'Existe socialismo no século XXI?' (Doni)

Não nos esqueçamos também que a China encabeça um processo de pilhagem violenta das riquezas naturais brasileiras, de exploração brutal, de acumulação de capitais às nossas custas.

'Existe socialismo no século XXI?' (Doni)
"Evidentemente, não só o Brasil é subjugado dessa maneira, podemos ver o mesmo ocorrendo em Ásia, África e especialmente na América Latina, como nos lembra bem ê camarada Marte. Como poderemos forjar um movimento verdadeiramente comunista latino-americano e coeso se não condenamos o imperialismo chinês sobre nosses irmães latines? Não nos esqueçamos de que não há socialismo em um só país!"

Por Doni para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

1. Sobre o motivo desse texto: 

Saúdo ê camarada A.K. por ousar escrever sobre o “socialismo chinês” e sobre sua visão acerca da China atual. Entendo que se trata de um assunto da primeira importância, por alguns motivos: 

O primeiro foi descrito pelo camarada Ivan Pinheiro, ao dizer que as tendências oportunistas tendem a se revelar inicialmente nas posições partidárias sobre a situação internacional, não por acaso o apoio do PCB às burguesias russa e chinesa no âmbito da Guerra da Ucrânia (violando as próprias resoluções do partido) foi um dos estopins do processo de racha que ainda vivemos e que ainda não se consolidou – o caso da famigerada “Plataforma Mundial Anti-Imperialista”.

Outro deles descrevi anteriormente [1], entendendo que a própria caracterização de “experiências socialistas” dada (principalmente) à URSS e à China mutila a teoria de Marx sobre o socialismo como fase inferior do comunismo, fazendo recortes que não consideram as determinações contraditórias dessas formações sociais que se resolveram com a restauração capitalista completa e não com a efetiva transição ao socialismo.

Nesse sentido, a tribuna de camarada Marte [2] foi bastante acertada em esclarecer a confusão teórico-política que é afirmar socialista um país que banca e lucra absurdamente com a destruição ambiental oriunda do agronegócio brasileiro há algumas décadas, que compra concessionárias de energia brasileiras a torto e a direito, que financia o ecocídio causado pelo plantio de milhões de pés de eucalipto para comprar celulose barata, que se beneficiou diretamente das atividades mineradoras da Vale – causadora de assassinatos em massa em Mariana e Brumadinho – e também exerce diretamente a atividade de mineração de forma lucrativa, etc. A maioria absoluta das commodities aqui produzidas a um enorme custo humano e ambiental vão para a China. Quem defende o caráter socialista da formação social chinesa está defendendo tudo isso acima e muito mais.

Há de se mencionar que uma revolução proletária que permitisse a recuperação de nossos recursos naturais pelo proletariado brasileiro impactaria de forma colossal o imperialismo chinês descrito pelo camarada Sebástian [3] que não apenas se fortalece com a constante transferência de valor da periferia ao centro: depende dela. A China hoje é nossa maior “parceira comercial”, ou seja, a principal importadora de commodities aqui produzidas e também a principal exportadora dos bens de capital que necessitamos para produzir energia, extrair minérios e petróleo, produzir grãos, etc.

Por fim, o último dos motivos diz respeito ao nosso partido e ao momento que enfrentamos. O camarada Lênin, no capítulo 1.D (Engels sobre a importância da luta teórica) de “O Que Fazer?” [4] relata que o movimento então social-democrata passava por uma situação parecida com a nossa: um tempo em que a “ampla difusão do marxismo [no nosso contexto, bem mais modesta] foi acompanhada por um certo rebaixamento no nível teórico” (p. 39). 

Nesse sentido, para o camarada, um dos motivos que justificavam a importância dos estudos teóricos era (p. 40):

“[...] primeiro, porque o nosso partido apenas começou a se formar, apenas começou a elaborar sua fisionomia, e está muito longe de ter ajustado contas com as outras tendências do pensamento revolucionário que ameaçam desviar o movimento do caminho correto. [...] Nessas condições, um erro ‘sem importância’ à primeira vista pode levar às consequências mais lamentáveis, e é preciso ser míope para considerar como inoportunas ou supérfluas as discussões de facção e a delimitação rigorosa das matizes. Da consolidação deste ou daquele ‘matiz’ pode depender o futuro da social-democracia russa por muitos longos anos.” (grifo nosso)

É pão comido o fato de ainda não termos superado as heranças malditas da forma de organização federalista, amiguista e mandonista do PCB, mas será que superamos também as concepções políticas que são o conteúdo dessa forma? Eis a importância da luta teórica, da construção efetiva de nossa teoria revolucionária, à qual deixo minha contribuição.

