'Um elefante branco no interior gaúcho: do pânico à autofagia' (Laura Helena Paz)

A cultura política do Partido Comunista talvez esteja, simplesmente, na métrica que somos capazes de estabelecer, no microcosmo das interações e mediações necessárias ao nosso trabalho quotidiano, entre o método político-organizativo e o programa revolucionário que o informa.

'Um elefante branco no interior gaúcho: do pânico à autofagia' (Laura Helena Paz)

Por Laura Helena Paz para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário

*Por abordar casos sensíveis envolvendo ex-militantes, essa Tribuna utilizará pseudônimos para se referir a eles.

**Embora talvez não venha em boa hora, dada a tragédia que se abate no Rio Grande do Sul nesse momento, esta Tribuna é o único esforço público de sistematização de uma crise política que causou importante impacto no PCB RS entre 2022 e 2023. Por essa razão, decidi manter sua publicação apesar de não se tratar mais de um tema candente para nosso estado.

Dizia, na etapa regional gaúcha – ao debater a polêmica em torno da suposta derrota expressa nos acordos do XVI Congresso Nacional do PCB –, que, sem delimitar com clareza um objetivo político, seria impossível traçar determinada tática e, com isso, julgá-la vitoriosa ou fracassada. Queria dizer que um processo histórico não era composto exclusivamente por uma soma de pequenos momentos e decisões tomadas, mas pelo encadeamento de variáveis tanto controláveis quanto arbitrárias; que os erros e acertos momentâneos precisavam ser medidos não só pelo resultado geral, mas pelas condições de luta que estavam dadas e pelas escolhas passíveis de serem tomadas.

Algumas décadas depois de janeiro de 2022, quando Santa Maria deu início a um cataclisma político de grandes proporções no interior do estado, estou finalmente capacitada a jogar um olhar menos moralista para estes problemas das decisões na luta interna. Meu ódio já não me consome, meu mau humor também dá lugar às bobagens que, eu espero, tragam algum alívio cômico a esta Tribuna, que deseja debater algumas de nossas principais polêmicas congressuais à luz de um pequeno estudo de caso.

O pânico e o elefante

Acho que foi pouco mais que uns 25, mas admito que sempre que falo aumento dramaticamente esse número. De todo modo, sobraram uns 10 do racha que o complexo partidário de Santa Maria viveu ainda em março de 2023, pouco antes da cisão nacional. O primeiro município do estado depois de Porto Alegre a contar com célula partidária, núcleos da UJC, CFCAM e CNMO, e Comitê de Base da UC. Também o primeiro fora da capital a perspectivar e planejar a multiplicação de sua juventude e Partido em dois ou três núcleos e células. (Achávamos que) tínhamos condições de realizar uma disputa pura do DCE-UFSM, segunda maior universidade pública do Rio Grande do Sul, e já nos inseríamos em alguns sindicatos e frentes culturais.

Desafiávamos o ego metropolitano – ou pelo menos implicávamos bastante – querendo nos tornar um polo interiorizado da UJC, formulando à esquerda nos temas que tocavam às opressões e ao tamanho personalismo e pirraça que achávamos caracterizar os quadros estaduais – com destaque à Porto Alegre e à exceção dos rio-grandinos, sempre fleumáticos frente às nossas turbulências infantis. Mas não pensem que Santa Maria era a única a reunir toda sorte de paranoia frente aos grandes dirigentes porto-alegrenses. Também outros estados e certo contingente de militantes – inclusive metropolitanos – passou, em algum momento, a repudiar a lógica de núcleo duro que um núcleo duro invariavelmente desenvolve para si.

De qualquer forma, nosso elefante branco consumia mais energia. Eu dizia à Labareda*, na primeira página de uma resposta a um suposto desligamento enviado em outubro de 2022: 

[...] gostaria de lembrar a todas e todos que o ano de 2022 foi marcado por duas denúncias de abuso sexual contra militantes do núcleo Santa Maria da UJC. Além disso, houveram vazamentos de informações sigilosas do complexo partidário para dirigentes de dois outros partidos adversários, violência psicológica contra inúmeras militantes e ameaças de toda ordem, inclusive de acionamento da justiça burguesa contra nossa organização e nossa militância. Há, ainda, um processo disciplinar em andamento decorrente da segunda denúncia, podendo resultar em outra expulsão – ainda que por diferentes razões.

 A razão desse segundo caso era um estupro de vulnerável, mas o processo disciplinar realizado pelo Comitê Regional contra o agressor não resultou em expulsão (mesmo deferindo a acusação), sim em um processo de reeducação a ser conduzido pelo mesmo Comitê, mantendo-o afastado das atividades partidárias temporariamente – até que admitisse um crime hediondo, sem perspectiva de leva-lo à justiça burguesa – e assim preservando a vítima de compartilhar espaços com seu abusador. Um Partido Comunista não pode descartar quadros porque cometem violências para as quais estão programados pela estrutura patriarcal e capitalista, deixando-os ao léu para cometer essas injustiças contra mulheres externas à organização, sem nosso ativo convencimento – disse-nos o Comitê Regional. Ele se desligou, é claro, porque nunca reconheceu sua violência. Sendo um homem negro e tendo sofrido uma grave acusação por parte de uma mulher branca, também tinha tudo que precisava para contribuir com a ampla campanha de difamação contra o PCB-SM e seu complexo partidário – a qual inúmeros de seus militantes orgânicos já se somavam fervorosamente.

Já o primeiro caso, descoberto em fins de janeiro de 2022, fora um tanto mais complexo, uma vez que a denúncia de abuso sexual envolvia uma mulher cis da UC (acusada) e uma pessoa não-binária da UJC (acusadora) que, na investigação em Sindicância, transformou-se em contra denúncia. O Partido não podia agir como a justiça burguesa, mas investigou o caso como se ela fosse, com a melhor intenção de tornar claro o que fazer politicamente diante do problema. Ninguém ficou satisfeito, houve uma tentativa de suicídio, reuniões concomitantes na ala psiquiátrica do principal hospital da cidade, algumas investidas controladas de agressão e mais alguns detalhes que foram objeto de uma extensa reunião de gestão de crise nas 14 horas posteriores ao seu estopim. Essas horas duraram como os 10 meses seguintes. Acusada e acusadora se desligaram por considerarem injusto e violento todo o processo, e seus companheiros tampouco persistiram na construção de nossa organização depois da convulsão causada pelo caso – um deles, inclusive, foi expulso.

Mas entre a fundação do Grupo Extraordinário de Dirigentes e da Comissão de Sindicância para gerir o problema e o racha de ¾ de nossa militância, muita coisa aconteceu. Em 2021, quando a UFRGS organizou um verdadeiro motim contra a Coordenação Estadual mandonista, Santa Maria havia contribuído ativamente para a abertura de um novo ciclo de radicalização da democracia interna na UJC gaúcha. Mas nossos núcleos não colaboraram muito entre si para tornar esse momento duradouro e – não poderia faltar – nossos dirigentes passaram a nutrir um sem número de desafetos pessoais mais ou menos mesquinhos.

