Tarifa Zero em Belo Horizonte: é dever dos comunistas avançar na questão urbana

A palavra de ordem dos comunistas deve ser a tarifa zero com a estatização de todos os meios de transporte público urbano, com controle direto dos trabalhadores!

Tarifa Zero em Belo Horizonte: é dever dos comunistas avançar na questão urbana
É preciso compreender as razões que levam essa pauta a ser adotada até mesmo por figuras da direita, sem grande resistência das empresas de ônibus, em um momento de apassivamento e desorganização da classe trabalhadora.

De Comitê Pela Reconstrução Revolucionária do Partido Comunista Brasileiro na Região Metropolitana de Belo Horizonte

Belo Horizonte, 13 de setembro de 2023

Da tarifa a R$6,00 até a proposta de tarifa zero universal em Belo Horizonte — ou como chegamos até aqui

Como um dos problemas urbanos que mais desponta hoje na Região Metropolitana de Belo Horizonte, a questão do transporte urbano coletivo tem adquirido destaque nos últimos meses devido a uma sequência de ofensivas contra a classe trabalhadora em torno da tarifa da rede de ônibus municipal. Ainda em abril, a prefeitura anunciou um aumento no valor de R$4,50 para R$6,00 — tornando BH uma das quatro cidades com as passagens mais caras do Brasil. Essa medida se somou à privatização do metrô da cidade, firmada em dezembro de 2022 com o apoio do governo Lula-Alckmin, que arrematou a miséria dos trabalhadores metroviários e da única linha que, mesmo sob diversas promessas de ampliação em períodos eleitorais, não atende bairros periféricos e metropolitanos, restringindo-se ao eixo norte-sul da capital.

Em resposta ao aumento, diversos movimentos sociais, organizações, partidos e usuários da rede de transporte se reuniram e deram cabo a uma série de manifestações no centro da cidade, que contou no início com forte presença de estudantes secundaristas, do movimento estudantil universitário organizado e de movimentos sociais urbanos que reivindicavam não somente a revogação imediata do aumento, mas também faziam avançar a pauta da tarifa zero. Aos poucos, a desarticulação dessa frente e a falta de um calendário de lutas consequente levou a um arrefecimento das mobilizações e, sem que o recuo no aumento tenha sido uma conquista direta da população em protesto, o desdobramento do jogo entre o prefeito de Belo Horizonte, Fuad Noman (PSB), e o presidente da Câmara Municipal (CMBH), Gabriel Azevedo (sem partido), resultou na aprovação de um subsídio de R$ 512 milhões para as empresas de ônibus em troca da redução da tarifa de volta para R$ 4,50 em julho.

Tendo sido consolidado o cenário de apaziguamento das reivindicações nas ruas, o retorno à “normalidade” em muito pouco alivia a classe trabalhadora, que historicamente fora compelida a ocupar regiões periféricas da cidade e da Região Metropolitana, “[...] onde são acometidas por um violento processo de espoliação urbana, marcado por exaustivos e extensos deslocamentos entre casa e trabalho em redes de transporte coletivo cada vez mais deterioradas e com passagens mais caras, falta de acesso a equipamentos de saúde, educação, cultura, lazer e áreas verdes, tendo sua condição de vida extremamente precarizada”.¹ Ainda, o cotidiano conhecido pela população usuária da rede de transporte da capital mineira é marcado por uma frota de veículos e grade de horários insuficientes, em especial fora das áreas centrais e em finais de semana e feriados; condições de trabalho do motorista-cobrador precarizadas; fiscalização, manutenção e segurança dos veículos inadequadas — quadro que tem como principal agente a “máfia do busão”, apelido que se firma com a realização da CPI da “caixa-preta da BHTrans” em 2021, não sem suas articulações internas ao executivo e legislativo municipais.

