'Potência imperialista? Considerações críticas sobre a caracterização da China nas teses preparatórias' (Sebastián Sarapura)

Embora considere correta a maior parte da formulação ali apresentada, avalio que ela tem como limitação não conseguir nomear a potência asiática como o que ela efetivamente é: uma potência imperialista.

'Potência imperialista? Considerações críticas sobre a caracterização da China nas teses preparatórias' (Sebastián Sarapura)
Dazibao in the streets. Fonte: https://fairbank.fas.harvard.edu/research/blog/exhibiting-the-cultural-revolution-part-3-dazibao-exhibitionism-2/

Por Sebastián Sarapura para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Na presente tribuna, pretendo criticar a caracterização da China contida no Caderno de Teses aprovado na II Plenária Nacional do PCB-RR. Embora considere correta a maior parte da formulação ali apresentada, avalio que ela tem como limitação não conseguir nomear a potência asiática como o que ela efetivamente é: uma potência imperialista. Longe de se tratar de uma questão de preciosismo acadêmico, a correta caracterização de um dos principais centros de acumulação de capital no mundo hoje tem, evidentemente, importantes implicações no desenvolvimento de nossa prática. O processo de Reconstrução Revolucionária não é possível sem levar até as últimas consequências a crítica do reformismo e oportunismo ainda presentes no movimento comunista. Parafraseando Lenin, dado que nosso partido apenas começa a formar-se, seria um erro achar inoportunas ou supérfluas as discussões fracionais e a delimitação rigorosa dos matizes [1].

Conforme a exposição apresentada no Caderno, a China contemporânea se caracterizaria por "[...] sofrer um recuo a partir da década de 1970 com a implementação de reformas pró-mercado que permitiram o surgimento de novos monopólios no país". Em função do anterior, segundo o mesmo documento, se constata i) um retrocesso em relação à planificação da economia chinesa e ii) o desenvolvimento de uma classe burguesa com interesses monopolistas. A caracterização reconhece corretamente que a China ocupa um "[...] lugar destacado na cadeia imperialista global, em disputa contra o bloco EUA-UE [...]". Nesse sentido, chega-se a uma conclusão muito clara com respeito aos interesses do Estado chinês, (com a qual, diga-se de passagem, concordamos): "[...] seus interesses estatais internacionais são os da burguesia chinesa, em disputa contra as demais potências imperialistas por matérias-primas, força de trabalho e investimentos em outros países".

Sem sombra de dúvidas a descrição anterior apresenta os trazos de uma potência imperialista. Qual é a dificuldade de conseguir utilizar uma categoria que expresse adequadamente as determinações que o próprio texto expõe? Avalio que, ao menos em parte, isso pode advir da indefinição política que é característica dos marxistas acadêmicos e de todos aqueles que tem receio de extrair as consequências programáticas que se derivam de assumir o ponto de vista do proletariado [2]. Em ambos os casos, isso se expressa ou como ecletismo teórico ou como posições políticas ambíguas, pouco úteis para a ação revolucionária. Trata-se de um desvio pequenho-burgués que, consciente ou não, precisa ser combatido. 

Um exemplo claro disso nas fileiras do PCB-RR é a posição individual que o camarada Jones Manoel apresenta em alguns de seus vídeos sobre a China. Longe de realizar uma crítica sistemática à opinião particular do camarada (o que ultrapassa o objetivo deste texto), vamos nos limitar a uma observação de método, considerando a argumentação presente no vídeo intitulado “A China é um país imperialista?”[3]. Em vez de tentar descobrir os nexos que operam entre a expansão econômica da China, enquanto participante da ordem imperialista, e as formas de planejamento econômico, e outros aspectos resultantes de sua história nacional particular; a caracterização presente no vídeo contrapõe essas dimensões. Daí que a exposição, apesar de ser uma descrição relativamente cuidadosa, consista em uma enumeração de aspectos contraditórios, sem conexão aparente. A cisão entre o político e o econômico resulta em destacar os traços que tornam a China um Estado diferente de qualquer potência ocidental. O que, sem sobra de dúvidas, é verdade. Essa peculiaridade, no entanto, deveria ser reubicada na exposição, como parte constitutiva da totalidade capitalista-imperialista. Uma tentativa de síntese que coloque o particular no geral tem, como veremos, sérias implicancias políticas. 

