'Sobre formas de alcançar diversidade e representatividade em nossa organização' (Milla)
Devemos sim determinar a necessidade da existência de pessoas minorizadas nos diferentes espaços, ao mesmo tempo em que devemos priorizar sua formação política entendendo os obstáculos que sua condição material impõe e criando ferramentas para sobrepuja-los.
Por Milla para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Camaradas,
Durante nossa conferência distrital, foi levantada uma polêmica importantíssima que deve ser central durante a reconstrução do partido por muito tempo: a questão da representatividade e da diversidade nas instâncias de direção de nossa organização.
Essa polêmica surge, não como uma questão de se devemos ou não construir essa representatividade, mas de como ela deve ser construída. Há os camaradas que acreditam em uma política estrutural de "cotas", e aqueles que vêem essa opção como um caminho para a construção de uma representatividade vazia, sem um real esforço de atuação e transformação a fim de enfrentar as opressões dentro e fora do partido.
Eu acredito que ambas as posições estão certas de alguma forma. Mas eu acredito também que, isoladas, elas não apontam caminhos que por si só são capazes de mitigar o problema da oligarquização do partido através de uma hegemonização protagonizada por homens brancos, heteronormatizados e de meia-idade.
Nessa tribuna eu não pretendo propor uma resposta definitiva, mas minha intenção é tentar elaborar um caminho possível de superação dessa questão a curto prazo, para a construção de uma estrutura partidária que preconize o protagonismo e a inserção de pessoas minorizadas em nossa sociedade, levando em conta a forma como as contradições do mundo capitalista impactam a vivência dos militantes no partido e suas possibilidades de atuação. Para tal, peço licença e paciência para começar minha elaboração falando sobre a inserção de mulheres no mercado de trabalho (já que, sendo mulher, me sinto mais confortável para discorrer a partir desse recorte), como um ponto de partida para pensar a inserção de mulheres, pessoas racializadas, pessoas LGBTQIAP+, e outros grupos de pessoas minorizadas dentro do partido; considerando, é claro, que todos esses diferentes recortes e as intersecções entre eles têm suas particularidades e diferenças práticas, que importam, e muito, para pensar a forma como essas pessoas são tratadas e integradas (ou não) no dia-a-dia da militância em nossa organização.
Pois bem, camaradas, partamos da pergunta: como é que se possibilita a inserção efetiva da mulher no mercado de trabalho?
A resposta liberal para essa pergunta costuma se resumir, na prática, a uma tentativa de tratar o sintoma na esperança de, assim, curar a doença. Um empresário progressista que busca produzir uma suposta igualdade de gênero em seu negócio optará, provavelmente, por abrir mais vagas de emprego orientadas à contratação de mulheres. Já aí, nessa primeira fase do esforço progressista em fabricar igualdade de gênero dentro da lógica liberal, o empresário encontrará um obstáculo: se a vaga de emprego que ele busca preencher com uma mulher é em uma área dominada por homens (e deve ser, do contrário o empregador não teria motivo para fazer um esforço como esse), é claro que ele não terá muitas candidatas do gênero feminino pleiteando a vaga. Dentre as candidatas, nem todas terão o mesmo nível de profissionalização, experiência ou capacitação que a maioria de seus trabalhadores do gênero masculino. Dentre as mais experientes e capacitadas, talvez algumas tenham dificuldade de desempenhar o trabalho devido à jornada dupla composta pelo trabalho de reprodução e cuidado ao qual são relegadas na família. Ao final, dificilmente o empregador conseguirá montar um time realmente diverso e igualitário.
Isso acontece porque as condições para a efetiva inserção da mulher no mercado de trabalho não se criam com a mera produção de vagas (ou cotas) para essas mulheres. Essas condições são atravessadas por todo o contexto histórico e socioeconômico da mulher na sociedade. Em áreas dominadas pelo trabalho masculino, mulheres são impedidas de entrar por barreiras que são impostas desde sua infância. Elas são desencorajadas a se interessar por atividades consideradas "masculinas" na infância, são desencorajadas a estudar áreas dominadas por homens, se persistem no desejo de se capacitar para esses trabalhos são menosprezadas e subestimadas durante todo o processo, chegando a sofrer violências (vide os recorrentes casos de assédio nas universidades), quando, e se, finalmente se formam, são rejeitadas e impedidas de trabalhar, sofrem abusos e assédios no trabalho e vivem em constante risco de perder o emprego por serem mulheres. Existe toda uma estrutura construída e posta para que mulheres não acessem carreiras e condições de trabalho equivalentes às que os homens sempre puderam alcançar, em áreas dominadas por homens.
Mas então, o que é necessário para que uma mulher seja integrada ao mercado de trabalho?
