'Sobre o "socialismo chinês" e a posição da China na cadeia imperialista' (Marte)

O que sabemos é que o atual projeto das classes dominantes para o desenvolvimento chinês não é socialista, pois preda os povos explorados do mundo para se alimentar e está em contradição com qualquer perspectiva de revolução no Brasil, na América Latina e em todo o mundo.

'Sobre o "socialismo chinês" e a posição da China na cadeia imperialista' (Marte)

Por Marte para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas, escrevo essa tribuna em combate a dois equívocos fundamentais na análise do que é a China atualmente, ou seja, os debates sobre socialismo e imperialismo no século XXI.

Primeiro equívoco: caracterizar a China pelo que o governo chinês fala de si mesmo

 Vejam, nos documentos do PCCH e do governo chinês podemos encontrar um sem número de descrições de como se dará o processo de desenvolvimento do país, o avanço rumo ao “socialismo” (“uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos”) previsto para 2049, as metas que o governo estabelece para si mesmo (e que geralmente cumpre com antecedência em relação aos prazos estabelecidos), etc. Nas palavras de Karl Marx, “os homens não são o que pensam e desejam, mas o que fazem”, ou seja, não podemos tratar como verdades palavras que são jogadas ao vento ou marcadas em papéis, pois o papel aceita tudo, enquanto o critério da verdade é a prática.

Mesmo assim, pode-se argumentar a partir do que eu mesma apontei, que os chineses estão sempre fazendo jus a seus planos e projeções e que não haveria motivo para duvidar das intenções chinesas de avançar para o socialismo. Entendo como esse argumento tem um apelo empírico, pois, observando a realidade, realmente é inegável que a China é extremamente competente em cumprir o que promete sobre si mesma. No entanto, algumas pessoas (militantes ou não) se empolgam e acabam tratando a China por algo que nem a própria China reivindica para si atualmente: a afirmação de que hoje a China é um Estado proletário. Camaradas, o que é um Estado proletário, senão a ditadura da classe proletária sobre TODAS as outras? Já houve ditadura do proletariado na China, ou o que houve foi um governo policlassista, anti-imperialista, liderado pelo Partido Comunista, em aliança com o gigantesco campesinato e um proletariado significativo, mas ainda em desenvolvimento? Vejam só, até na Rússia revolucionária, onde o governo estabelecido pela revolução bolchevique era chamado de “ditadura democrática do proletariado e do campesinato”, o campesinato foi submetido às necessidades do proletariado e a agricultura foi coletivizada à revelia dos pequenos proprietários do campo. Os resultados dessas medidas são tema para outro escrito, mas o fato é que o proletariado se impôs politicamente sobre TODAS as classes, inclusive o campesinato, seu principal aliado.

Deixando de lado esses elementos do debate, mesmo que fosse consenso que a China já foi uma ditadura do proletariado no passado, não faltam provas de que atualmente não se trata de uma. Meu principal argumento é o segundo equívoco do qual tratarei.

Segundo equívoco: a teoria comparativa do imperialismo e o descolamento da política interna e externa

Camaradas, acredito (e espero muito) que seja consenso entre todas as pessoas que reivindicam a reconstrução revolucionária do Partido Comunista no Brasil, que não existe socialismo imperialista. Ou se é um, ou se é o outro. No caso em questão, não faltam provas de que se trata do outro. Primeiro, sobre o “imperialismo comparativo”. Não faz sentido nenhum para um marxista olhar para o mundo e dizer “a China até que apresenta elementos imperialistas em sua política, mas em comparação com os membros da OTAN, não podemos caracterizá-la como imperialista”. Afirmo isso com tranquilidade. Não preciso nem abrir o livro “Imperialismo” Lênin para comprovar que nosso querido careca não desenvolveu a teoria do imperialismo tendo como parâmetro países específicos, mas sim pensando em um estágio de desenvolvimento do sistema capitalista, vide que o título do livro é “Imperialismo, estágio superior do capitalismo”, e não “Imperialismo, conduta exclusiva de EUA, Inglaterra e França”. Levando em conta essa lógica comparativa, poderia um marxista do primeiro quarto do século XX olhar para EUA e Inglaterra e afirmar que os EUA não são imperialistas, pois não possuíam colônias à moda antiga e não escravizavam outros povos à seu serviço, como fazia a Inglaterra e as outras potências europeias?