Certamente, a caracterização da China não é uma tarefa simples. Mas, como a própria exposição das teses criticadas demonstra, a análise formulada por Lenin nos permite avançar nesse sentido. O clássico livro [4] do dirigente bolchevique é um claro exemplo de que, para os marxistas, o processo de conhecimento está sempre subordinado a orientar a intervenção do proletariado na luta de classes. Como assinalou um conhecido comunista húngaro, o aporte fundamental de Lenin consiste “[...] na íntima e concreta vinculação que foi capaz de estabelecer entre a teoria econômica do imperialismo e o conjunto dos problemas políticos” [5]. A revindicação da contribuição leninista citada é muito clara. Trata-se de uma formulação que tem por objetivo dar resposta a problemas cojunturais e, por isso, muito concretos, da luta proletária internacional: 

“Ao analisar a essência do capitalismo monopolista, o que em primeiro lugar lhe interessa é a situação mundial concreta e a divisão de classes na sociedade que dela decorre: como as grandes potências coloniais dividem de fato a terra, como evolui a divisão interna entre a burguesia e o proletariado com o movimento de concentração de capital (camadas puramente parasitárias de rentistas, aristocracia operária, etc.) e, acima de tudo, como a evolução interna do capitalismo monopolista transborda - devido aos diferentes ritmos dos países - as "zonas de interesses" estabelecidas anteriormente de maneira mais ou menos duradoura e pacífica, ultrapassando assim muitos compromissos desse tipo, resultando, consequentemente, em conflitos cuja solução só pode ser alcançada pela força, ou seja, recorrendo à guerra” [6].

A extensa citação permite identificar a formulação leninista do imperialismo como um diagnóstico de época. Trata-se, mais do que de uma descrição geral válida para todo tempo e lugar, de uma análise que tem a intenção de resolver problemas concretos restritos a um momento particular na história da luta de classes [7]. Colocar essa precisão é importante porque, ao mesmo tempo que destacamos a necessária relação entre formulação teórica e prática revolucionária, também evidenciamos que a compreensão de Lenin sobre o fenômeno imperialista deve ser adequadamente situada no seu contexto histórico. Uma derivação óbvia disso é que esta pode ter limitações analíticas quando aplicada a fenômenos comtemporâneos sem as mediações adequadas. 

A perspectiva teórica que fundamenta a caracterização da China no Caderno é claramente influenciada pela formulação leninista. Isso explica por que a conclusão geral, de que não se deve ter ilusões quanto à China ser um ponto de apoio para o movimento comunista internacional na nossa época, é essencialmente correta. Ao abordar o imperialismo não como uma política de um país ou bloco de países, mas sim como uma etapa do capitalismo como um todo, a conclusão não poderia ser diferente.

Entretanto, considero que a exposição de Lenin, entre outras coisas, ao ter como alvo principal a compreensão do seu momento histórico, perde cuidado no tratamento de determinações que são fundamentais para a compreensão do capitalismo-imperialismo em um nível mais geral. O reconhecimento do movimento do capital como um processo automático de valorização do valor [8], por exemplo, permite esclarecer a necessária unidade entre o capital social total [9] e a atuação de um Estado particular (e seus capitais individuais). Isso é particularmente importante para superar as ambiguidades na caracterização da trajetória econômica chinesa e a responsabilidade política do PCCh nesse processo. 

A exposição de Lenin, embora tenha um alcance geral que inclusive possibilita a compreensão parcial de processos contemporâneos, carece de um trato cuidadoso das determinações do superlucro e dos preços de monopólio [10]. Uma compreensão adequada desses pontos poderia contribuir a entender melhor o significado da propriedade pública e dos mecanismos de planejamento na China contemporânea. Enquanto a exposição do Caderno parece associar propriedade pública e planejamento a vestígios socialistas, é crucial tentar explicar a relação entre esses mecanismos e o papel que a potência asiática inevitavelmente desempenha na acumulação capitalista global.