Esperar que uma mulher espontaneamente surja no trabalho capacitada, pronta e com facilidade para desempenhar aquele papel, é uma forma bastante liberal de lidar com o problema. Se o objetivo é viabilizar a presença de mulheres nessas posições, é necessário ter vontade e ímpeto para viabilizar sua capacitação, é necessário buscar formas de viabilizar materialmente a locomoção dessa mulher até o trabalho ou o desempenho de sua função do lugar onde ela puder, é necessário se preocupar com sua vida fora do trabalho, e garantir que essa mulher não precise escolher entre o trabalho e o cuidado da família. É preciso garantir que ela tenha uma creche ou profissional que possa cuidar de seus filhos durante o expediente, garantir que ela possa alimentar sua família sem que isso signifique que ela vai duplicar ou triplicar sua jornada de trabalho para tal, garantir que ela tenha acesso à capacitação necessária para desempenhar o trabalho oferecendo a ela subsídio para sua educação ou treinamento por outros profissionais, etc. É necessário identificar os obstáculos que se impõem contra sua atuação e ter vontade de possibilitar que ela os supere.
Mas também não podemos esperar que essas condições de trabalho sejam viabilizadas para as mulheres por pessoas que não conhecem e não experimentam as dificuldades para sua presença no mercado de trabalho. Afinal, até quando vamos esperar para que essas pessoas se sintam prontas e aptas para se inserir nesses espaços por voluntarismo? Quanto tempo levaremos para desenvolver uma "cultura" organizacional que priorize a presença de mulheres nessas posições? Se não houver uma estrutura que determine essa inserção, como devemos esperar que ela aconteça pela espontaneidade daqueles que escolhem quem vai ocupar os espaços? Se não houver uma obrigação prática de integração dessas pessoa, de onde virá o esforço de criar as condições para viabilizar a presença delas nesses espaços? Da boa vontade de homens brancos heteronormatizados? Do esforço individual das pessoas que desejam integra-los?
Camaradas, o caminho para inserir mulheres no mercado de trabalho não é apenas criar vagas para elas e não é apenas torcer para que se crie uma estrutura que viabilize essa inserção de forma espontânea. Assim como o caminho para inserir pessoas minorizadas em posições de direção em nossa organização não será escolher entre cotas ou voluntarismo. Se é difícil garantir que uma mulher assuma uma posição que é dominada por homens através do esforço de criar espaços para elas na ponta final do processo, imagine o quão difícil será atingir esse objetivo sem sequer fazê-lo.
Aqui chegamos à parte do texto em que eu espero conseguir fazer a conexão entre o exemplo comparativo e o argumento prático. Camaradas, desejamos reconstruir o partido transformando-o em uma organização realmente representativa da classe trabalhadora, para que a nossa atuação seja capaz de defender e lutar pelos reais interesses e anseios de nossa classe e para que possamos ser a vanguarda capaz de liderar o processo da revolução brasileira. Se é esse o nosso objetivo, será que é possível alcança-lo mantendo as mesmas estruturas que permitiram a oligarquização do partido em mãos majoritariamente brancas, masculinas e de meia-idade? Será que podemos viabilizar a construção de uma diversidade real dentro do partido sem o esforço ativo para promovê-la em todos os espaços de atuação da nossa militância? Será que o mero desejo de construir representatividade no Partido será o bastante para que nossos militantes elejam dirigentes diversos e representativos da nossa classe? Será que essa esperança é capaz de, por si só, gerar uma cultura de viabilização de espaços que aceitem pessoas minorizadas em posições de direção? E será, então, que apenas obrigar a presença de pessoas minorizadas em todas as instâncias do partido, permitirá que essas pessoas tenham condições de se manter nessas posições sem adoecer no processo e sem se sentir rejeitadas e inadequadas nesses espaços?