2. Ditadura do proletariado e socialismo são a mesma coisa? 

Antes de mais nada, se falamos sobre ditadura do proletariado e socialismo, precisamos esclarecer exatamente o que são essas coisas. Tomo como referência tanto o capítulo V de O Estado e a Revolução quanto a Crítica do Programa de Gotha. 

Para Marx:

“Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da transformação revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado.” (grifo nosso)

A ditadura do proletariado, portanto, é o período de transição entre o capitalismo e o socialismo (ou fase inferior do comunismo, como traremos logo mais), onde o proletariado toma o controle do “Estado” [5] e age no sentido de eliminar as condições materiais de sua existência, ou seja, a divisão da sociedade em classes.

De acordo com Lênin [6], “Segundo Engels, o Estado burguês não ‘morre’; é ‘aniquilado’ pelo proletariado na revolução. O que morre ‘depois’ dessa revolução é o Estado proletário ou semiestado”. 

O “Estado proletário”, “semiestado” ou ainda a “Comuna” é justamente a ditadura do proletariado, pois o Estado propriamente dito é uma “máquina destinada ao esmagamento de uma classe por outra, da maioria pela minoria” [7]. A Comuna, ao contrário do Estado propriamente dito, servirá ao “esmagamento de uma minoria de exploradores pela maioria dos escravos assalariados de ontem” e, em razão disso, exigirá um grau menor de violência, ou seja, a Comuna (que representará a classe trabalhadora proletária e não-proletária) já não precisa ser um gigantesco aparato de opressão, sua violência se dirigirá ao pequeno número de exploradores, burgueses, capitalistas, grandes proprietários, etc.

Lênin continua [8] a explicar que Marx, refutando a teoria lassalliana de que em uma sociedade socialista ê trabalhadore teria acesso a todos os “frutos de seu trabalho”, “estabelece o orçamento exato da gestão de uma sociedade socialista”. Isso porque Lassalle, propondo a criação de sociedades cooperativas pelo então Estado alemão em processo de unificação, defendia que o “fruto integral do trabalho” oriundo desse sistema, supostamente socialista, seria destinado aos trabalhadores.

Demonstrando a impossibilidade disso, Marx explica que, nessa sociedade cooperativa, antes de qualquer distribuição do produto social total precisam ser deduzidos recursos para a continuidade da produção em si, ou seja, para a manutenção de máquinas/fábricas/ferramentas, para a expansão das forças produtivas sociais e uma reserva contra acidentes de trabalho, desastres climáticos e outros acontecimentos fortuitos.

Após, da parte destinada à distribuição ês trabalhadorus também precisariam ser deduzidos recursos para a administração global da produção, para o estabelecimento de serviços públicos e uma previdência social para enfermes e aposentades, por exemplo.

Logo, é absolutamente impossível que todo o produto social seja distribuído diretamente ês trabalhadores. 

Prosseguindo, o camarada Marx defende que essa formação social é uma:

“[...] sociedade comunista, não como ela se desenvolveu a partir de suas próprias bases, mas, ao contrário, como ela acaba de sair da sociedade capitalista, portanto trazendo de nascença as marcas econômicas, morais e espirituais herdadas da velha sociedade de cujo ventre ela saiu.”

Nesse sentido, seria uma sociedade “fundada na propriedade comum dos meios de produção, [na qual] os produtores não trocam seus produtos”, ou seja, onde a inexistência da propriedade privada ensejaria a superação da lei do valor como reguladora geral da vida social a partir da troca de mercadorias. 

Como, então, trabalhadorus têm acesso ao produto social total nessa sociedade socialista?

“[...] Cada membro da sociedade, executando uma certa parte do trabalho socialmente necessário, recebe um certificado constatando que efetuou determinada quantidade de trabalho. Com esse certificado, ele recebe, nos armazéns públicos, uma quantidade correspondente de produtos. Feito o desconto da quantidade de trabalho destinada ao fundo social, cada operário recebe da sociedade tanto quanto lhe deu.” (grifo nosso) [9]

Nessa primeira fase da sociedade comunista (socialismo), o princípio que regula a distribuição do produto social total é ainda o princípio da troca de equivalentes, mas, sob essas novas condições, para Marx, “ninguém pode dar nada além de seu trabalho e, por outro lado, nada pode ser apropriado pelos indivíduos fora dos meios individuais de consumo”.  

