atuação da federação a nível internacional. A posição hegemônica da organização sobre o imperialismo é a mesma da Plataforma anti - imperialista (PMAI), que compreende o imperialismo meramente como a política externa belicista e intervencionista do bloco EUA - EU, não como uma fase do capitalismo, ponto central das elaborações de Lenin. Isso gera as mesmas distorções prevalentes na PMAI, que aponta como o horizonte estratégico a posição etapista da construção de um mundo multipolar, em torno do bloco capitalista Rússia - China, e não a revolução socialista.
Desafios enfrentados
Um dos principais desafios foi o afastamento e saída de importantes quadros dirigentes no decorrer desses anos. Isso é comum em todas as organizações, porém é notório a maior frequência entre as mulheres. Dessa forma, não podemos deixar de refletir sobre tais motivos e pensar como superá-los, principalmente, para nos balizar nesse novo momento.
Sabemos que a militância da mulher trabalhadora, em especial da mulher trabalhadora negra e indígena, é um exercício desafiador, por se tornar uma quarta jornada de trabalho, já que estamos falando da porção da classe sobrecarregada e encarregada com os trabalhos domésticos, de cuidado e manutenção da vida. Além disso, a cultura hegemônica não forja as mulheres para elaborar politicamente, se tornar direções e fazer falas públicas. Muitas vezes, somos excluídas forçosamente dos principais espaços de decisão. Sofremos cotidianamente com o machismo, racismo e LGBTfobia, que estão presentes na subjetividade de nossa classe e também de nossas organizações, dificultando a militância das mulheres e produzindo afastamentos das lutas.
Nesse sentido e com essa peculiaridade, o movimento feminista apresenta muitas tensões, e o movimento feminista comunista parece redobrá-las. Muito já foi dito por Alexandra Kollontai e Clara Zetkin a respeito dessas questões, mas é essencial sempre afirmar a necessidade da emancipação humana, a partir de uma revolução socialista, que, em seu curso, saiba ler a heterogeneidade da classe trabalhadora e entender, principalmente, que as pautas da mulheres trabalhadoras são nevrálgicas para o rompimento dessa sociedade.
Apesar da construção do CFCAM ser uma decisão congressual do PCB, sua atuação foi vista ou tida em muitos locais como uma atividade não correspondente à construção partidária, acarretando, inclusive, nas camaradas da Coordenação Nacional a sobreposição de tarefas diversas, e nos núcleos e estados planejamentos ainda incipientes sobre o trabalho político do CFCAM, a partir dos organismos partidários.
A divisão social, racial/étnica e sexual do trabalho
A divisão de tarefas, bem como a especialização da nossa militância, é fundamental, a fim de potencializarmos os trabalhos realizados em nível coletivo. Contudo, essa especialização não pode impedir que as militantes compreendam a totalidade das distintas partes da organização e que tenham uma ampla formação, permitindo-lhes exercer diferentes tarefas quando necessário. Não podemos deixar de reconhecer a existência social da divisão sexual e racial do trabalho, que direciona a maioria dos homens brancos e heterossexuais para as tarefas públicas/políticas, enquanto cabe às mulheres, população LGBTQIA+ e população negra o papel organizativo, financeiro e as tarefas do cuidado. Por isso, é necessário cautela no direcionamento da militância para tarefas de acordo com a afinidade, pois é possível que essa divisão se reitere. Não podemos desconsiderar a heterogeneidade de nossa classe, e que as condições objetivas e subjetivas anteriores determinem as condições do exercício da militância.
Espaços de inserção
Uma das grandes dificuldades do CFCAM foi traçar os espaços de inserção do mesmo. Para este debate, é importante lembrar que as mulheres estão em todos os ambientes: no trabalho, nas escolas, nas universidades e nos movimentos populares. Em todos esses ambientes, sofremos com as contradições de classe, gênero e raça. No geral, as pessoas se aproximam da militância, a partir de grupos e/ou coletivos que estejam mais sintonizados com as contradições vivenciadas no dia a dia ou que estejam mais latentes em suas vidas. Uma mulher pode se aproximar devido à reduções salariais ou devido ao assédio sexual que sofreu por seu patrão ou ao perceber a inserção diferenciada no espaço de trabalho de pessoas negras e brancas.
Se defendemos o feminismo classista, não cabe nos afastarmos dos principais espaços de luta da nossa classe, ou seja, o movimento estudantil, popular/bairro/religiosos, culturais e sindical. Ao mesmo tempo, é fundamental disputarmos o movimento feminista. Nossos organismos precisam trazer concretamente, para o centro da nossa organização, as mulheres e suas lutas.