Quando a Sindicância se abriu, logo iniciamos os trabalhos referentes ao IX Congresso da UJC, no qual Santa Maria se opôs rigorosamente às posições representadas por Porto Alegre. Em especial, incomodava o que julgávamos ser um bloco impermeável de camaradas indispostos ao convencimento sobre temas que, no interior, funcionavam de modo absolutamente diferente.

Mas este é outro assunto. De volta à Boca do Monte, quanto ao primeiro caso de abuso, em si, estou bastante convencida de que é verdadeiro. Embora Andorinha*, a acusadora, tenha provado depois não ser lá tão íntegra – em que pese minha fé cega de que fora, em grande medida, a própria Armadeira*, sua então companheira, a responsável por bagunçar seu raciocínio –, Eclipse*, a acusada, já havia reunido uma boa coletânea de acusações menos graves de assédio – o que foi totalmente ignorado pela Comissão de Sindicância, ainda que tivessem conhecimento destes casos. Não acho que seja útil apresentar, aqui, mais um dos longos relatos que já escrevi sobre todo este processo, mas de alguma forma é preciso deixar explícito o tamanho da crise.

Foram uns 9 meses em Sindicância, entre oitivas (que chegaram a envolver até militantes de fora de Santa Maria) e infindáveis reuniões de completo pranto e autoflagelo coletivo. Este pânico havia se instaurado e não parecia que algum dia seria possível superá-lo; a desconfiança era generalizada, especialmente entre UJC e PCB. Labareda estava intransigentemente convencida de que seu recrutamento ao Partido estava sendo boicotado, algo que nunca se verificou concretamente. A juventude em geral era absolutamente convicta de que, além do que fazíamos via movimento estudantil, nenhum trabalho prático existia realmente, menos ainda por parte da célula – o que é majoritariamente verdadeiro, embora a razão não fosse mera embriaguez mandonista do Partido, mas sua própria estrutura e dinâmica interna que nos condenava à paralisia permanente. O problema central era a postura da Comissão de Sindicância instalada pela célula, que dirigia o processo com pretensa neutralidade judicial.

O camarada N. Sanchez aborda brevemente a questão em sua Tribuna [1] de outubro de 2023, ainda que esteja mentindo ou, no mínimo, mal contando nosso caso. A saber, de que

[...] Em SM os abusadores continuavam participando dos espaços e coagindo as vítimas. Acabava que os “Processos Disciplinares” protegiam mais os abusadores do que a vítima.
Além disso, o Comitê Regional do PCB da época foi extremamente mandonista e vertical. Todos os PD’s eram conduzidos pelo partido, quando a violência tinha acontecido na Juventude. A CRUJC-RS foi expressamente proibida de intervir de qualquer maneira, “os assuntos de SM respondem ao Partido e a célula de SM” – era assim que o CRPCB nos censurava.

 Realmente, o Partido permitiu que houvessem espaços em que as vítimas tivessem contato com seus abusadores – como quando convocou uma cultural com autorização para que acusada, acusadora e seus companheiros participassem, pouco mais de um mês após precisarmos fechar um sindicato para evitar uma briga generalizada entre essas mesmas pessoas. Embora a célula tenha feito autocrítica sobre essa decisão, em nada altera suas consequências. Isso porque não foi capaz de tomar lado algum diante da denúncia e da contra denúncia. Por outro lado, houve esforço ativo para minimizar as constantes coações de Gastura* – companheiro de Eclipse, cúmplice e um dos principais responsáveis pelas violências não-sexuais operadas naqueles meses – contra camaradas (sobretudo mulheres) da UJC. Quando tudo teve início em 29 de janeiro de 2022, Gastura foi afastado preventivamente, Eclipse se desligou quase imediatamente, Andorinha e Armadeira seguiram militando conosco ininterruptamente, inclusive compondo o Secretariado da UJC-SM. No segundo processo, o militante também foi afastado no exato instante em que o Partido tomou conhecimento do caso.

Embora seja verdade que o Comitê Regional tenha agido de forma mandonista, manter a Sindicância a cargo do Partido foi apenas uma consequência lógica de uma situação que envolvia militantes de mais da metade dos organismos da cidade. Ainda que a condução da Sindicância tenha sido responsabilidade da célula Santa Maria – um erro colossal que está na conta do velho CRPCB-RS –, a CEUJC-RS teve acesso desde o início às transcrições e gravações das oitivas, bem como de todos os materiais produzidos pela Comissão de Sindicância. Há inúmeros e-mails e mensagens minhas implorando por uma intervenção direta da Coordenação que só foi feita – com muitas limitações – após o racha local de março de 2023.

Na prática, a Sindicância foi feita pela cabeça de quem a dirigia, já que havia pouco auxílio das instâncias superiores e nenhuma orientação estatutária para a sua condução – pois não era coisa que existisse formalmente no velho PCB, o que deu a tantos caudilhos um instrumento perfeito para a perseguição política. Mas o Núcleo SM estava preocupado em formular sobre a questão, e assim fizemos, por iniciativa de Tartufo*, um estudante de Direito e companheiro de Labareda, a seguinte proposta estatutária ao IX Congresso da UJC:

Das violências contra a dignidade sexual
Art. 30º+1 – Em caso de denúncia de violência sexual em que a pessoa acusada como ator ou partícipe seja militante da União da Juventude Comunista, o mesmo será afastado imediatamente até o findar do procedimento interno.
Parágrafo único: Considera-se passível de denúncia qualquer violência sexual ocorrida prévia ou posteriormente ao ingresso do militante na UJC.
Art. 30º+2 – Nos casos de denúncia de violência sexual em que a pessoa acusada como ator ou partícipe seja militante da UJC, o procedimento interno deverá apurar a plausibilidade da denúncia pelas circunstâncias que as envolvem na colheita de provas, considerando-se sempre que o tipo penal raramente se consolida com testemunhas ou provas do ato em si.
Art. 30º+3 – Nos casos de denúncia de violência sexual em que a pessoa acusada como ator ou partícipe seja militante da UJC, o ônus da prova se inverte, devendo o acusado se provar inocente, e prevalecendo o relato da possível vítima.
Art. 30º+4 – A decisão final da denúncia acima elucidada definirá se, diante das circunstâncias levantadas, o núcleo de base tem condições políticas de manter a sua atuação junto com o militante, devendo elucidar também o fator de risco que a pessoa acusada oferece à organização e a todes seus militantes. Em se tratando de estupro, tal decisão é irrecorrível em qualquer instância da UJC.

 Quem esteve na Plenária Final do Congresso certamente lembra dos nossos soluços quando essa tese não foi aprovada. Seu fundamento, na história da crise de Santa Maria, foi essa pretensa imparcialidade do Partido frente a um assunto tão delicado; a covardia de um dirigente do Comitê Regional que, na oitiva em que a vítima apresentou seu relato, desacreditou da acusação e insinuou que Andorinha mentia; e a tentativa de reintegrar Gastura ao núcleo ainda durante o correr do processo. Diferentemente do que compreendeu a etapa nacional do IX Congresso da UJC, essa proposta não abria margem alguma para a perseguição política, que foi lamentavelmente instrumentalizada em detrimento de um sem número de vítimas reais de abuso que habitaram e habitam nossas trincheiras [2].