Em 08 de agosto, os coletivos Tarifa Zero BH e Coalizão Mobilidade Triplo Zero, ao que se somaram outros movimentos sociais, partidos, sindicatos e entidades estudantis, apresentaram em coletiva de imprensa a proposta da tarifa zero universal para Belo Horizonte sob a campanha Busão 0800.² Em suma, pretende-se criar a Taxa do Transporte Público (TTP) a ser paga por empresas com 10 funcionários ou mais (em substituição ao atual Vale-Transporte) para o Fundo Municipal de Melhoria da Qualidade e Subsídio ao Transporte Coletivo (FSTC) — regulamentando esse instrumento que já fora previsto pelo Plano Diretor de Belo Horizonte de 2019. Acrescido de recursos do orçamento municipal que hoje já custeiam ⅓ do serviço de transportes, a medida garantiria a implementação da tarifa zero na rede municipal de ônibus para toda a população. Prevêem-se impactos como o aumento da quantidade de usuários, a ampliação do poder de compra da população que hoje em dia despende até 30% de sua renda em transporte público, assim como uma diminuição de custos públicos relativos aos problemas do trânsito e acidentes.³

O Projeto apresenta algumas lacunas que não podem ser ignoradas e que já vem sendo apontadas desde o lançamento da campanha, sendo a principal delas a restrição à regulamentação do subsídio à tarifa zero na capital. A proposta não aborda as relações intermodais entre a rede municipal, intermunicipal e metropolitana — isto porque se submete às amarras institucionais que tem, a passos largos, abandonado a perspectiva de desenvolvimento integral metropolitano. Caso aprovada, pode se criar um conflito entre a contribuição da TTP (municipal) e a necessidade de manutenção do VT (intermunicipal) para empresas em BH com funcionários metropolitanos, encarecendo essa parcela da força de trabalho. Com a manutenção dos altos valores de tarifa dos ônibus intermunicipais — que atingem R$11,20 por viagem partindo de municípios lindeiros à Belo Horizonte, como Betim, enquanto a maior parte das tarifas é R$7,20 — é de se questionar se, para os empresários com sede na capital, não será preferível operar uma demissão em massa das e dos trabalhadores que residem na Região Metropolitana. Combinados o trabalho precarizado e a periferização da classe trabalhadora, a tendência é que se dê continuidade a um padrão de urbanização que reforce as contradições entre centro e periferia.

Na CMBH, Gabriel Azevedo tem adquirido protagonismo enquanto um dos principais vereadores interessados em articular internamente ao legislativo pela aprovação da proposta, em especial com a expressiva bancada evangélica. Não surpreende que essa mesma figura tenha sido central na manobra institucional que alterou em atropelos o Plano Diretor municipal, ainda no primeiro semestre desse ano, à época, em aliança com o prefeito.⁴ Sem que se incline à qualquer legalismo, sobre esse episódio, afirmamos:

"O assalto ao caráter de justiça social dos instrumentos urbanísticos e aos espaços populares de deliberação acometido por setores da burguesia na Câmara Municipal de Belo Horizonte expõe a fragilidade da institucionalidade quando da defesa dos interesses da classe trabalhadora no que diz respeito à política urbana e às suas condições de vida nas grandes cidades brasileiras."

A perspectiva é de que prossigam as articulações entre as bancadas de vereadores que buscam angariar apoio à proposta que será apresentada como Projeto de Lei na CMBH — é de se esperar que a proposta original, que já apresenta uma série de lacunas, seja ainda deformada a beneficiar uns e outros atores políticos interessados, caso avance. Até o momento, a proposta já conta com sinalização positiva de vereadores do PSOL, PT e PATRIOTA, para além da base de Azevedo que, nesta segunda-feira (03), teve seu mandato sujeito à abertura de um processo de cassação na Câmara,⁵ constrangendo ainda mais o caráter já contraditório do vereador a quem tem sido atribuído papel central nessa campanha. O trâmite da tarifa zero em BH tende a se enclausurar nos espaços institucionais, através de acordos e articulações, lógica que só pode ser reforçada quando se submetem a campanha e os esforços de mobilização da sociedade civil à essa mesma dinâmica eleitoreira. Apontamos para a necessidade de organizarmos a nossa classe fora da lógica de um parlamento que manteve, no último dia 16, o veto do prefeito à uma proposta anterior que tramitava na Câmara e versava sobre a tarifa zero aos finais de semana e feriados na cidade.