A pergunta a ser formulada é se existe uma relação (e qual é a sua natureza) entre a expansão econômica da China, os mecanismos de planejamento e as formas de propriedade pública. A resposta é óbvia. A potência asiática hoje ultrapassa os Estados Unidos no ranking das 500 maiores empresas do mundo da revista Fortune. Das empresas chinesas, 4 estão entre as 10 maiores do ranking, sendo todas de propriedade estatal (China State Construction Engineering, China National Petroleum, State Grid e Sinopec Group) [11]. Boa parte delas possui uma forte presença nos países periféricos, beneficiando-se diretamente de processos de privatização e perda da soberania nacional sobre recursos naturais [12]. Em outras palavras, a propriedade pública chinesa, e o planejamento econômico a ela vinculado, estão organicamente ligados à reprodução ampliada de seus capitais mais concentrados e ao aprofundamento das assimetrias internacionais. Isso não é uma opção, mas um imperativo da lógica que a concorrência intercapitalista impõe.

No classico de Lenin sobre o imperialismo a questão da descomposição do capitalismo e da supressão da concorrencia é exagerada. O dirigente bolchevique afirma:

"[...] a base econômica mais profunda do imperialismo é o monopólio. Este é o monopólio capitalista, ou seja, um monopólio surgido do capitalismo, que existe nas condições gerais deste, a produção mercantil e a competição, e está em permanente e irresolúvel contradição com elas. No entanto, como todo monopólio, o monopólio capitalista inevitavelmente gera uma tendência ao estagnação e decadência. Na medida em que se fixam, mesmo que momentaneamente, preços monopolistas, desaparecem em certa medida os fatores que estimulam o avanço técnico e, consequentemente, qualquer outro progresso, surgindo assim, além disso, a possibilidade econômica de retardar deliberadamente o progresso técnico."

Não pretendo desenvolver uma crítica profunda aos argumentos apresentados por Lenin (recomendamos bibliografia sobre essa questão na nota 10). Limito-me a indicar que associar a existência dos monopólios com uma tendência a estagnação e decadência, deliberadamente promovida, pode abrir espaço para interpretações que vinculam o fenômeno imperialista à vontade abstrata das frações capitalistas mais concentradas, deixando de lado o fato de que, as situações de monopólio —sempre momentâneas— também são determinadas em um movimento automático e impessoal que supera os interesses e a capacidade de projeção dos capitalistas individuais e seus Estados. Uma forma concreta desse processo é a irrupção de capitais provenientes de regiões consideradas periféricas nos ramos da produção com maior composição orgânica de capital (antigamente monopolizados por potências capitalistas ocidentais). Justamente devido ao desenvolvimento econômico observado nessas regiões, a trajetória do capitalismo durante o século XX e XXI não pode, de forma alguma, ser caracterizada como uma situação de estagnação, decadente o não determinada pela competição bestializante do capital.

A referida limitação, não é, apenas, um erro teórico. Deve ser entendida como prova do caráter cojuntural da caraterização feita por Lenin. Superar isso, destacando as determinações da concorrencia capitalista hoje, é fundamental para entender que o desenvolvimeno econômico da China, mesmo em seus aspectos progressivos, é decorrencia de um movimento que está por fora do controle humano. Trata-se, pois, de uma derivação necessária da sua posição na concorrência capitalista (ou seja, do lugar que ocupam sus capitais nos ramos da produção com maior composição orgânica de capital). 