Não era possível afastar o [Gastura] sem um processo disciplinar, muito embora ele apresentasse risco à organização e à sua militância – a isto responde o Artigo 30º+1. Não era possível chegar à compreensão verdadeira sobre a existência ou não de um caso de violência sexual, pois este crime é tipicamente executado sem testemunhas – a isto responde o Artigo 30º+2. Não era possível fazer mais do que confrontar relatos antagônicos de acusadora e acusada, pois não havia provas que sustentassem determinada posição – a isto responde o Artigo 30º+2 e 30º+3. Não havia nada que assegurasse a expulsão de quem oferece verdadeiro risco à organização, além da própria consciência da direção, tanto quanto não havia nenhuma garantia de que um estuprador jamais retornaria às nossas fileiras – a isto responde o Artigo 30º+4. Esta proposta busca dar uma resposta política ao mais desgastante processo da história recente do complexo partidário deste município que, entretanto, foi quase absolutamente inconclusivo! [3]

Na tentativa de não me manter atada às decisões asquerosas que a Comissão de Sindicância e a célula do PCB de Santa Maria tomavam, eu, Labareda, Tartufo e Kauan Machado nos reuníamos formal e informalmente na Comissão Política da UJC-SM para tentar reduzir danos diante do núcleo, manter o trabalho positivo no movimento estudantil e, é claro, rogar todas as pragas que conhecíamos sobre as dirigentes que considerávamos as principais responsáveis por todas essas decisões.

Ao que tudo indica, a isso se dá o nome de fração.

Mas isso não era claro desde o princípio. Para todos nós, estava suficientemente nítido que a afamada Circular CRPCB-RS 036/2021, embora cristalizasse um processo de perseguição contra alguns camaradas da capital, era também uma tentativa tosca de aniquilar práticas fracionistas que efetivamente existiam e, por certo, precisavam ser combatidas. Nisso víamos o amiguismo, o grupismo, as querelas pessoais e as críticas irresponsáveis nos bares – porque “o ambiente partidário não era seguro” para apresentar algumas questões abertamente – o que, como se sabe, em muitos casos, é também uma bengala largamente utilizada; uma certa síndrome de veterano, o personalismo e o dirigismo, a dependência da base frente a poucos heróis que, por seu turno, não pareciam interessados em realizar uma transição geracional; o conspiracionismo, a movimentação dissimulada, escondendo suas intenções nos espaços coletivos; o desgaste de quadros como reação defensiva à burocracia, ao mandonismo e à própria perseguição.

Fundamentalmente, foi a partir destes elementos que caracterizamos, uníssonos, o fracionismo porto-alegrense: mais a partir da leitura da existência de uma ala política explícita do que qualquer outra coisa, vendo nela práticas com as quais, teoricamente, não coadunávamos. Ao fim e ao cabo, talvez o mais constrangedor em reconhecer que Santa Maria “reproduzia seus erros, no coração do interior, à perfeita semelhança da capital” [4], é saber que essa acusação remete, ainda, àquele motim de fins de 2021, quando nos taxavam de reboquismo.

Interior e metrópole

Além da proposta estatutária sobre as violências contra a dignidade sexual, a questão do Movimento por uma Universidade Popular talvez tenha sido a principal polêmica congressual a ilustrar a polarização interior x metrópole no Rio Grande do Sul. A UFRGS já havia provado bem-sucedida a tática de agitação dos símbolos da UJC nas disputas do movimento estudantil, em detrimento da utilização desta anomalia organizativa que tínhamos no MUP. Não apenas na UFSM, mas também em algumas outras regiões do interior, assim como nas universidades privadas, entretanto, a preferência pela construção via MUP facilitava o diálogo. Mesmo que a UFSM tenha longa tradição de movimento estudantil, com relevância nacional, o período em que crescemos por aqui não foi de grande efervescência das juventudes partidárias, o que esmaecia ainda um amplo engajamento. De todo modo, a existência de um Código Disciplinar Discente reacionário – por definição – em nossa Universidade foi apenas uma falácia utilizada para justificar a manutenção da existência do MUP, o que já era um erro nítido àquela altura. Enfrentar certa dificuldade na agitação dentro do movimento estudantil, todavia, será uma importante consequência do fim da existência da própria UJC – tenha ela expressão interna ou apenas externa – se essa posição for vitoriosa no XVII Congresso Nacional, como foi em sua etapa regional no Rio Grande do Sul.

Outra virada cômica desta história também se refere a uma das polêmicas do IX Congresso da UJC: a existências de núcleos de jovens trabalhadores. Em Santa Maria, sintetizamos nossa posição da seguinte forma, em tese derrotada no estado:

29+1. Nossa principal tarefa no que se refere à organização dos núcleos de Jovens Trabalhadores é a garantia da correta transição para a Unidade Classista. Sem assegurarmos a especialização do trabalho, a tendência é que estes núcleos atuem de forma fragmentada, sem um planejamento político coerente. A responsabilidade fundamental das Secretarias de Jovens Trabalhadores e do assistente da Coordenação Estadual nos núcleos JT é contribuir para a especialização do trabalho e a transição à UC, visando o fim dos núcleos JT e buscando alavancar os núcleos de bairros e cultura no rumo do giro operário-popular.

Cômico porque minha defesa pelo fim da atuação da UJC nos locais de trabalho, fundamentada em duas Tribunas (110 e 111/2022), sustentava-se justamente sobre o entendimento de que

[...] (a) as juventudes trabalhadoras possuem um grau de dispersão maior que o conjunto da classe e, (b) como esta adjetivação da categoria “juventude” é mais determinante na vida real destes indivíduos que o próprio fato de serem jovens, tendencialmente, o maior potencial organizador se encontra no fato de se tratarem de trabalhadores, não de [serem] jovens.

 Este argumento – de que não “existe uma especificidade do jovem proletário que não seja também uma universalidade do proletariado como classe” [5] – foi, precisamente, o escolhido para justificar o fim da UJC – tanto em sua expressão externa quanto interna – na etapa regional do XVII Congresso no Rio Grande do Sul por camaradas que, há pouco, estavam amarrados por uma linha absolutamente juventudista. Mas, bom, não que eu tenha lá uma trajetória tão intocada que me autorize assim a criticar mudanças radicais de posicionamento. Eu desisti dessa proposta porque entendi que, no PCB-CC, o papel da Unidade Classista era de organizar o sindicalismo tradicional, velho, cuja cultura política era eminentemente diferente daquela operada pela juventude. O que é surpreendente é que, mesmo após o racha, há quem ache que a organização da juventude – em espaços de juventude – via local de trabalho ainda faça algum sentido, mas não conseguem argumentar com clareza o que determina essa exclusividade sem acabar deslizando em questões que remetem à organização por local de moradia ou via cultura em geral. Como se pode ver, aquela formulação já era uma mediação, dado que alavancar os núcleos de bairros e cultura, na prática, não deveria ser o principal objetivo do chamado “fim do JT”, mas o fortalecimento de células por local de trabalho – isso sim prioritário.