O caráter imperialista do projeto estadunidense de nação e de mundo se revela muito antes da primeira invasão dos EUA a outro país, ele se encontra na expansão estadunidense para o “Velho Oeste”, no extermínio dos povos indígenas da América do Norte e do roubo do Texas contra o México, entre outros muitos episódios em que fica nítida a sanha expansionista e supremacista branca das classes dominantes que se forjavam no calor das lutas internas da constituição da nação estadunidense. O próprio Marx era um estudioso desses processos, mas à época de Marx seria anacrônico falar em imperialismo, pois o capitalismo se desenvolvia em outros termos, daí o salto qualitativo lenineano que se vê na teoria do imperialismo. Os EUA não poderiam mais ser caracterizados como uma potência mercantil, bélica, colonialista e concorrencial a nível internacional, pois o caráter de seu desenvolvimento dentro do desenvolvimento histórico do capitalismo já apontava para uma superação dos antigos moldes do desenvolvimento capitalista. Eis aí o imperialismo, capitaneado pelos Estados Unidos, mas sem excluir as antigas potências europeias, que ao longo do tempo foram se tornando sócias maiores ou menores dos EUA. No “Imperialismo”, os dados levantados por Lenin mostram justamente isso, que junto com a ascensão dos EUA ascendia também uma nova forma do capitalismo de se desenvolver, enquanto a forma antiga ruía, junto das antigas potências, mas isso não significava que elas também não estivessem se adequando ao desenvolvimento imperialista do capitalismo, daí seu reposicionamento enquanto sócias do novo “acionista majoritário” do sistema, os EUA.

O que vemos atualmente, é mais um momento de reordenamento das posições dos países na cadeia do desenvolvimento capitalista, com os EUA tendo sua hegemonia questionada por uma China extremamente poderosa e que, apesar de ter suas bases fincadas na Revolução Chinesa de 1949, atua internacionalmente nos moldes do imperialismo, se desenvolvendo em detrimento dos outros países, sejam eles os europeus, os EUA, ou até mesmo o Brasil, que acredito ser um exemplo extremamente elucidativo do que é popularmente conhecido como “imperialismo chinês”, mas que é só “imperialismo” mesmo. Nos últimos dez anos explodiram os casos de aproveitamento da destruição de nosso país pelo desenvolvimento chinês, principalmente no tocante à mineração ilegal em terras indígenas e à expansão do agronegócio. Em 2018, a UNISINOS publicou uma matéria denunciando uma série de situações onde a China se beneficia da destruição da Amazônia brasileira para se desenvolver e expandir seus negócios. Em 2022, o Brasil de Fato noticiou que a mineração ilegal de manganês em terras indígenas estava gerando bilhões de lucro e que a principal exportadora do manganês ilegal era a China (U$1,3bi em seis anos). Um ano antes, o portal eCycle divulgava dados do projeto Amazônia Minada, denunciando que os “povos Kayapó sofrem com o impacto da alta demanda chinesa por manganês”.

Em 2015, o governo Dilma buscava acertar com o governo Chinês a construção da Ferrovia Bioceância, que ligaria o Brasil ao litoral peruano, facilitando o transporte das matérias primas exportadas para a China pelo agronegócio brasileiro, em alternativa à longa rota que sai dos portos de Santos (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Paranaguá (PR). Em vez de cruzar todo o Atlântico Sul, passar pela costa africana, cruzar o Índico para, finalmente, atracar na China, a Bioceânica garantiria um transporte muito mais rápido, diretamente pelo Oceano Pacífico, evitando, inclusive, as rotas comerciais militarizadas pelos EUA. Verdadeiro “negócio da China”, tanto para a China como para o Brasil e o Peru, mas não para os nossos povos indígenas, que sequer foram consultados sobre a viabilidade do projeto que atravessará suas terras, alterando a paisagem e as dinâmicas dos ecossistemas, além de trazer para perto desses povos um fluxo de pessoas não-indígenas que pode ser extremamente nocivo, tanto em termos sanitários, como em termos de segurança.