O capitalismo-imperialismo, longe de ser uma etapa final ou de descomposição, realizou-se historicamente desenvolvendo as forças produtivas. Afirmar isso não é, de forma alguma, uma apologia. Pois, como não poderia ser de outra maneira, tal processo se dá aprofundando o esmagamento da classe trabalhadora. A plena incorporação da China no mercado mundial permitiu, justamente, compensar as tendências regressivas decorrentes da crise capitalista dos anos setenta [13]. O aspecto mais importante desse processo foi o rebaixamento do valor da força de trabalho em algumas das principais regiões industrializadas do mundo. A incorporação da população chinesa como trabalho vivo disponível para o capital permitiu aumentar a taxa de mais-valia mundial, compensando, em parte, a queda da taxa de lucro. Esse processo assume a forma concreta de um grandioso desenvolvimento industrial e até mesmo a consolidação de conquistas civilizatórias, ancoradas, contraditoriamente, no aprofundamento da barbárie do capital no mundo e na própria China. Que outro nome, se não barbárie, podem ter os suicídios dos trabalhadores da Foxconn, por exemplo? [14]. 

Só os imbecis liberais poderiam acreditar que um processo de tais dimensões —inédito na história— não demanda necessariamente uma gigantesca planificação e formas combinadas de propriedade (publica e privada). Portanto, o peso destas não pode ser um critério para a correta compreensão da especificidade chinesa, nem um motivo que impeça de chamá-la de imperialista. 

Nenhum processo de acumulação de capital, nem mesmo quando ele esteja sob comando consciente de uma direção operária (circunstancia que também identificamos como transição socialista), pode ficar por “fora” ou “descontectada” das leis tendencias do sistema enquanto totalidade mundializada. Isto, que foi mais que evidente nas contradições presentes nos países do chamado bloco socialista durante o século XX, deveria ser um pressuposto de qualquer análise sobre a China hoje. 

Portanto, a questão não é negar as contradições que todo processo de transição socialista isolado nacionalmente terá que enfrentar. Essa é uma falsa dicotomia utilizada pelos reformistas para apresentar como muito novas velhas posturas reformistas e etapistas. O critério que deve prevalecer para avaliar a continuidade, "recuo" ou reversão do processo revolucionário passa — entre outras coisas — por identificar se a direção política que detém o poder no país assume ou não a tarefa de realizar o projeto comunista, expressando, portanto, o papel de direção efetivamente revolucionária na sua prática concreta. A ausência dessa orientação implicará, ao contrário, que no exercício da dominação política ela personifique e se submeta, de forma crescente, a lógica destrutiva e alienante do capital.  

Por isso, duvidar sobre o significado da existência de propriedade pública ou de resquícios de "planificação" só pode resultar de não ter uma avaliação do papel do PCCh no desenvolvimento de tendências imperialistas, mesmo que elas sejam corretamente identificadas (como ocorre nas teses do Caderno). 

Acredito que mesmo se tratando de uma formação social com um processo político extremamente complexo, existem muitas evidências de que a direção do PCCh abandonou o projeto socialista e passou a personificar a lógica alienante do capital. A mudança qualitativa se verifica prestando atenção a: i) o processo de luta de classes anterior ao ascenso de Deng Xiao Ping marcado pela repressão aos antigos dirigentes e aos setores mais avançados da classe operária; ii) a supressão de uma planificação econômica orientada pela afirmação do valor de uso sobre o valor de troca; e iii)  a consolidação de interesses particulares dos burocratas-capitalistas que compõem o PCCh.  

A seguir, menciono alguns exemplos desses processos. É inviável oferecer uma análise completa de cada um neste texto. Minha intenção, mais do que fornecer certezas, é incentivar a urgente pesquisa individual que deve ser pressuposto de toda posição assumida coletivamente enquanto destacamento comunista.

A Revolução Cultural chinesa constituiu um intenso processo de mobilização de massas caracterizado pelo desborde das instâncias partidárias contra as tendências direitistas na sociedade e no PCCh. A maior parte das interpretações desse processo limitam-se a denunciar um certo esquerdismo do grupo maoista e seus excessos. Embora essas críticas possam conter elementos de verdade, pouco se questionam sobre as causas profundas da mobilização e o projeto político subjacente a ela. No conhecido "Documento dos 16 Pontos", assinado pelo Comitê Central do PCCh em agosto de 1966, pode-se ler:

“O que o Comitê Central do Partido exige dos comitês do partido em todos os níveis é que persistam em exercer uma liderança correta; coloquem a "ousadia" em primeiro lugar; mobilizem ousadamente as massas; mudem a situação de fraqueza e incompetência onde exista; incentivem aqueles camaradas que cometeram erros, mas estão dispostos a corrigi-los, a abandonarem seus remorsos mentais e se juntarem à luta; e destituam de seus cargos aquelas pessoas que ocupam posições de liderança e seguem o caminho capitalista, reconquistando a liderança para colocá-la novamente nas mãos dos revolucionários proletários [15]. 