Se a questão é a educação, então que os interessados façam suas células por instituição ou rede de ensino e dividam-na em frações de movimento estudantil e sindical. Isso é uma decisão organizativa menor, pois também resolve essa preocupação supostamente alarmante de que “o Partido se debruce a dirigir diretamente diversos trabalhos particulares da juventude”, como nos disseram os camaradas Machado e Gabriel Tavares [6]. Embora errem na conclusão, Juliana Guerra e Theo Dalla estão certos em dizer que não será necessariamente determinante que tenhamos uma estrutura paralela de juventude para efetivar nossa transição geracional, nossa escola de quadros. A partir de uma proposta que buscava preservar a existência externa de nossa juventude, dissolvendo sua estrutura interna nas fileiras do Partido, apresentei ao XVII Congresso a seguinte formulação, rejeitada na etapa gaúcha, que suprimia em poucas palavras esse paralelismo organizativo:

Art. 2º+1 A ala jovem do PCB-RR é a União da Juventude Comunista (UJC), fundada em 1º de agosto de 1927 e cuja história compreende todas as organizações e tentativas de organizar a Juventude Comunista empreendidas pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde 1922. Cindindo com este na ocasião do Manifesto em Defesa da Reconstrução Revolucionária do Partido Comunista Brasileiro em 2023, a militância da UJC compõe a Fração Nacional de Juventude do PCB-RR, partilhando com seus demais membros iguais direitos e deveres na forma deste Estatuto.

 O que merece destaque é que o correto direcionamento de nossas forças nos locais de atuação, permitindo e impulsionando a especialização do trabalho, já era uma polêmica importante em 2022, ainda que no Rio Grande do Sul tenha ganhado seus contornos particulares. O fim da UJC não contribuirá nesse sentido justamente porque temos nela o mais bem-sucedido instrumento de agitação e propaganda que esse Partido já construiu – e isso, por si só, já é trabalho especializado. “Descomplicar” a vida organizativa não pode significar desestruturá-la tão radicalmente, pois as necessidades com as quais o trabalho político comunista precisa dialogar não são apenas as do estômago, mas também as da fantasia. A identificação entre os sujeitos que compõem este aporrinhante grupelho que compreendemos dentro da categoria social de juventude – ou, como argumentei nas Tribunas de Debate supracitadas, juventudes – não é tão facilmente transposta para os símbolos partidários, e isso está consideravelmente distante de expressar uma posição reacionária de negação do Partido enquanto instrumento necessário. Não lamentem que sejam os jovens a reconstruir o Partido, se é consenso que as juventudes brasileiras são, hegemonicamente, trabalhadoras. A juventude universitária não é essencialmente pequeno-burguesa [7], é policlassista – e nós sequer apostamos suficientemente na juventude secundarista até agora que, em que pese não se defina enquanto setor estratégico, oferece potencial de trabalho inquestionável.

Haverá etapas no processo de convencimento político, de engajamento individual e coletivo, de tomada de consciência da classe para si; a identificação com certas categorias de identidade é fundamental nesse ínterim porque, em muitos casos, é o primeiro nome que se dá às mazelas de classe particulares a um ou outro setor. Isso não significa acatar tão tranquilamente posições “juventudistas” (ou pretensamente representativas de qualquer outro campo de identidade) como argumento autossuficiente para a constituição de organismos especiais e exclusivos para as juventudes. Certamente há decisões para depois, como quanto à existência de estrutura própria da UJC ou sua intransigente e absoluta dissolução no Partido. Mas não sejam tão afobados em devolver de mãos beijadas nossa juventude ao PCB-CC: ao menos esperem que eles nos processem primeiro. É absolutamente irracional imaginar que, se abrirmos mão da UJC neste Congresso, poderemos voltar tranquilamente a reivindica-la em dois ou três anos: nós estamos em um momento decisivo da disputa dessa patente.

De qualquer forma, não era sobre isso que eu falava. Na metade de 2022, a UJC Santa Maria já havia se transformado em uma verdadeira seita. Tinha, certamente, suas características particulares, já que também absorvia com muita facilidade qualquer jovem calouro das Ciências Sociais que se interessasse por política – vocês devem imaginar, coisa bastante rara. Quando o núcleo hipertrofiou, houveram inúmeras iniciativas, especialmente de Labareda, para formar comunistas capacitados para o trabalho entre as massas (estudantis, especialmente). Isso não se pode negar: nosso núcleo não era apenas consideravelmente grande diante da conjuntura da UJC no interior gaúcho, nós formulávamos com qualidade e contribuíamos para o avanço da organização em muitos aspectos.

O mais central para qualquer militante santa-mariense da UJC era o combate às opressões, por razões muito evidentes. Nossa preocupação com a humanidade de nossas decisões políticas era francamente insuportável. Nossas reuniões frequentemente se transformavam em longos lamentos coletivos, já que todo e qualquer assunto, por meses, tocou em muitos gatilhos individuais. Nossos camaradas se sentiam constantemente violados pelas decisões tomadas pela Sindicância e havia convívio quotidiano com as consequências daquela denúncia por muitos meses.

Mesmo para quem sempre foi grande partidária da mística, aquela espiral de sofrimento mascarada de acolhimento e pertença se tornou, realmente, muito cansativa, pois não contribuía de modo algum para o avanço do trabalho. Demorei muito tempo para perceber que parte significativa do que acontecia na UJC-SM era pura e simples expressão de um liberalismo pequeno-burguês muito típico, que se escondia por trás de uma pretensa abertura à diversidade e de um suposto avanço e rigorosidade no combate às opressões. Na verdade, era só punitivismo.

Assim, a performance de inutilidade se transformava em abuso psicológico. Quando eu disse a uma camarada autista que não era aceitável chamar de abusador um militante homem que, mesmo equivocado, não sabia organizar uma palestra sem o constante auxílio de uma camarada mulher, fui respondida com o seguinte:

Para se referir aos diversos abusos psicológicos (e até físicos, em virtude de sua exaustão física, causada pela sobrecarga) que vinha sofrendo na fração CS. Existem abusos de diferentes tipos, para além dos considerados "mais graves", como os de natureza sexual. O que você faz, ao reforçar que não se trataram de abusos as situações que [Labareda] vivenciou na fração CS é, na verdade, uma tentativa de diminuir o sofrimento psíquico da camarada com relação a essas opressões.

Pois, para você, todo esse sofrimento “não se equivale” a dor de um abuso sexual e, portanto, não merece ser colocado na ampla categoria dos abusos. Você dá a entender que existe uma hierarquia de sofrimentos, sendo que alguns deles podem ser tratados como abuso, enquanto outros não.

Além de estar deliberadamente defendendo, nos debates partidários sobre a Sindicância, que Gastura operara abusos de ordem psicológica – coisa também muito grave –, na prática, eu só tentava evidenciar que cometer um pequeno erro ao tentar passar um café [sic] não era passível de tipificação criminal. Sem dúvida, a performance de inutilidade em nossas fileiras é um problema frequente e, quem sabe, talvez até possa configurar situações de abuso psicológico se acompanhada de manipulação, humilhação ou do próprio malabarismo da responsabilidade, coagindo camaradas mulheres por negligências que não foram suas – mas esse estava longe de ser o caso da Fração das Ciências Sociais. Dessa posição, disseram-me que, além de capacitista, estava também menosprezando um verdadeiro abuso físico, pois a sobrecarga causada pela performance de inutilidade resultava em desgaste do corpo. Sempre é muito difícil contar esta história sem ser desacreditada porque é realmente surreal que as coisas tenham se dado dessa forma. Não só isso: fui a única pessoa de um núcleo de quase 40 militantes a questionar a racionalidade do argumento. O que, sem dúvida, não pode ter passado de um grande delírio identitário coletivo.