Não conseguimos ou avançamos muito pouco enquanto organismos partidários, no tocante a unidade de ação, embora vários esforços tenham sido realizados nesse sentido, como foi apontado nesse documento. Infelizmente, o paternalismo e a condição de subalternidade da pauta da mulher trabalhadora é um ponto crucial no qual devemos nos debruçar e avançar.
Um dos maiores desafios para o próximo período é criar um mecanismo que evite o confinamento das pautas feministas dentro do próprio coletivo, buscando evitar as múltiplas jornadas nos espaços de direção e base e manter a aproximação de mulheres e militantes, a partir dos enfrentamentos do feminismo classista, a fim de assegurar as lutas entre as mulheres trabalhadoras e a expressão pública de nossas bandeiras.
A violência machista e patriarcal e o CFCAM
O Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro não é a instância de resolução dos casos de violência machista e patriarcal na nossa organização, mas é evidente que o movimento da história, partindo da formação feminista classista em nossos quadros, acentuou as discussões e as denúncias nos casos de violência que já ocorriam de diversas maneiras contra as mulheres dentro das fileiras do PCB. Isso sobrecarregou os quadros do coletivo, que eram chamados para resolução de problemas no partido ou nos demais coletivos partidários. Isso nos deixa evidente que precisamos manter um processo constante de construção de novas formas de sociabilidade, evitando qualquer forma de violência, principalmente, aquelas que mantém estruturalmente nossa classe longe dos espaços de poder. Historicamente, as mulheres, a população negra e a população LGBTQIAPN+ foram afastadas dos espaços públicos de decisão. Manter essas formas de violência individual e coletiva sem combatê-las e sem as devidas reflexões em nossos espaços é manter parte considerável de nossa classe fora da construção dos nossos mecanismos de luta. Também não há dúvidas de que a responsabilidade por resolver questões graves não pode ser apenas das mulheres, mas, de igual modo, a consciência de que é responsabilidade de todos os camaradas, a fim de cessar o aumentou do adoecimento de várias militantes, como ocorreu e vem ocorrendo.
Cumpre ressaltar que a violência política também ocorreu dentro de nossas fileiras, a partir de silenciamento das pautas das mulheres, desconfiança e paternalismo quanto às ações de dirigentes mulheres. Isso se revela, principalmente, quando analisamos e damos cabo ao fato de que o trabalho e a linha do coletivo, bem como a realidade do movimento de luta das mulheres, era desconhecida por parte da militância do então complexo partidário, gerando distanciamento político e pouco diálogo para construção de unidade de ação.
No primeiro encontro nacional, já trazíamos diversos apontamentos sobre esse tema. Por outro lado, não deixamos de problematizar as consequências dessa sociedade punitivista e o aprisionamento como a forma de resolução das diversas formas de violência. Além do sistema carcerário não modificar o quadro geral das violências patriarcais, direciona ao Estado burguês, classista e racista, a resolução de problemas que estão na gênese desse próprio Estado e sistema penal. Como destacado nas teses abaixo, além da 113, já citada no documento:
114. Ao mesmo tempo entendemos que devemos aprofundar cada vez mais nossa formação sobre as questões de classe, gênero e raça não voltando atenção apenas sobre ações machistas e sexistas, propondo somente punição aos que as praticam, e deixando de avaliar outros aspectos da construção sociocultural que tem moldado os sujeitos. Essa atitude restritiva quanto às questões que tocam especificamente pode causar a divisão da luta e de nossas pautas, isolando a mulher como única responsável por combater as violências a que está cotidianamente submetida, deixando de problematizar o fato de que também cabe aos homens trabalhar para romper com o sistema patriarcal, machista e desigual dentro do qual todas e todos estão inseridos, agindo, portanto, para que os homens também assumam o feminismo classista como bandeira de luta universal.
126. Temos uma visão crítica sobre leis como Maria da Penha e Lei do Feminicídio, pois além de serem mais simbólicas que efetivas no combate à violência de gênero, a defesa acrítica das políticas de encarceramento gera contradições e conflitos entre movimentos que visam à emancipação humana, considerando que o sistema penitenciário funciona a serviço da burguesia e tem caráter racista.
127. (...) somos contra qualquer política de encarceramento em massa.
Uma conclusão provisória
A história do CFCAM é um capítulo importante da luta das mulheres comunistas. Reconhecer sua práxis dentro das fileiras do PCB e junto à classe trabalhadora é fundamental, mas temos muitos e sérios desafios a enfrentar, e o fazemos nessa quadratura histórica, dentro da Reconstrução Revolucionária, com a possibilidade de construir um organismo partidário, no qual a preocupação coletiva sobre a situação da mulher nessa sociedade e a necessidade de sua organização não pode ser vista de forma espontânea, artesanal e somente das mulheres. Que nosso horizonte seja a emancipação da mulher trabalhadora e de toda nossa classe. Rumo à revolução proletária!