O documento expressa a iniciativa de um setor da direção comunista apoiando-se nas massas para combater as tendências direitistas infiltradas no Partido. Esses elementos estão claramente identificados; no ponto cinco, pode-se ler: “O principal alvo do movimento atual são aqueles elementos dentro do Partido que ocupam cargos de liderança e seguem o caminho capitalista [...]”. Entre os quadros que eram reconhecidos como seguidores do caminho capitalista estão Deng Xiao Ping e Liu Shaochi. Ou seja, longe da imagem de continuidade entre o projeto de sociedade que impulsionou a direção maoísta e aquele que impera hoje na China, é evidente que estes estavam enfrentados de maneira irreconciliável. 

Francisco Martins Rodrigues é muito crítico em sua avaliação da direção maoísta nesse processo. Sem entrar na discussão dessa posição, ele ressalta algo que parece bastante verossímil. A direção maoísta, que tinha claramente um projeto antagônico à via capitalista, teria sido vacilante frente à iniciativa das massas. Isso facilitou a repressão dos setores mais avançados da classe operária e permitiu a reabilitação dos elementos direitistas, abrindo caminho para a restauração capitalista e a eliminação da esquerda no partido: 

“[...] à medida que os maoístas tentaram tardiamente opor-se ao avanço da contra-revolução a que tinham aberto as portas, foram por sua vez eliminados um a um. A liquidação da esquerda pelo centro arrastou, numa nova fase, a liquidação do centro pela direita. Em 1970, Chen Po-ta, o teórico mais eminente do maoísmo, foi saneado sem explicações. A causa era a cobertura que dera aos “ultra-esquerdistas” nas jornadas de 67, e que a direita não lhe perdoava. Foi mais tarde julgado. Em 1971, foi a vez de Lin Piao tentar opor-se febrilmente à lenta marginalização do exército dos postos de comando [...] foi morto em circunstâncias obscuras [...] com a morte de Mao, o “bando dos quatro” foi apeado do poder e preso, após uma enganosa “segunda revolução”, em que tentaram, já sem qualquer probabilidade, fazer reviver a mobilização de massas contra a ascensão imparável de Teng (Deng Xiao Ping), o chefe reconhecido da nova burguesia chinesa (16).  

O triunfo da linha impulsionada por Deng tinha um projeto econômico antagônico ao que predominou entre 1949 e 1978. A partir de uma avaliação crítica da experiência de industrialização soviética, a fração revolucionária na direção do PCCh promoveu uma série de transformações na produção orientadas pela superação das relações capitalistas no campo e na cidade, tendo como uma das instituições principais as comunas populares. Uma síntese da relevância das comunas pode ser lida a seguir: 

“Ao combinar a produção coletiva com as faculdades de governo, as comunas populares constituíam um instrumento de poder político das massas camponesas: eram o nível superior da cooperação agrícola e industrial, e ao mesmo tempo o nível básico do estado popular. Os camponeses exerciam o poder efetivo sobre seus meios de produção: discutiam, supervisionavam e decidiam sobre todos os recursos de cada distrito e tinham o poder para utilizá-los. O poder estatal exercido pelos comuneros permitiu, ao mesmo tempo, a combinação de esforços entre várias comunas vizinhas para grandes empreendimentos, desde eletrificação até fábricas de automóveis. As comunas não faziam parte da propriedade socialista estatal, mas eram uma parte substancial do poder efetivo das massas trabalhadoras sobre a produção e o Estado, essência do socialismo e condição necessária na marcha em direção à "propriedade de todo o povo" e à eliminação das diferenças sociais herdadas da velha sociedade” [17]. 