O problema é que eu estava, de fato, muito engajada com a qualificação do combate às opressões nas nossas trincheiras. Não é aceitável que, mesmo após a cisão, tenhamos tantos casos de violências a lidar. Na verdade, é perfeitamente justificável que tratemos com tanta cólera estas situações que nos obrigam a desviar de assuntos realmente importantes para nos ocuparmos de um militante agressivo, indisciplinado, ególatra e machista. Faça-nos o favor de sair para que não tenhamos que perder tempo investigando um desvio tão inaceitável, com frequência também perdendo camaradas valiosas. Mais ainda para quem diz querer o melhor do mundo, não entendo a dificuldade de receber uma negativa em uma investida sexual, em simplesmente ouvir a fala de quem fala, em apenas tomar em mãos uma responsabilidade que é sua e ir até o final nessa tarefa sem nos ocupar a cabeça com um problema que não é nosso. Como pode ser possível precisar convencer tantos camaradas de que é necessário ser um adulto funcional para ser um comunista? [8] Um militante tão inútil torna difícil recusar a proposta presente no Caderno de Teses quanto à expulsão sumária dos indisciplinados e agressores – quem sabe também dos incompetentes.

Talvez tenha sido um pouco deste sentimento de absoluta intransigência frente a algo que nos parece tão facilmente corrigível que me motivou a destacar o nome de um camarada porto-alegrense à Coordenação Nacional da UJC na etapa nacional do IX Congresso. Quero falar sobre isso porque entendo que tenha cometido uma injustiça e que o escândalo causado pelo Rio Grande do Sul naquela plenária não tenha ficado devidamente explicado.

Em dezembro de 2022, escrevia à Coordenação Estadual da UJC-RS, reconhecendo também meu sensacionalismo, a razão que cristalizava a defesa que fiz, representando a posição de Santa Maria:

A lógica das defesas contra a qualificação do nosso combate a situações de abuso sexual que recorre [...] ao problema da perseguição política instrumentalizando-a para justificar casos graves de machismo, o próprio machismo do camarada e a falta de autocrítica real, bem como seus erros dirigistas que prejudicam nossa unidade de ação foram os motivos que apresentei contra a subida de Theo [Dalla] à Coordenação Nacional [...].

 Ele nunca se solidarizou com abusadores – ao menos não por se tratar de um abusador e cúmplice; menos ainda cometeu ele próprio qualquer assédio, como pode ter sido extrapolado; seu erro foi generalizar o problema porto-alegrense, vendo na consequência da Sindicância de Santa Maria – a expulsão de Gastura – a perseguição política antes da efetiva violência –, pois sequer havia estudado os documentos que subsidiavam o caso. Destaquei seu nome porque personificava essa leitura generalizada de que, para combater a perseguição política, seria necessário abrir mão dos ainda fracos instrumentos de combate à violência dos quais dispúnhamos – ou ao menos estagnar seu avanço. Nunca achei, como alguns camaradas acharam, lamentavelmente, que era necessário, na prática, escolher entre o combate a uma ou outra dessas pragas. Tudo isso se deu também porque tomei para mim a leitura de Tartufo, quem efetivamente havia participado de uma reunião decisiva, já que o Rio Grande do Sul não oferecia, via de regra, muita margem para a satisfação de problemas frequentemente superdimensionados. Ainda que seja incontestável observar que fui cobrada pelo espetáculo que causei com muito mais ênfase do que Theo – ou tantos outros camaradas que tenham feito a mesma confusão – fora cobrado pelo que continuo entendendo como um erro.

Estas coisas também não ajudam, e foi frequente que a capital tenha olhado para a dinâmica interiorana com os mesmos olhos que viam a dinâmica metropolitana – o que era, no mínimo, um pouco amador. Por mais que me constranja, percebi tardiamente que fui peça importante em um processo com o qual não coadunava, de tentativa de incapacitar politicamente dirigentes que se opunham às teses da UJC-SM – fossem santa-marienses ou não. O tema da violência sexual sempre tocou em pedaços muito sensíveis da minha subjetividade e, como Santa Maria, apelei para a violenta emoção como excludente de ilicitude nas polêmicas internas. Não acho, entretanto, que seja a minha demagogia a parte mais incômoda dessa autocrítica, mas a mixórdia em que estive metida, durante algum tempo, por tentar tanto combater os problemas corretamente apontados pelos meus camaradas de núcleo quanto preservar e apelar por condições mínimas de trabalho e superação de desvios dentro de nossa instância estadual de juventude e da célula do Partido. Vacilar em algumas coisas foi um mérito difícil de engolir.

Estou convencida de que, em alguma medida, estamos construindo um novo Partido a partir de paranoias que herdamos do velho PCB. Nem tudo a partir daqui voltará a ser sobre perseguições e boicotes, há ainda muitos problemas sérios sobre os quais não formulamos suficientemente – e sobre os quais tantas boas formulações, por sua incompletude, foram recusadas. O PCB-RR nasce com a tarefa de operacionalizar o giro operário-popular prescindindo de qualquer desvio obreirista, mas as respostas que temos sobre os problemas quotidianos das identidades em nossas fileiras ainda são dados por cada caso, pela consciência de cada direção, ainda são pontuais e insuficientes.

Não posso negar que, embora malconduzida, a Sindicância também representou esforços positivos no sentido de tornar científica a análise daquele caso. O problema estava mesmo no interior, ainda que a capital não fosse um bom exemplo a seguir. Pelo contrário, parece certo dizer que, com frequência, nosso estado foi generalizado a partir da metrópole. Embora, até certo ponto, a polarização interior x metrópole tratasse fundamentalmente de uma disputa de egos fratricida, também era sobre a reivindicação justa de um olhar sobre certas dinâmicas da luta de classes que têm suas tradições próprias. Santa Maria queria para si a atenção das direções que Porto Alegre sempre teve: somos o segundo maior contingente militar do país, temos em nossas mãos a primeira Universidade do interior do Brasil, a maior Casa do Estudante da América Latina, um importante polo industrial e de circulação do estado, a Cidade Cultura e tantos enfrentamentos necessários que podem, inclusive e comparativamente, reverberar mais na rotação do capital gaúcho [9]. Neste período, é verdade que algumas lutas do interior (ou até mesmo do estado como um todo) receberam menos dedicação das direções estaduais, que projetavam a maior parte de sua energia para o seu local de atuação mais imediato – é o caso emblemático das caravanas contra a privatização da CORSAN. Não à toa, foi preciso experimentar a separação do trabalho dedicado à metrópole em comissão própria do Comitê Regional Provisório – o que de fato reduziu alguns danos.