É preciso compreender as razões que levam essa pauta a ser adotada até mesmo por figuras da direita, sem grande resistência das empresas de ônibus, em um momento de apassivamento e desorganização da classe trabalhadora. Não se trata de um convencimento por parte da burguesia da viabilidade e sentido lógico da proposta, mas sim de interesses econômicos concretos ancorados na atual conjuntura que tornam determinadas figuras políticas e os empresários mais abertos a medidas desse tipo.

A burguesia do transporte urbano coletivo e a Tarifa Zero nas corridas eleitorais municipais

O sistema de financiamento do transporte urbano coletivo no Brasil está em crise. Atualmente, a principal receita das empresas de ônibus, na grande maioria das cidades do Brasil, é a passagem paga pelos usuários. Isso faz com que o interesse das empresas seja, via de regra, o aumento recorrente da tarifa e a máxima lotação dos ônibus — isto porque a disposição da frota de veículos e a qualidade do serviço não corresponde à demanda concreta de deslocamento da população, mas sim ao lucro. Além do esperado decréscimo de demanda decorrente dos aumentos sucessivos do valor da passagem, o setor também sofre quando cresce o desemprego ou a informalidade, seja porque as pessoas têm menos dinheiro para pagar a passagem, por não terem emprego que motive a locomoção diária ou mesmo por não receberem Vale-Transporte e escolherem outros meios de deslocamento que não o transporte público. Outros fatores, como o surgimento dos aplicativos de transporte individual, também impactam a demanda, em especial dos setores das classes médias. Além disso, a variação no preço do diesel aumenta consideravelmente os custos operacionais, o que se agravou com a dinâmica de Preços de Paridade de Importação (PPI). O coroamento do colapso do sistema de transporte urbano que já vinha se arrastando há anos foi a pandemia, que gerou uma queda de demanda vertiginosa que não se recuperou nem com o fim do isolamento sanitário, algo que pode ser explicado, dentre outros fatores, pela adoção mais ampla do trabalho remoto.

Para combater a tendência à crise, a burguesia do transporte público urbano tem como principal pauta, atualmente, a alteração da forma de remuneração das empresas. No modelo em que têm apostado esses setores, o transporte público seria subsidiado pelo estado, total ou parcialmente, acabando com a insegurança relativa à demanda e reduzindo o atrito político que se instaura quando há aumento da tarifa. Uma vez que a maioria dos municípios não têm condições de arcar com o custo total do subsídio, exige-se uma mobilização nacional para que haja participação da União. Para tanto, a burguesia se articula para aprovar o Marco Legal do Transporte Público Coletivo, que conta com o apoio do Governo Lula através do Ministério das Cidades e regulamenta também outras pautas dos empresários.⁷

Para além da classe empresarial do transporte, outros agentes interessados em incorporar e aprovar a tarifa zero são os vereadores e prefeitos frente às eleições municipais. Em Belo Horizonte, Azevedo bradou na ocasião da apresentação da campanha Busão 0800 que a pauta não é “nem de esquerda, nem de direita, mas da população”, enquanto em São Paulo capital o presidente da Câmara Municipal, Milton Leite (União Brasil), já chegou a declarar que “ou implementamos a tarifa zero ou o Boulos [PSOL] ganha a eleição!”.⁸ Com o apoio dos setores empresariais convencidos a adotá-la como estratégia em meio à crise deflagrante do transporte urbano coletivo, a tarifa zero hoje pode se difundir com muito mais tranquilidade entre as mais variados legendas partidárias e tem se despontado entre as propostas que devem pautar as disputas eleitorais municipais de 2024 — o destaque é tanto que já se pode ler em manchetes a comparação da proposta, que tende a se nacionalizar, ao programa Bolsa-Família. Esse movimento se evidencia na recente adesão dessa política por 48 municípios que, desde 2020, somaram-se ao conjunto de mais de 80 cidades que operam sob sistema de tarifa zero universal, em sua maioria interioranas e com menos de 100 mil habitantes e concentradas nas regiões sul e sudeste do país.⁹