Camaradas, eu acredito que todos nós buscamos formas de criar as condições para a representatividade no partido, mas será que nós temos clareza sobre o que é representatividade na prática? Alguns camaradas manifestaram o receio de produzir, através das cotas, uma espécie de representatividade vazia, que se expressaria a partir de uma presença nas instâncias de direção de pessoas que representam minorias, mas que na prática não atuam em favor das lutas contra as opressões. Eu tenho dificuldade de acreditar nessa concepção de representatividade vazia. Ora, devemos esperar que pessoas pretas resumam sua existência à luta contra o racismo? Ou que mulheres sejam chamadas exclusivamente para atuar em função da luta contra a misoginia? Devemos relegar aos camaradas que se encontram no meio da sopa de letrinhas LGBTQIAP+ um espaço exclusivo de combate à heteronormatividade? Eu penso que, se acreditarmos nessa prática, estaremos reproduzindo a lógica que reduz pessoas minorizadas às opressões que sofrem, como quando uma pessoa preta que se destaca só é chamada a entrevistas para falar sobre racismo, nunca sobre outros aspectos de sua vivência. Ora, se entendemos essas pessoas como seres humanos, também devemos necessariamente nos lembrar que elas vivenciam toda a complexidade da experiência humana. Uma pessoa preta é muito mais que apenas sua condição de racialização numa sociedade racista. Uma pessoa homossexual é muito mais que apenas alguém que sofre homofobia. Eu sou mulher, mas também sou uma pessoa que se interessa por ciência, por música, por tecnologia, sou filha, sou não monogamica, sou estudante, sou tatuada... não há representatividade vazia em garantir que pessoas em posições de liderança sejam mais do que aquilo que lhes é imposto pelas opressões que sofrem. Não há representatividade vazia em reconhecer todos os aspectos da experiência humana de alguém que sofre essas opressões. Se buscamos construir uma representatividade para pessoas minorizadas em nossa organização, que seja equivalente à proporção e à vivência da nossa classe, devemos nos lembrar que as opressões que essas pessoas experimentam em nossa sociedade não se resumem às opressões de gênero e cor. As contradições e opressões criadas pelo capital tocam cada um dos aspectos de nossas vidas, e ter alguém de um grupo minorizado em posição de liderança que atue em lutas que vão além das opressões racistas, homofóbicas ou misóginas que sofrem nada mais é que a própria representação da amplitude da experiência de existir na ditadura da burguesia. Não foi essa lógica, aliás, que transformou os coletivos especializados em opressões em depósitos de militantes diversos, isolados do partido como organismo? Afinal de contas, criou-se uma tradição no partido de se direcionar militantes negros para o coletivo negro, militantes do gênero feminino para o coletivo feminista classista e militantes LGBTQIAP+ para o coletivo LGBT Comunista, de forma que esses militantes eram caracterizados e orientados de acordo com a opressão que sofriam e automaticamente relegados a uma concepção de que sua militância deveria ser direcionada apenas a ela, que esses militantes deviam ter sua militância pautada apenas por essa identidade. Ora, essa lógica não produziu representatividade ou diversidade dentro do partido, uma vez que, com ela, se tornou cômodo ao partido limitar sua atuação nas pautas de opressões a esses coletivos, sem que esses acúmulos precisassem ser socializados para fora deles e sem que o partido precisasse abordá-los diretamente. Quando se preconiza a ideia de que a representatividade se limita a pessoas oprimidas lutando necessariamente contra as opressões de forma prioritária, a tendência é de relegarmos esses grupos a um estereótipo pautado pela opressão, onde é essa opressão que os define e que define suas lutas, como se essas pessoas não pudessem militar para além disso, ao mesmo tempo em que pessoas que não sofrem as mesmas opressões são desobrigadas de fazer isso, já que já há aquele grupo de oprimidos fazendo isso com mais "propriedade" ou "lugar de fala" na periferia do complexo partidário. A representatividade se esvazia à medida em que ela se torna uma ilha isolada do resto do partido, como se os coletivos e os "representantes" estivessem sentados à mesa das crianças, brincando de militar com suas bandeiras de brinquedo, enquanto os adultos, na mesa dos adultos, constroem um partido e uma luta revolucionária discutindo sobre o que é "realmente importante".
Representatividade vazia, para mim, é escolher homens brancos heterossexuais para lutar por nós, em nosso lugar, convencidos de que eles conseguirão fazê-lo porque disseram que o fariam. Como um camarada bem pontuou durante a conferência que eu cito no início desse texto, um homem pode lutar pelas mulheres, mas nunca será a mesma coisa que uma mulher lutando pelas suas.
Me parece que a polêmica se baseia em uma dicotomia entre uma política de representatividade e diversidade pautada na imposição de cotas e uma pautada na criação de condições para que essas pessoas minorizadas se sintam aptas a assumir posições de direção no partido. Alguns camaradas argumentam que, se não criarmos espaços que priorizem a participação dessas pessoas nesses espaços, reproduziremos cada vez mais a lógica que semeou a estrutura oligarquica do partido. Outros acreditam que essa estrutura sufocou as condições para que mulheres, pessoas pretas e pessoas LGBTQIAP+ pudessem se sentir preparadas e com autoestima suficiente para assumir essas posições e que, portanto, essas condições devem ser criadas primeiro para que a partir disso se formem quadros capacitados para assumir e ocupar esses espaços. Até aqui, já deve estar claro que eu não vejo dicotomia nenhuma entre essas duas opções. Pelo contrário, eu escrevo essa tribuna justamente para sugerir humildemente o que eu acredito ser um caminho possível.