Certa vez Labareda traçou a rota das principais mercadorias do estado e enfatizou que, muitas vezes, Porto Alegre não estava no mapa. Construir um Partido nacional começa por desenvolver uma análise que compreenda que há eixos de circulação do capital no interior brasileiro que podem ter um resultado significativo na construção de nossas lutas, e que por vezes podem representar maior potencial de mobilização, em um cálculo que compare nosso esforço político e capacidade de impacto. Não quero dizer, com isso, que Terra de Areia, Não Me Toque, Anta Gorda e Pau Fincado sejam lá cidades muito estratégicas, mas a construção de planos de ação gaúchos que levem em consideração, por exemplo, a relevância que tem o porto de Rio Grande e o polo industrial de Caxias do Sul para o nosso estado são fundamentais. Que “a dinâmica do capital na capital seja mais acelerada”, todo mundo sabe. Mas, a julgar pelas condições de trabalho dos nossos Comitês Regionais, que plano temos para a interiorização do PCB-RR após o XVII Congresso?

A autofagia

Divertiria muito reproduzir aqui as tantas páginas que jogaram a última pá de cal sobre o Núcleo Santa Maria da UJC em fevereiro de 2023, mas meu relato já informa suficientemente nossa tragédia. Naquela carta foram sistematizados três principais erros: (a) “a realização de acusações graves que não se traduzem em sínteses coletivas e não geram encaminhamentos condizentes”; (b) “a permissividade para que a forma pessoal e subjetiva dos problemas determinasse seu conteúdo político”; e (c) “a falta de criticidade e de maturidade de inúmeros militantes, o consenso forjado no silêncio dos divergentes, a assimilação acrítica da posição supostamente representativa de quem está incluso em determinado grupo oprimido [...]” [10].

Quando a Sindicância não resultou em o que quer que tivesse sido suficiente para acalmar os ânimos do Núcleo SM, esses incontáveis vícios liberais que estavam sendo nutridos desde sempre – com ênfase no período posterior a 2021 – em uma cultura política que combinava burocratização, de um lado, e identitarismo, de outro, chegou ao seu limite, e era preciso concentrá-los sobre a cabeça de um mesmo bode expiatório. Vocês podem supor quem tenha sido sorteada.

Colecionei desafetos e, além das inúmeras caricaturas, fui taxada também de muitas coisas graves – mocréia, por exemplo. Há uma lista realmente extensa e absolutamente criativa de adjetivações que me foram conferidas. De qualquer modo, tomei a decisão de passar a colaborar com o Partido tardiamente, quando passei a ser vitimada pelo monstro que ajudei a criar – o que, aliás, é exemplo de um liberalismo comum entre nossos militantes. Na carta que deu fim ao meu processo disciplinar por formação de tendência, eu dizia

Os militantes que se desligaram não são outra coisa senão oportunistas que rejeitaram a responsabilidade de arcar com as consequências de seus desvios e descentralizações. O Partido reconheceu inúmeros erros, mas a UJC-SM se recusou, em inúmeras oportunidades, a ouvir nossas posições. Reivindicaram inúmeras vezes espaço de escuta e boicotaram estes mesmos espaços quando a célula finalmente conseguiu organizá-los – pois também tem o Partido uma conjuntura interna delicada. Não havia como resolver nossos problemas sem que pisássemos sobre o mesmo terreno, sem que a UJC reconhecesse, como a célula reconheceu, que haviam inúmeras decisões tomadas à revelia do nosso método organizativo: e é por esta razão que a célula abre o ciclo de debates sobre a crise com uma formação, não uma reunião. Se havia compromisso destes militantes com a linha e o método desta organização, deveriam ter exposto suas denúncias e assegurado, como a célula busca assegurar, o fluxo correto de informações e decisões, o respeito à unidade de ação que a UJC tantas vezes rejeitou por divergir das decisões partidárias em todos os âmbitos. Não o fizeram porque são, também, covardes, e nominam divergência como violência, esmaecendo a gravidade das violências que realmente se desenvolveram em Santa Maria.
[...]
O movimento fracionista da qual fiz parte não foi resultado de uma tentativa deliberada de sabotagem ao Partido, não arquitetou a destituição de dirigentes – embora tenha dado vazão ao desejo da destituição, cujas razões políticas foram objeto de sérias discussões celulares –, não operou vazamento de informações a pessoas externas ao complexo partidário nem boicotou diretamente atividades de nossos organismos. Eu, ao menos, não fiz nenhuma destas coisas. Pouco importa, é claro, a melhor intenção que possa ter me levado ao inferno, pois todas estas coisas foram, sim, resultados da cultura política que, embora já existisse antes de nós, foi extraordinariamente impulsionada por esta direção. A dissidência foi um mal necessário que, avalio, também não fora resultado direto daquele grupo. As consequências mais explícitas do que fiz – que evidenciam, além de tudo, meu mais estapafúrdio erro de análise – são (a) o fortalecimento do identitarismo e, com ele, do punitivismo que se sustentou sobre a cultura de constrangimento à divergência no interior do núcleo; (b) o crescimento e naturalização da indisciplina frente ao sigilo dos debates internos; (c) o impulso a práticas amiguistas e pequeno-burguesas; (d) a confusão da base quanto ao nosso método organizativo que, em alguma medida, é também causa deste problema; (e) e, destacadamente, a desmoralização do Partido diante de sua juventude.

 Como argumentei em outro momento desta reflexão, erros e acertos precisam ser avaliados conforme as condições de luta e as decisões disponíveis. Por ter cometido tantos erros quanto se possa contar, não posso pleitear em meu nome nenhum arauto revolucionário no coração do estado, ainda que reivindique um lugar decisivo na manutenção da existência cadavérica do complexo partidário na minha cidade. Fosse em função do meu “individualismo obsceno” ou da minha pretensa postura de “salvadora messiânica do caos”, como fui alegremente descrita, sobrevivi a uma miríade de difamações e calúnias, que ensejaram, inclusive, a abertura de acusações muito graves contra nosso Partido e nossa militância em círculos políticos da cidade e até mesmo em manifestações públicas na UFSM, diante de algumas centenas de pessoas. Outras protagonistas importantes também receberam simbolicamente suas vaias – tenham sido elas burocratas ou não – em um processo que facilmente poderia ser traduzido como o mais grosseiro rebaixamento na disputa interna com o qual já tive contato nesta década de luta, tendo vivido a maior parte dela na socialdemocracia.

O resultado não poderia ser outro se tantas acusações graves eram apresentadas em reunião – ou em conversas de corredor, com mais frequência – apenas para expiar a culpa dos que se reconheciam como os grandes injustiçados dessa história, sem que precisassem assumir a consequência de fazer algo com estes abusadores e golpistas, como diziam sermos. Não poderia ser outra coisa senão pequena política nutrida a partir de desafeto e desacordo. Um debate transformado em birra não conferia qualquer ambiente seguro para que as e os camaradas mais bem nutridos por impulsos de autopreservação intervissem, restando-lhes a assimilação acrítica da posição majoritária – já que o que estava ruim rapidamente tenderia a piorar.

Mas isso vale, em especial, para o nosso núcleo de juventude. Na célula o que haviam eram duas alas políticas bastante irascíveis, cada uma a seu tom. Embora as responsabilize pelas decisões mais controversas, as camaradas com as quais antagonizei fervorosamente durante a Sindicância se encontram, hoje, ausentes. Ainda assim, deve ser prudente cultivar certa anistia.