Todavia, ês trabalhadorus são diferentes entre si, podem ter mais ou menos aptidão para determinado tipo de trabalho, podem ter mais ou menos resistência física, podem ter uma saúde mais ou menos debilitada, ter ou não ter família, etc., quer dizer, aplica-se uma regra igual (distribuição de recursos conforme o trabalho realizado) a indivíduos desiguais, que abstrai todas essas desigualdades da mesma forma que  qual o direito burguês (e todo direito), que não é imediatamente superado em todas suas facetas.

Todavia, ainda segundo Marx:

[...] essas distorções são inevitáveis na primeira fase da sociedade comunista, tal como ela surge, depois de um longo trabalho de parto, da sociedade capitalista. O direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade.  

Por fim, para o camarada, somente na fase superior da sociedade comunista, com o fim da oposição entre trabalho intelectual e manual, com o amplo desenvolvimento das forças produtivas sociais, com o fim do trabalho como primeira necessidade vital e com o fim da subordinação escravizadora à divisão do trabalho seria possível eliminar os últimos resquícios da sociedade capitalista e criar condições materiais para realizar a efetiva libertação da humanidade, resumida na palavra de ordem: “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!”.

3. Pra quê tudo isso?

Bem, camaradas, não sou um defensor dogmático do que Marx ou Lênin dizem sobre ditadura do proletariado, socialismo e comunismo, depois de um século da morte do camarada Lênin e de várias “experiências socialistas” no decorrer do século XX temos muito o que confrontar e estudar, isso é inegável.

Todavia, nossa práxis política não pode se dar a partir de recortes teóricos, afinal de contas, a crítica da economia política marxista não é a base de nosso movimento político? Nossa teoria política está intrinsecamente relacionada a esses pressupostos teóricos, de modo que é nosso dever nos apropriar deles antes de criticá-los, sem recortes, sem revisões, sem distorções.

Ê camarada A.K. Fer escreve [10]:

A diferenciação essencial entre capitalismo e socialismo reside no fato de que no socialismo o proletariado detém o controle do estado. 

Ê camarada confunde a ditadura do proletariado, o proletariado organizado politicamente para extinguir as condições materiais de sua própria exploração – a propriedade privada e o Estado burguês, com socialismo, a superação da sociedade capitalista onde já não há propriedade privada e, portanto, onde o produto social total não é apropriado de forma privada, porém sem que o direito burguês ainda esteja completamente superado. 

Todavia, é de se notar que isso não é feito por decreto, o socialismo não é meramente declarado, existirá onde as relações de produção e forças produtivas sociais forem transformadas e desenvolvidas a ponto de superar a propriedade privada, como Marx nos ensina na Crítica do Programa de Gotha:

A distribuição dos meios de consumo é, em cada época, apenas a consequência da distribuição das próprias condições de produção; contudo, esta última é uma característica do próprio modo de produção. [...] Se as condições materiais de produção fossem propriedade coletiva dos próprios trabalhadores, então o resultado seria uma distribuição dos meios de consumo diferente da atual. O socialismo vulgar (e a partir dele, por sua vez, uma parte da democracia) herdou da economia burguesa o procedimento de considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção e, por conseguinte, de expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição.” (grifo nosso)

O que dizer da maior representante do “socialismo real”, a União Soviética, quando um de seus líderes (Stálin), admite [11] que o “socialismo” convive muito bem não só com a circulação, mas também com a produção de mercadorias? 

Às vezes, pergunta-se: será que existe e atua em nosso país, em nosso regime socialista, a lei do valor?

Sim, existe e atua. Onde houver mercadorias e produção mercantil, não pode deixar de existir também a lei do valor.

A esfera de ação da lei do valor estende-se, em nosso país, antes de tudo, à circulação de mercadorias, à troca de mercadorias através da compra e venda, e principalmente à troca de mercadorias de consumo pessoal. Aqui, neste domínio, a lei do valor conserva, naturalmente dentro de certos limites, uma função reguladora.