Ao contrário de promover a lógica comunal, Liu Shaochi e Deng apostavam pela livre comercialização dos cultivos, pelo enriquecimento individual dos camponeses e pela liberalização da propriedade da terra. Em termos de desenvolvimento industrial, a postura pró-mercado deles também era conhecida e claramente identificada com uma via capitalista de desenvolvimento. Existiam assim dois projetos antagônicos. Um baseado na crescente participação das massas, na superação das divisões entre campo e cidade, entre trabalho intelectual e manual, e na paulatina eliminação das relações de assalariamento; e por outro lado, um que concedia centralidade aos estímulos materiais e ao aumento da produtividade a qualquer custo. Mais detalhes sobre o desenvolvimento econômico antes da restauração capitalista na China podem ser encontrados na texto citado na nota 17. 

À luz de todos esses processos, deveria ficar mais ou menos claro que a lógica imperante na sociedade chinesa hoje não é outra senão aquela que corresponde à acumulação de capital. A mesma que assume, como não poderia deixar de ser, especificidades nacionais. A drástica mudança na estratégia de desenvolvimento implicou a supressão momentânea da consciência comunista. Ou seja, a eliminação (conjuntural até sua recomposição) de uma direção política cujo fim estratégico era a superação das relações capitalistas. Constatar essa reversão ajuda a entender por que a expansão econômica da China contemporânea não é qualitativamente diferente da que caracteriza outras potências capitalistas. Não há aqui nem um traço de denúncia moral. Trata-se apenas de reconhecer qual é a lógica que se impôs no final da década de 1970 e quais são seus resultados no funcionamento do capitalismo-imperialismo no século XXI.

Além de tudo o que foi exposto, considero importante enfatizar a relevância de uma clara definição da China como imperialista nas condições concretas da América Latina. Os dados disponíveis expressam tendências muito claras na economia. Na política, isso se reflete na vinculação orgânica com os partidos políticos burgueses nacionais, tanto de direita quanto de esquerda, e até mesmo em uma crescente influência em movimentos sociais e "partidos comunistas". Em tais circunstâncias, uma caracterização que não tenha ambiguidades é o mínimo que os revolucionários consequentes podem oferecer à classe trabalhadora. Utilizar uma categoria que expresse adequadamente seu conteúdo é, sem lugar a dúvidas, o primeiro passo para a implementação de uma política verdadeiramente comunista: isto é, no sentido da superação de toda forma de capitalismo-imperialismo.


Referências 

[1] LENIN, V.I. ¿Qué hacer? Problemas candentes de nuestro movimiento. Editorial Progreso, Moscú, 1981. 

[2] O que entendemos como "ponto de vista do proletariado" —e seu contraste com a ciência burguesa— tem concordancia com o exposto por Lukács no artigo "A reificação e a consciência de classe do proletariado", presente em o clássico "História e Consciência de Classe". Cf: LUKÁCS, G. Historia y conciencia de clase. Editorial Grijalbo, México D.F., 1969. 

[3] O vídeo esta disponível no siguinte enlace: <https://www.youtube.com/watch?v=MxZGAji6Zs&list=PLqPoCJrKrte0qj9lJyutTURw_4WR7W1HX&index=9>. 

[4] LENIN, VI. Imperialismo: fase superior del capitalismo. Fundación Federico Engels, Madrid. 

[5] LUKÁCS, G. (2004 [1924]). Lenin. Ocean Sur.

[6] Ibidem. 

[7] Concordamos com Beinstein (2021) quando afirma em referência aos autores classicos das teorias do imperialismo (Lenin, Luxemburg, Kaustky, etc.) que: “[...] a escola marxista tentou conceptualizar um processo real bem localizado no tempo (final do século XIX - início do século XX)." Cf: BEINSTEIN, J. Capitalismo senil, a grande crise da eocnomia global. RECORD, Rio de Janeiro, 2021.  