A questão que citei acima quanto ao que, sinteticamente, entendo como caracterização santa-mariense do fracionismo porto-alegrense, ou mesmo os desvios, descentralizações e a covardia dos próprios dissidentes de Santa Maria guarda relação com alguns dos problemas que apontei àquela época não só ao núcleo, mas também sobre as posturas pessoais de uma dirigente da Sindicância, mais convencida pela contra denúncia do que pela denúncia (o que era de seu pleno direito). Trata-se desta forma particular de polêmica pública que se dá nos espaços privados. Debatendo São Paulo, Acácio [11] diz que

[...] estando claro o papel da polêmica pública, os camaradas têm todo o direito de se conversarem, seja na mesa do bar, seja no trabalho, seja na faculdade, seja durante tarefas etc, isso não é problema algum; o critério que devemos adotar para verificar quando dado tipo de articulação é prejudicial não é nenhuma grande novidade, é o velho centralismo-democrático [...]: se há a liberdade de crítica e não há violação da unidade de ação, não há qualquer problema nas conversas fora dos meios oficiais, não há qualquer problema na construção de ideias e posições em meios informais, uma vez que estas serão eventualmente postas às claras nos espaços de deliberação, ou expostas na polêmica por seus defensores ou adversários. Desta maneira eu pergunto, analisando as atas das etapas de base e das reuniões das instâncias das quais as não-nomeadas direções participam, é possível afirmar que os camaradas escondem suas posições nos debates em pauta? Os camaradas organizam, nas temidas mesas de bar, o boicote do que é deliberado nas devidas instâncias? Se não, não vejo qualquer problema nem qualquer violação do centralismo-democrático.

No nosso caso, sim: havia dissimulação, omissão e boicote. Na Ciência Política liberal – e em termos bem simples –, a cultura política de uma sociedade se dá na medida em que suas instituições expressam de forma coerente (ou não) os valores sociais, traduzindo-se (ou não) em eficiência administrativa, social e política. Quando há coesão, supostamente, não há conflito. Descartando o que não é detalhe, talvez seja produtivo partir de algum lugar para definir parâmetros mínimos do que estamos incessante e arbitrariamente nomeando como cultura política partidária para responder a alguns problemas de ordem relacional com os quais nos deparamos no dia a dia do nosso trabalho.

Que a luta interna é expressão da luta de classes no seio do Partido, já entendemos bem. Está longe do nosso interesse amornar ou neutralizar a disputa, mas a organizar coletivamente e tirar dela bom proveito em benefício do amadurecimento do Partido e de seus quadros. Devemos nos sair melhor nisso na medida em que nossa cultura política refletir a coesão entre, por um lado, nossos princípios políticos e organizativos, nossas estruturas e logística interna, e, por outro, nossas práticas rotineiras orientadas para os planos táticos coletivamente definidos, sem perder de vista a quais objetivos estratégicos eles correspondem. A cultura política do Partido Comunista talvez esteja, simplesmente, na métrica que somos capazes de estabelecer, no microcosmo das interações e mediações necessárias ao nosso trabalho quotidiano, entre o método político-organizativo e o programa revolucionário que o informa. Essa é a razão porquê qualquer cartilha organizativa recomenda que não se enrijeçam os métodos de trabalho, posto que eles correspondem às mediações que vão se fazendo necessárias em cada conjuntura, ainda que nunca se possa abandonar os princípios que os guiam. Quem toma nossas formulações de método como escrituras em pedra não é capaz de discernir o que é princípio do que é detalhe manualesco, suscetível à adaptação. Vale também destacar que método não é igual nem se resume à estrutura interna.

Essa é a dificuldade que se tem, por exemplo, em contemplar todas as possibilidades infinitas de caminhos justos e passíveis de serem tomados no curso de uma correção disciplinar. Alguns camaradas entendem que a inexistência de procedimentos normatizados para os processos disciplinares ajuda nesse sentido. Não tenho apego às instruções tanto quanto valorizo que se digam quais devem ser as premissas para a análise desses casos. Quanto à questão da disciplina, elaborei com base em materiais congressuais da UJC a seguinte redação que, como já é de praxe, foi rejeitada na etapa gaúcha:

Art. 10+1 Constitui grave infração disciplinar a formação de tendência ou corrente interna, caracterizada pela construção de centros paralelos de deliberação e orientação política, externos ou internos aos organismos, que se expressem na constituição de plataformas políticas estranhas às deliberações congressuais do PCB-RR e cujos membros se organizem através de disciplina própria, de modo a (a) ameaçar a unidade de ação partidária, sabotando-a ou boicotando-a; (b) operar o desgaste, quebra, isolamento ou incapacitação política de nossos quadros; e (c) gerar confusão ideológica entre nossas bases, desmoralizando o Partido.
§1º Preserva-se o direito à constituição de alas políticas, entendidas enquanto agrupamentos espontâneos e temporários de militantes convergentes em determinados posicionamentos ou temas, desde que não adquiram expressão pública própria e não constituam círculos de discussão autoisolados das estruturas partidárias, impedindo ou obstaculizando a ampla circulação de ideias.
§2º Nos casos em que for verificada formação de tendência por parte de organismo dirigente, os organismos que representem mais da metade da militância na jurisdição subordinada, poderão encaminhar ao Comitê Central solicitação de recomposição ou destituição do organismo denunciado. Exauridos os recursos, o Comitê Central poderá encaminhar a destituição ou recomposição da instância por meio da decisão de maioria qualificada de 2/3 de seus membros presentes.

Art. 10+2 Constituem infrações disciplinares:
I – O descumprimento prático de qualquer diretriz normatizada por este Estatuto, pelas Resoluções Congressuais vigentes ou pelas orientações em execução de nossos organismos;
II – A sabotagem ou boicote às ações ou organismos do Partido, inclusive por meio de calúnia e difamação;
III – A operação deliberada de desgaste, quebra, isolamento ou incapacitação de quadros partidários;
IV – A quebra de sigilo em matéria de informação partidária sensível;
V – O desvio, alienação ou retenção de patrimônio partidário ou de entidade dirigida por ele;
VI – A agressão física, psicológica, patrimonial ou simbólica contra militante da organização – resguardado o direito à legítima defesa – e a agressão sexual, em qualquer caso.
Parágrafo único. A ocorrência de agressão tipificada no inciso VI deste artigo, excetuando-se a agressão sexual, a sujeito externo à organização poderá ser enquadrada como infração disciplinar mediante apuração realizada por Comissão responsável, formada por militantes destacados do Comitê ao qual o denunciado é vinculado.