Mas a ação da lei do valor não se limita à esfera da circulação de mercadorias. Ela se estende também à produção. Na verdade, a lei do valor não possui importância reguladora em nossa produção socialista, mas, não obstante, influi na produção, e isto não pode deixar de ser considerado ao dirigir a produção. Na verdade, os produtos de consumo, necessários à renovação da força de trabalho empregada durante o processo da produção, são produzidos e se realizam em nosso país como mercadorias, sujeitos à ação da lei do valor. (grifo nosso)

Stálin vai e volta ao tratar da questão, mas não consegue negar completamente a manifestação da lei do valor no âmbito da sociedade soviética, o que, aliás, seria uma mentira. 

O fato de a URSS não ter alcançado o socialismo não é, em si, um problema para nós nesse momento, a essa altura do campeonato já podemos dizer que é e foi impossível forjar o socialismo em um só país, toda revolução proletária, se constituída em verdadeira ditadura do proletariado, será cercada permanentemente por potências imperialistas que tentarão a todo custo impedir seu desenvolvimento e transformação em revolução proletária internacional, condição insuperável para alcançarmos, de fato, o socialismo. Isso sem falar na impossibilidade de se isolar do comércio mundial, de garantir uma autossustentabilidade completa sem participar dessas relações mercantis entre países.

Ê camarada Sebástian Sarapura [3] bem demonstra essa impossibilidade:

Nenhum processo de acumulação de capital, nem mesmo quando ele esteja sob comando consciente de uma direção operária (circunstancia que também identificamos como transição socialista), pode ficar por “fora” ou “descontectada” das leis tendencias do sistema enquanto totalidade mundializada. Isto, que foi mais que evidente nas contradições presentes nos países do chamado bloco socialista durante o século XX, deveria ser um pressuposto de qualquer análise sobre a China hoje.

Se a NEP representou nesse contexto (nacional e internacional), a partir da possibilidade incerta de revolução na Alemanha, a única alternativa viável para o desenvolvimento das forças produtivas, para o desenvolvimento material do socialismo, a sua implementação foi concomitante à perda efetiva da hegemonia proletária do processo, à burocratização contra a qual o PCUS não foi capaz de responder à altura das necessidades tão claramente expostas por Lênin à época, que, infelizmente, faleceu antes do desfecho desse processo.

O maior problema (nessa discussão específica) é a tentativa de justificar o injustificável, de declarar o fim da ditadura do proletariado e o início do socialismo como forma de isentar o Partido de trabalhar pela promoção da revolução internacional e de garantir internamente a criação de órgãos efetivamente proletários de poder. Ao contrário, sob o PCUS os sovietes foram burocratizados e despolitizados, a estratégia de frentes amplas antifascistas foi encaminhada, foram feitas concessões às potências imperialistas durante e após a II Guerra Mundial (como o fim da III Internacional), foi dado apoio à criação do estado “israelense”, etc. 

Essas circunstâncias não foram causas, foram consequências do fim da hegemonia proletária do processo revolucionário e, portanto, apenas representaram o desinteresse em cumprir as tarefas proletárias revolucionárias que se apresentaram.

Não se trata aqui de demonizar um ou outro dirigente. O ponto central é entender as terríveis condições em que o país se encontrava antes, durante e após a revolução, e confrontá-las com as decisões e ações políticas tomadas, compreender esse fenômeno social como totalidade e entender o que havia ali de contraditório, o que movimentou não só o partido, mas todo o país à conservação das relações capitalistas de produção em uma nova embalagem.

Se defendemos (em vão) que o atual governo petista de rendição neoliberal politize o debate, governe “a quente”, que traga para o discurso público os fundamentos e soluções para a superação da fome, do analfabetismo, da carestia, etc., porque não aplicamos a mesma regra às supostas experiências socialistas? A luta contra a burocratização do nascente Estado (semiestado? Comuna?) soviético, a luta pela participação efetiva – principalmente do operariado – na construção política, econômica e cultural dessa ditadura do proletariado no rumo do socialismo foi uma preocupação que envolveu os últimos dias de Lênin [12].

Para Francisco Martins Rodrigues, a revolução russa morreu no berço [13] em face de condições materiais dificílimas, o pequeno proletariado russo (pequeno em face da enorme massa camponesa) foi dizimado pelas invasões imperialistas, pela guerra civil e por uma catástrofe econômica e “na ausência do proletariado (“o proletariado já não existe como classe”, constatava Lenine em 1922), era todo o plano de uma aliança operário-camponesa que se desmoronava.”