As condições para a representatividade e a diversidade em nossa organização não surgirão espontaneamente e não serão criadas sem um esforço coletivo que priorize a construção guiada pelas pessoas que desejamos que sejam representadas e incluídas em nosso movimento. Essas condições precisam ser semeadas por uma estrutura pensada com esse propósito e florescerão a partir da construção de um projeto político que tenha a diversidade como um de seus fios condutores. Eu acredito que isso significa preconizar sim a proporcionalidade de pessoas diversas em posições de direção do partido, como um imperativo estrutural, determinando que nominatas, comissões e instâncias diretivas tenham, necessariamente, proporções equivalentes de pessoas minorizadas e pessoas que não sofrem essas opressões, dentro do possível para cada núcleo/instância. Isso sem esperar dessas pessoas que dediquem sua militância apenas à luta contra opressões. Mas isso significa também que se deve construir no partido um espaço e uma cultura que forneçam apoio a essas pessoas para que elas consigam florescer em vez de quebrar. É necessário garantir a essas pessoas as ferramentas que elas precisam para construir as estruturas que elas sabem que são necessárias para enraizar a luta contra as opressões dentro da organização e não em uma estrutura isolada dedicada a isso. Precisamos aliar essa política de "cotas" a uma política organizacional de construção de uma cultura partidária diversa. Precisamos priorizar a presença desses militantes nos diversos espaços da organização, mas também cuidar de sua integridade, ajudá-los a construir a autoestima que tanto valorizamos em um quadro de direção e precisamos levar muito a sério essa luta dentro do partido, com seriedade no trato com casos de assédio, seriedade em ouvir nossos militantes e suas dores, entendendo que os diferentes recortes criam diferentes desafios e condições materiais para a militância, e seriedade em perceber os rumos políticos aos quais o nosso trato com essas questões nos levará.
Devemos sim determinar a necessidade da existência de pessoas minorizadas nos diferentes espaços, ao mesmo tempo em que devemos priorizar sua formação política entendendo os obstáculos que sua condição material impõe e criando ferramentas para sobrepuja-los. Se temos medo de colocar um militante despreparado em um espaço importante, que preparemos esse militante enquanto o integramos a esse espaço. Se acreditamos que esse militante pode não se sentir seguro para desenvolver esse trabalho, que criemos uma estrutura para assegurá-lo em vez de restringir o espaço de militância. Se temos medo de quebrar o militante com a responsabilidade e a sobrecarga de uma posição de direção, talvez devamos repensar esse espaço para que essa não seja a primeira consequência que consideramos ao pensar numa instância de direção, criar uma estrutura que permita distribuir essa sobrecarga de forma mais equilibrada e construir espaços onde esses militantes possam se preparar e aprender uns com os outros, além de se sentir seguros para compartilhar suas dificuldades. Afinal de contas, se temos medo de quebrar um militante novo, é porque os militantes mais experientes já estão quebrando, e isso não devia ser normal. Um partido comunista não pode ser um fardo para a sua militância, não devia ser um espaço de sobrecarga generalizada e não devia ser uma máquina de quebrar militantes. Um partido comunista devia ser a ferramenta da classe trabalhadora contra o capital, e não um peso a mais para o trabalhador carregar junto com o peso da exploração pelo capital. Ele deve ser um refúgio onde os trabalhadores se juntam para construir a revolução, mas também para que sejam acolhidos por camaradas que entendem e conhecem o sofrimento uns dos outros e se importam. Deve ser um espaço onde trabalhadores se ajudam e se escutam, e não um espaço onde se espera que cada um se esforce e se desdobre da maneira que for possível para tocar uma tarefa independentemente da sua vida para além da militância, sendo recompensado com mais carga quando consegue, e com o ostracismo quando não.
Camaradas, vamos construir um partido comunista que dê uma real importância para os militantes minorizados. Um que priorize sua participação sem esperar que ela surja do idealismo e sim da prática. Um que deseje manter esses camaradas através de um esforço coletivo e não de uma lógica liberal de falsa meritocracia onde se espera que o militante "se vire" para conseguir acompanhar os trabalhos. Que sejamos capazes de valorizar os seres humanos que compõem nossa organização nos importando com eles e os entendendo como seres humanos e não como corpos a serem explorados e esmagados pelo trabalho de militância. Não podemos nos contentar com uma estrutural organizacional que carece de diversidade e pensar que "não tem diversidade porque essas pessoas não têm a autoestima e a vontade de integrar o espaço, então não há o que se possa fazer". Se desejamos ser a vanguarda revolucionária da nossa classe, precisamos conhecer as diferentes lutas dela e dar importância a isso.
Saudações comunistas,
Milla, do PCB-RR DF.