A mim importa muitíssimo pouco as conversas de bar. Isso dá um trabalho danado à polícia política interna que prioriza esse serviço em detrimento das tarefas que lhes foram atribuídas pelo Partido. O que não se pode mais é esperar que “a não violação da unidade de ação” seja nosso único parâmetro para verificar se as coisas vão bem ou mal. Isso não é um critério isolado, é base para que se estabeleçam os critérios – o que, como se sabe, frequentemente se desdobra em controvérsia. O racha de Santa Maria ilustra o que pode resultar dos casos catárticos em que uma cidade ou até mesmo um estado inteiro toma uma direção delirante na resolução de alguns problemas. Mas não que um bom Estatuto seja suficiente para reduzir danos como estes sem, no mínimo, uma política de assistência mais consistente, algo que fez muitíssima falta na Boca do Monte. Na verdade, para ser justa, é preciso dizer que, durante o auge da crise, apenas a assistente da CEUJC-RS parecia efetivamente se preocupar conosco.

Todo modo, esse é um caso encerrado, malgrado pareçamos estar ainda bastante longes de eliminar essa prática nociva de criar pânico a partir de acusações graves, muitas vezes infundadas, e sobre as quais se faz muito pouco além de publicar indiretas nas redes sociais ou, com sorte, no Em Defesa do Comunismo. Daniele Mereb demonstra bem o que tenho chamado nesta tribuna de pirraça [12], mas são fartos os exemplos [13]. Ela inicia sua carta, precisamente, falando de “sucessivos abusos e violências praticados” pelo Comitê Regional Provisório do Rio Grande do Sul. Talvez tenha sido a assistência prestada por Tartufo ao Núcleo Rio Grande que possa ter dado a alguns camaradas a impressão de que divergência política é sinônimo de agressão. Falta uma ponderação que sempre reforço aos meus alunos de kung-fu: nem tudo que dói, machuca.

Atesto com a minha própria trajetória a dificuldade que se pode ter em entender isso, mas a adolescência tardia de alguns militantes não pode justificar certas posturas que têm, às vezes, impactos políticos bastante desconfortáveis para o Partido e, portanto, para a nossa capacidade de organização da classe. Acusações graves tem de ser postas às claras nas instâncias e obrigam consequências igualmente graves. A indisciplina não está nas bobagens proclamadas na internet [14] ou nas mesas de bar, mas na covardia de não as sustentar cara a cara com o grande grupo. Esses são os únicos espaços onde se poderá, ao mesmo tempo, fazer uso da compaixão e da racionalidade para tratar das questões que nos tocam em lugares sensíveis e turvam nosso discernimento. Mas isso só será possível se, no longo prazo, formos capazes de efetivar dentro de nossas instâncias uma cultura política distinta daquela que herdamos, na qual ensinemos uns aos outros a não nos sentirmos tão machucados pelas críticas contundentes nem nos autorizemos mutuamente a desmoralizar as minorias políticas.

Se isso for possível, e a camaradagem puder coexistir com certo grau de impessoalidade no trabalho, talvez esgotemos a pirraça que ainda exaure a moral de nossas tropas.


À época em que tudo isso aconteceu, não foi possível elaborar nenhuma sistematização coletiva por parte do complexo partidário de Santa Maria. Minhas iniciativas nesse sentido não foram bem recebidas porque, entre outras coisas, nossa militância se encontrava absolutamente exaurida e à flor da pele. As cartas em que consegui realizar um esforço mais significativo para analisar efetivamente esse caso datam do período imediatamente anterior ou posterior à cisão e, por isso, são também bastante limitadas. Por representar, principalmente, um esforço de sistematização e relato desse elefante branco gaúcho, essa Tribuna é insuficiente no que toca à análise das suas causas, mas talvez seja útil à nossa elaboração coletiva.


Notas

[1] Tribuna disponível em <https://emdefesadocomunismo.com.br/autocritica-a-em-defesa-do-trabalho-artesanal-do-formalismo-e-do-partido-de-retaguarda/>.

[2] Conheci alguns poucos casos em que o combate às opressões foi efetivamente instrumentalizado para a perseguição política – como o próprio caso deste elefante. Entretanto, nenhum deles utilizou especificamente do abuso sexual como recurso à incapacitação de nossos militantes.

[3] Contribuição ao debate sobre o processo de Sindicância em Santa Maria, texto meu de 25 de julho de 2022, enviado à Coordenação Estadual da UJC-RS.

[4] O fracionismo nas nossas fileiras, a cultura política da UJC e a crise em Santa Maria (RS), texto meu de 08 de abril de 2023, enviado a várias instâncias.

[5] Eu não colocaria as coisas exatamente nesses termos, mas minha posição já está suficientemente descrita nas Tribunas de Debate 110 e 111/2022, do IX Congresso Nacional da UJC. O trecho citado foi retirado da Tribuna disponível em <https://emdefesadocomunismo.com.br/quais-sao-as-principais-questoes-que-devemos-resolver-no-xvii-congresso/>. A leitura é imprescindível.

[6] Tribuna disponível em: <https://emdefesadocomunismo.com.br/o-papel-da-juventude-resposta-ao-camarada-p-acacio/>.

[7] Falando em essencialismo, não achem que isso autoriza dizer barbaridades como “a organização, sendo o lugar onde se formam os futuros comunistas, carrega dentro de si o espírito inquieto, efervescente, questionador da juventude”, como nos disse o camarada Pedro Alcântara expressando opinião popular, ao defender o paternalismo sem o paternalismo. Ainda não alcançamos a Revolução, e tampouco estamos no Brasil dos anos 1980 – ao menos as Ciências Sociais e a Educação já não estão. Tribuna disponível em: <https://emdefesadocomunismo.com.br/de-que-serve-a-ujc-uma-resposta-ao-camarada-p-acacio/>.

[8] Espero que aqueles que marcham conosco, mas ainda não são adultos, relevem meu comentário. Desejo que a organização política e seus desafios não o façam sentir tão culpados por cometer certos erros juvenis que são tão essenciais ao nosso aprendizado, como frequentemente me senti.

[9] Enquanto critério definidor de civilidade, ao menos nos pampas, também é importante deixar registrado que Santa Maria é, a contragosto de Pelotas e Canoas, a verdadeira herdeira do título Cidade do Xis.

[10] Sobre os meus erros e os erros coletivos no combate às opressões e na direção política do Núcleo da UJC Santa Maria, texto meu enviado ao núcleo, à célula do PCB-SM e à CEUJC-RS em 17 de fevereiro de 2023.

[11] Tribuna disponível em <https://emdefesadocomunismo.com.br/oportunismo-metodos-de-disputa-e-o-afogamento-do-debate-politico-uma-resposta-ao-camarada-di-lorenzo/>.

[12] Tribuna disponível em <https://emdefesadocomunismo.com.br/carta-de-desligamento-do-cr-rr-rs/>. Resposta do camarada Theo Dalla disponível em <https://emdefesadocomunismo.com.br/sobre-os-problemas-do-comite-regional-do-rs-uma-resposta/>.

[13] Nota do Comitê Nacional Provisório em resposta ao camarada Leonardo (Silco) disponível em <https://emdefesadocomunismo.com.br/sobre-a-liberdade-de-critica-e-a-violacao-da-unidade-de-acao/>. A leitura do excerto de um discurso de Lênin em sessão do Conselho do POSDR é particularmente instrutiva.

[14] A camarada Victória Pinheiro traz contribuição importante nesse sentido, disponível em <https://emdefesadocomunismo.com.br/o-liberalismo-pequeno-burgues-e-a-organizacao-da-polemica-publica/>.