À pergunta: “Porque é tão importante desmitificar definitivamente o caráter “socialista” da ex-URSS?” o autor responde:

[...] Porque sem isso o pensamento comunista não poderá sair do eclipse em que foi mergulhado pela longa agonia desse regime. Se o movimento comunista recebeu dele inspiração e apoio na luta contra o capitalismo, ficou também preso nas contradições sociais, políticas e ideológicas que o enleavam.

A triste declaração do socialismo por decreto [14], não foi nem poderia ser capaz de parar o movimento de plena restauração capitalista que já há muito havia começado e seria inútil especular se isso seria possível ou não, a questão é que se nós não nos livrarmos dessa crença infantil nessas supostas experiências socialistas será impossível avançar. Crítica, crítica e mais crítica é do que precisamos.

Aliás, camaradas, nosso próprio Manifesto [15] traz um exemplo de uma tentativa de abolição por decreto ao descrever como o CC do PCB, ao elaborar pré-teses para o XVI Congresso, quis declarar a ultrapassagem da reconstrução revolucionária, abrindo caminho para todo tipo de revisionismo e absurdo pequeno-burguês.

Podemos e devemos utilizar o mesmo raciocínio crítico em relação à República Popular da China (RPC). Ê camarada A.K. Fer escreveu uma segunda tribuna [16] na qual fala mais sobre a NEP e expressa dúvidas sobre se a Revolução Chinesa teve, em algum momento, o caráter de ditadura do proletariado.

Acredito que o que expus até aqui já permite dizer que a China não é um país socialista, bem como seria impossível que apenas um país, isoladamente, realizasse essa transição. Isso porque essa superação do capitalismo envolveria a superação de relações sociais que hoje são dominantes na RPC, como o trabalho assalariado e a intermediação de todas as relações sociais pela forma-mercadoria, por mais que a propriedade pública ou não-privada dos meios de produção esteja materializada em grandes conglomerados estatais.

Mesmo assim, em tese a não-materialização do socialismo não quer dizer, necessariamente, que a formação social chinesa não poderia ser, atualmente, uma ditadura do proletariado em processo de transição ao socialismo, desde que essa tarefa estivesse colocada e sendo cumprida. Não é o caso.

Já em 1949 [17], Mao Zedong coloca o caráter democrático-burguês da revolução chinesa, composta de uma frente anti-imperialista do proletariado, campesinato, pequena-burguesia e burguesia nacional (em oposição à fração burguesa que defendia e lucrava com a dominação imperialista ali instaurada):

Sim, caros senhores, tendes razão. Com efeito, instauramos a ditadura. A experiência acumulada pelo povo chinês durante vários decênios nos fala da necessidade de instaurar a ditadura da democracia popular. Isto quer dizer que os reacionários devem ser privados do direito de expressar sua opinião e que só o povo tem o direito de voto, o direito de manifestar sua opinião. Quem é o "povo"? Na etapa atual o povo da China é integrado pela classe operária, a classe camponesa, a pequena burguesia e a burguesia nacional. Sob a direção da classe operária e do Partido Comunista, estas classes se uniram para formar seu próprio Estado e escolher seu próprio governo, a fim de instaurar a ditadura sobre os lacaios do imperialismo — a classe dos latifundiários e o capital burocrático —, a fim de esmagá-los e só tolerar sua atuação dentro de certos limites, a fim de não permitir que passem desse limite, nem em palavras, nem em atos. (grifo nosso) 

Por outro lado, Lênin [18] afirma que a hegemonia do proletariado, em uma guerra:

“[...] pertence a quem luta com mais energia, que não perde nunca uma oportunidade de atacar o inimigo, cujas palavras não diferem das ações, e que é, portanto, o líder ideológico das forças democráticas, que critica as medidas hesitantes de todo tipo.”

Os “interesses democráticos” da burguesia no âmbito das revoluções democrático-burguesas são bastante estreitos, a ela interessa principalmente o fim das intervenções autoritárias e das amarras sobre seu poder econômico já estabelecido e em franco desenvolvimento. Uma vez que o Estado não seja mais um obstáculo ao avanço das relações mercantis e que esteja direta ou indiretamente sob controle burguês, qualquer avanço será reprimido violentamente.