É nítido que já está incorporada à agenda nacional dos grandes empresários do transporte e da classe política a pauta da tarifa zero. De imediato, a perspectiva de gratuidade das passagens de ônibus favorece aqueles que despendem, para além das longas horas nos deslocamentos cotidianos entre casa e trabalho, boa parte de sua renda com o transporte. Todavia, dada a forma como vêm se conjugando a onda de adesão à tarifa zero em diversos municípios e os projetos de leis do financiamento do sistema de transporte urbano à nível nacional, é preciso apontar que o programa que tem tomado forma em torno da Tarifa Zero no Brasil hoje opera em favor da manutenção e ampliação dos lucros das grandes empresas do transporte que, não mais dependendendo da tarifa enquanto principal receita, passarão a ter garantido o financiamento através de fundos públicos, a despeito da qualidade do serviço que seguirá submetido aos frágeis meios de fiscalização das prefeituras, em que pese as “garantias” de quaisquer espaços institucionais de consulta ou deliberação “populares”, novos ou já existentes. Às avessas, a palavra de ordem dos comunistas deve ser a tarifa zero com a estatização de todos os meios de transporte público urbano, com controle direto dos trabalhadores!

São necessários para nós o aprofundamento da compreensão acerca das contradições do meio urbano no Brasil e suas expressões territoriais e cotidianas para a classe trabalhadora; a oxigenação dos debates acerca das questões urbanas que se escancaram em nossos locais de moradia, trabalho, convívio, lazer e, enfim, que atravessam o dia a dia da classe; e devemos avançar, sobretudo, na construção e no fortalecimento de mobilizações populares em torno de reivindicações pelo direito à cidade — que, para além de significar o acesso à cidade, seus serviços e atrativos, deve nos remeter à tomada dos rumos do desenvolvimento urbano e territorial. É imperativo que retomemos a pauta da tarifa zero nas mãos da classe trabalhadora belorizontina, assim como façamos avançar a postura e atuação dos comunistas frente às questões urbanas nas grandes cidades e regiões metropolitanas brasileiras.


Notas e referências

1 O PODER POPULAR MG. Em defesa do Plano Diretor de Belo Horizonte e para além dele! Perspectivas sobre o direito à moradia e rumo à construção de uma Reforma Urbana popular. Por Ana Vieira e Isabel Zerbinato, 20 abr. 2023.

2 BUSÃO 0800. Entenda a proposta. Acesso em 09 ago. 2023.

3 Projeto de Lei de Financiamento da Tarifa Zero em Belo Horizonte. Acesso em 17 ago. 2023.

4 O PODER POPULAR MG. Contra a intervenção do empresariado no novo Plano Diretor de BH! Por Gustavo Damião, 05 fev. 2023.

5 O TEMPO. Câmara de BH abre processo de cassação contra Gabriel Azevedo. Por Letícia Fontes e Gabriel Ferreira Borges, 04 set. 2023.

6 Nos valemos da exposição da crise relativa ao sistema de financiamento do transporte urbano coletivo no Brasil desenvolvida pelo camarada Felipe Ferraz, membro do Comitê que publica este texto, na Tribuna Preparatória para o XVII Congresso Extraordinário do PCB Tarifa Zero e a crise do transporte urbano coletivo no Brasil. Por Felipe Ferraz, 05 set. 2023.

7 MINISTÉRIO DAS CIDADES. Marco Legal do Transporte Público Coletivo. Acesso em: 23 ago. 2023.

8 FOLHA DE SÃO PAULO. Utopia em 2013, Passe Livre atrai classe política com apelo eleitoral dez anos depois. Por Artur Rodrigues, 13 jun. 2023. Acesso em 28 ago. 2023.

9 TARIFA ZERO UNIVERSAL NO BRASIL. Cidades com passe livre em 2023. Mapeamento coletivo organizado por Daniel Santini a partir de levantamento próprio de informações oficiais dos municípios, notícias e entrevistas. Acesso em 17 ago. 2023.