A matéria da UNISINOS sobre a presença chinesa no Norte do país apresenta as manifestações dos povos indígenas demandando que sejam ouvidos. Além da Bioceânica (agora Transoceânica), existem mais dois projetos de ferrovias na região que são financiados majoritariamente por empresas chinesas, são a Ferrogrão e a Ferrovia Paraense. Em ambos os projetos se vê o mesmo descaso com os povos indígenas que se encontram no caminho do “progresso”, apoiados, inclusive, pelo deputado Jorge Viana, do PT do Acre, e Acir Gurgacz, do PDT de Rondônia, que junto à deputados do PMDB e do Republicanos (partido de Tarcísio de Freitas e outras figuras advindas do bolsonarismo), deram entrevista se comprometendo a pressionar o governo para que o projeto avance, pois “o mercado hoje é a Ásia”. Citando a matéria da UNISINOS:

“A possibilidade de implementação da Transoceânica coincide com a tendência global de investimentos que tem impulsionado a infraestrutura logística dirigida ao eixo do Pacífico, com forte incidência da diplomacia chinesa, por meio de acordos bilaterais, e do capital chinês, por meio da compra de terras (sobretudo em países que permitem a compra de grandes porções de terra por entes estrangeiros), da participação em leilões de megaprojetos e do financiamento.”(grifos originais)

Ou seja, o capital chinês está incidindo fisicamente sobre o nosso território para beneficiar a si mesmo, com alguns benefícios colaterais para o Brasil. Mas será que esses benefícios compensam os possíveis malefícios (mais desmatamento, mais atividade ilegal na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal, mais extermínio de povos indígenas, maior expansão do agro e da mineração…)? Em maio do ano passado (2023), o Ministério Público Federal pediu um novo estudo sobre os impactos ambientais de mais um projeto ferroviário, a Nova Ferroeste, que cruzará o Paraná e o Mato Grosso do Sul, rumo ao Paraguai, que já se manifestou solicitando uma revisão do projeto para que não atravesse territórios indígenas dentro do Paraguai.

Outro elemento importante é a balança comercial Brasil-China. Em estudo encomendado pela Câmara dos Deputados, se vê que o Brasil segue exportando majoritariamente produtos primários, de baixo valor agregado/complexidade produtiva e importando majoritariamente manufaturados, produtos de alto valor agregado/complexidade produtiva. A balança comercial Brasil-China só é favorável para o Brasil por conta do volume de nossas exportações e por causa das exonerações fiscais garantidas pela Lei Kandir, do governo FHC e que fora reforçada recentemente pelo governo Lula. Essa lei garante que grandes exportadores de mercadorias agrícolas in natura sejam isentos de taxação, o que serve como grande incentivo para que os capitalistas do agro produzam para exportação e não para o consumo interno, pois a inserção dos produtos no mercado interno implicaria em taxação.

Isso tudo só sobre o Brasil, camaradas. Se pesquisarem por conta própria, encontrarão casos extremamente semelhantes envolvendo a China, tanto na América Latina como na África. O debate aqui não é moral, não é se a China é melhor ou pior que os EUA e seus aliados, mas sim sobre o novo reordenamento do sistema internacional e as transformações que virão com ele. Será a China a linha de frente de uma nova lógica de acumulação de capital, um novo estágio do capitalismo? Não sabemos. O que sabemos é que o atual projeto das classes dominantes para o desenvolvimento chinês não é socialista, pois preda os povos explorados do mundo para se alimentar e está em contradição com qualquer perspectiva de revolução no Brasil, na América Latina e em todo o mundo.


Referências

Mineração ilegal

https://www.brasildefato.com.br/2022/04/18/mineracao-ilegal-em-terras-indigenas-lucra-bilhoes-com-manganes

https://www.ecycle.com.br/povos-kayapo-sofrem-com-impacto-da-alta-demanda-chinesa-por-manganes/

https://infoamazonia.org/project/amazonia-minada/

 Ferrovias

https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/10/ministerio-publico-tenta-suspender-processo-de-concessao-da-ferrograo.shtml

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/188-noticias-2018/577177-grandes-projetos-na-amazonia-expoe-a-influencia-da-china-em-violacoes-socioambientais

https://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/30/politica/1438262981_380956.html

https://www.gazetadopovo.com.br/parana/nova-ferroeste-pedido-mpf-estudos-ambientais/

LIMA, Pedro Garrido da Costa. EVOLUÇÃO RECENTE DA BALANÇA COMERCIAL BRASIL-CHINA. Março, 2023, Câmara dos Deputados, Consultoria Legislativa. Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/41211