O poder político da burguesia tende a crescer em proporção direta a seus ganhos econômicos. Na China pós-1949, ávida por desenvolver uma indústria nacional e garantir sua soberania, concessões foram feitas e ganhos magníficos (diretos e indiretos) foram conquistados por essa classe. A resposta maoísta, desde o princípio, se concentrava na tolerância para com essa burguesia e na crença na reeducação, na luta contra sua ideologia e em transformações culturais como respostas, sem, contudo, alterar a base material das relações de produção. 

E se a reforma agrária foi conquistada e empresas estatais e mistas foram fundadas, comandando inicialmente a produção, mesmo que com pequena participação inicial de empresas privadas, a Revolução Chinesa enfrentou o mesmo dilema da Revolução Russa, a partir de circunstâncias particulares [19]:

A incorporação maciça no novo regime dos técnicos, funcionários, administradores, oficiais do exército e intelectuais “recuperados” do Kuomintang e ganhos para a revolução à custa de altos salários; a integração dos antigos capitalistas “nacionais” na gestão das empresas que lhes tinham sido expropriadas, com grossas indemnizações e participação nos lucros; a invasão do partido pela pequena-burguesia, ansiosa por ter a sua parte no poder; o abismo que continuava a existir entre a elite dirigente e os trabalhadores manuais; a consolidação de rígidas hierarquias nas empresas, no exército e no Estado — tudo isto tornava simbólico o poder dos trabalhadores. O partido tinha comprado a adesão da burguesia nacional” e da pequena burguesia, mas esta não se contentava com as somas fabulosas embolsadas — queria o poder.

Contra a expansão do poder dos técnicos e burocratas, aliados à burguesia nacional, Mao lançou mão da Revolução Cultural, cujo próprio nome já indica uma insuficiência entre o que se propunha a fazer, o combate à ideologia burguesa, e o que era realmente necessário, a ultrapassagem da fase democrático-burguesa da revolução a partir da hegemonia proletária.

Quando, no decorrer desse processo, surge um movimento de aprofundamento da revolução por parte de “esquerdistas” dispostos a instaurar a ditadura do proletariado e estabelecer uma Comuna a partir dos princípios adotados pelos communards em Paris, Mao se recusa a abrir mão da conciliação e da estratégia democrática-burguesa que tão habilmente tinha utilizado para desvelar a primeira fase da revolução [20]: 

Ao fazer aniquilar o “ultra-esquerdismo” pelo exército, Mao liquidou as forças vivas da revolução, privou-se da sua única barreira perante a direita e veio a afundar-se face ao lento retorno desta — a isto se resume o desenlace trágico da revolução cultural.

Embora o ascenso completo dos setores burocráticos e burgueses tenha sido momentaneamente parado pelo movimento da Revolução Cultural, a sua suposta vitória contra o “setor esquerdista”, na realidade o proletariado organizado para estabelecer sua ditadura, cimentou também o fortalecimento daqueles que Mao tentou, no início, combater.

O golpe da direita após sua morte foi, portanto, consequência direta do enfrentamento despolitizado e conciliatório proposto por Mao contra a burguesia e de sua iniciativa, evidentemente apoiada pela direita, de enfraquecer, desarticular e destruir os setores mais avançados do proletariado chinês.

4. Isso importa? 

Antes de mais nada, saúdo ês pacientes que me acompanharam até aqui.

Talvez o paralelo entre essas “experiências socialistas”, a NEP, a Revolução Cultural, etc., e nossa realidade seja um pouco obscuro, mas, de fato, ele existe.

Como nos ensinaram Marx e Lênin, não há socialismo sem revolução proletária internacional e não haverá revolução proletária internacional se continuarmos nutrindo ilusões acerca da RPC. 

Afinal de contas, camaradas, reforço que a crença na China como bastião de um suposto socialismo/anti-imperialismo foi justamente um dos motivos do nosso racha, não nos esqueçamos que a posição frouxa e covarde do PCB de “não ter posição firmada” sobre o caráter da RPC [21] findou no apoio das burguesias chinesas e russas na guerra imperialista na Ucrânia. 

Não nos esqueçamos também que a China encabeça um processo de pilhagem violenta das riquezas naturais brasileiras, de exploração brutal de trabalhadorus brasileiros, de acumulação de capitais às nossas custas. 

Não nos esqueçamos de que o Estado brasileiro é um aparato de opressão burguês e é interesse da burguesia brasileira (e chinesa) garantir que esse processo continue por meio da expulsão de comunidades indígenas e quilombolas de suas terras, do desmatamento de nossas florestas, da poluição de nossos rios, etc. 