[8] Ao se constituir como sujeito, o capital reproduz suas próprias determinações como condições sociais gerais da produção. Esse processo, cuja forma imediatamente observável é o capitalista individual procurando garantir o crescimento do seu capital, o ultrapassa, na medida em que ele existe de forma subordinada ao movimento geral de valorização do valor. Esse movimento é o unico fim do modo de produção capitalista. Uma imagem que retrata a submissão do burguês a essa lógica é a do feiticeiro, incapaz de controlar os poderes que ele mesmo convocou, conforme aparece no Manifesto Comunista. Para uma explicação do conceito de capital como sujeito, recomendamos os textos de Mario L. Roblez-Baez. Cf: Marx: sobre o conceito de capital, 2011. Disponível em: <https://marxismocritico.com/2011/10/05/marx-sobre-el-concepto-de-capital/>. 

[9] A distinção entre capitais individuais e o capital total é uma dimensão fundamental na exposição de Marx em O Capital. Ela permite identificar —entre outras coisas— as contradições que se derivam da concorrência entre os distintos capitalistas, ao mesmo tempo que presenta a unidade de interesses que, como fragmentos de um mesmo sujeito, eles tem na exploração da classe trabalhadora. “Do que foi dito resulta que cada capitalista, assim como o conjunto de todos os capitalistas de cada esfera de produção, se interessa pela exploração da classe trabalhadore inteira pelo capital e pelo grau dessa exploração não só por uma simpatia geral de classe, mas sim diretamente, por motivos econômicos, uma vez que [...] a taxa média de lucro depende do grau de exploração do trabalho total pelo capital total”. Cf: MARX, K. O capital. Livro III. Boitempo, São Paulo, 2017. 

[10] Aqui seguimos os apontamentos feitos pela professora Marina Machado Gouvea: “[…] ao invés de considerar as categorias “taxa média de lucro” e preço de produção” como referentes às determinações que incorrem no valor socialmente apropriável (e, portanto, em um nível analítico capaz de abstrair algumas das determinações, tanto contingentes quanto cojunturalmente necessárias, dos preços de mercado), Lenin as identifica ao valor efetivamente apropriado por meio da configuração dos preços de mercado em todas as suas determinações. O conjunto desses fatores leva a que Lenin identifique a origem do superlucro apenas como diferencial monopolicamente obtido por meio da manutenção (que ele denomina “artificial) de “preços de monopólio” por parte das associações monopolistas do capital financeiro, entendidos como “preços de mercado acima dos valores”, em analogia à renda absoluta da terra [...] (p. 74)”. Cf: GOUVEA, M. Imperialismo e método: apontamentos críticos visando a problemas de tática e tratégia. 2016. Tesis (Doutorado em Economia Política Internacional) – Instituto de Economia, Universidad Federal de Rio de Janiero, Rio de Janeiro, 2016.  

[11] Consultar en: https://fortune.com/ranking/global500/

[12] Ver por exemplo: https://larepublica.pe/economia/2023/05/03/refineria-de-talara-lote-x-actual-operador-cnpc-no-goza-de-licencia-social-corporacion-nacional-de-petroleo-de-china-petroperu-brea-y-parinas-111285

[13] Sobre o papel da incorporação da força de trabalho chinesa na acumulação de capital, recomendamos a siguinte tese de doutrado: MAJEROWICZ, E.G. The Globalization of China’s Industrial Reserve Army: its formation and impacts on wages in advanced countries. Tesis (Doutorado em Economia Política Internacional presentada en la Universidad Federal de Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. 

[14] Ver por exemplo: https://www.bbc.com/mundo/internacional/2010/05/100513_foxconn_sexto_suicidio_js

[15] Cf: https://www.marxists.org/espanol/tematica/china/documentos/com.htm 

[16] Cf: MARTINS, F. R. A revolução cultural e o fim do maoismo, 1988. <https://www.marxists.org/portugues/rodrigues/1988/02/fim.htm>. 

[17] LAUFER, R. Así lo hicieron los chinos: revolución, socialismo y construcción económica en China (1949-1978), 2018. <https://www.researchgate.net/publication/336140546_2018_Asi_lo_hicieron_los_chinos_Revolucion_socialismo_y_construccion_economica_en_China_1949-1978>.