Evidentemente, não só o Brasil é subjugado dessa maneira, podemos ver o mesmo ocorrendo em Ásia, África e especialmente na América Latina, como nos lembra bem ê camarada Marte. Como poderemos forjar um movimento verdadeiramente comunista latino-americano e coeso se não condenamos o imperialismo chinês sobre nosses irmães latines? Não nos esqueçamos de que não há socialismo em um só país!

O momento congressual é o momento para a delimitação de nossos matizes, temos agora a oportunidade de definir inequivocamente nossa oposição consequente ao capitalismo-imperialismo, seja ele azul e vermelho ou apenas vermelho, e de traçar os rumos para nossa vitória definitiva sobre ele!


[1] 'Precisamos defender as “experiências socialistas”?’, acesso em https://emdefesadocomunismo.com.br/precisamos-defender-as-experiencias-socialistas/

[2] 'Sobre o "socialismo chinês" e a posição da China na cadeia imperialista' (Marte), acesso em https://emdefesadocomunismo.com.br/sobre-o-socialismo-chines-e-a-posicao-da-china-na-cadeia-imperialista-marte/

[3] 'Potência imperialista? Considerações críticas sobre a caracterização da China nas teses preparatórias' (Sebastián Sarapura) https://emdefesadocomunismo.com.br/potencia-imperialista-consideracoes-criticas-sobre-a-caracterizacao-da-china-nas-teses-preparatorias-sebastian-sarapura/

[4] O que fazer? Questões candentes de nosso movimento. Lênin, Vladímir Ílitch, 1ª edição, ed. Boitempo, páginas 37 e s/s;

[5] Na carta de Engels a Bebel de 18/28 março de 1875, Engels explica que em vez de Estado Marx poderia ter se utilizado do termo comunidade ou comuna, uma vez que o proletariado, tomando o poder, não o exercerá sob a mesma lógica do estado burguês, que é a opressão uma maioria trabalhadora (operária, camponesa e etc.) por uma minoria proprietária;

[6] O Estado e a Revolução: o que ensina o marxismo sobre o Estado e o papel do proletariado na revolução.  Lênin, Vladímir Ílitch, 1ª edição, ed. Boitempo, p. 37; 

[7] Idem, p. 110 e s/s;

[8] Idem, p. 111 e s/s;

[9] Idem, p. 112;

[10] 'Em defesa do socialismo chinês: Capitalismo de Estado ou nova NEP?' (A. K. Fer), acesso em https://emdefesadocomunismo.com.br/em-defesa-do-socialismo-chines-capitalismo-de-estado-ou-nova-nep/

[11] Problemas Econômicos do Socialismo na URSS. Stálin, J. V., acesso em https://www.marxists.org/portugues/stalin/1952/problemas/index.htm, Capítulo 3: A lei do valor no socialismo;

[12] É Melhor menos, mas melhor. Lênin, Vladímir Ílitch. Acesso em  https://www.marxists.org/portugues/lenin/1923/03/03.htm

[13] A Revolução que não pôde ser socialista. Rodrigues, Francisco Martins. Acesso em https://www.marxists.org/portugues/rodrigues/1997/10/socialista.htm

[14] A Nova Constituição Soviética, acesso em https://www.marxists.org/portugues/stalin/biografia/ludwig/constituicao.htm;

[15] Manifesto em defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB!, acesso em https://emdefesadocomunismo.com.br/manifesto-em-defesa-da-reconstrucao-revolucionaria-do-pcb-post/

[16] 'Fora Esquerdistas! Ao menos leram texto algum?' (A. K. Fer), acesso em https://emdefesadocomunismo.com.br/fora-esquerdistas-ao-menos-leram-texto-algum/;

[17] Sobre a Ditatura da Democracia Popular. Zedong, Mao. Acesso em https://www.marxists.org/portugues/mao/1949/mes/ditadura.htm

[18] Democracia proletária e democracia burguesa (em Estratégia e Tática da Hegemonia proletária, org. por ed. Lavrapalavra). Lênin, Vladímir Ílitch.

[19] A Revolução Cultural e o fim do Maoísmo. Rodrigues, Francisco Martins. Acesso em: https://www.marxists.org/portugues/rodrigues/1988/02/fim.htm;  

[20] Idem;

[21] O que pensamos sobre a China. Acesso em: https://pcb.org.br/portal2/30071;