'Ecologia na estratégia' (Isadora Maria)

Quanto mais pudermos imbricar, na práxis, a alienação do trabalho e da natureza como elemento central da contradição capital-trabalho no campo, melhor conseguiremos avançar no tocante à ecologia política na prática

'Ecologia na estratégia' (Isadora Maria)
"Ser marxista-leninista na América Latina e em todo o terceiro-mundo é, também, estudar as formas de realização e acúmulos populares das reformas agrárias ao longo do nosso continente."

Por Isadora Maria para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Tento, nesse texto, dialogar com as tribunas “Os comunistas e a questão indígena, reflexão sobre palavras de ordem e horizontes” (João Thiago), “Sobre ousar perder e sobre mexer em tudo e não mudar nada” (L.P.) e “A luta ambiental no PCB: uma emergência subestimada” (anônima). Adianto que essa tribuna não é tão propositiva em termos táticos de locais de inserção de luta, elemento que pretendo estudar e acumular mais para, quem sabe, conseguir ser mais propositiva no futuro em relação a isso. O que me motivou a essa escrita foi, especialmente, a tentativa de fazer um fio condutor pautado pela ecologia marxista em temas que parecem menos correlatos do que concretamente são.

Gostaria de começar resgatando um conceito da ecologia marxista que é pouco debatido (porque a ecologia marxista em si é renegada mesmo, como traz a camarada anônima): o conceito de metabolismo homem-natureza, fundante nas relações de produção e reprodução da vida. O metabolismo homem-natureza é o produto da modificação que o ser humano (enquanto espécie) exerce em seu meio e, ao modificá-lo, modifica a si mesmo, estabelecendo certa relação com a natureza e dos homens entre si em relação a ela. Para Marx, o ser humano é uma unidade viva com a natureza. Isso implica em: I) tudo o que a classe trabalhadora faz, atua sob a biosfera e tudo o que ocorre na biosfera tem impacto sobre a classe trabalhadora; II) não existe uma natureza intocada, ancestral, alheia ao desenvolvimento da humanidade - a natureza é um produto social. É o capitalismo que cria uma fenda nesse metabolismo.

A agricultura, dessa forma, não é meramente uma atividade comercial; em cada forma específica de organização da agricultura, ela é um produto das relações sociais de produção estabelecidas, das relações com a terra e, principalmente, um elemento essencial do metabolismo homem-natureza, pois é a prática direta de modificação da natureza e do próprio homem. A partir disso, venho estabelecer uma crítica à tribuna do camarada L.P., particularmente ao trecho:

“Sobre a agroecologia, se idealiza isto de tal maneira que se atribui a ela a potencialidade de interromper o padrão de produção capitalista e o potencial para ser a base de um modo de produção! É absurdo, no marxismo, pensar que uma técnica de produção, mesmo que seja de pequena produção ou seja ambientalmente consciente, é, por si, anticapitalista ou revolucionária.”

A questão, camaradas, é que a agroecologia não é uma mera técnica de produção; isso é um aporte liberal do que é a agroecologia. Inclusive, essa leitura é propagada pela ecologia burguesa, numa tentativa de embranquecer e elitizar a agroecologia. A agroecologia é uma forma de sistema agroalimentar que tem por pilares a soberania e segurança alimentar, a produção com base nas dinâmicas dos ecossistemas, com respeito à autonomia do agricultor e que preconiza relações dignas de trabalho; a agroecologia não é uma técnica inventada por agrônomos que queriam ser sustentáveis, mas é o desenvolvimento de uma agricultura feita por populações indígenas, tradicionais e ribeirinhas ao longo de milhares de anos.

Entretanto, entendo a crítica no sentido que a concepção de agroecologia em nossas fileiras é, sim, meramente uma técnica agrícola. A agroecologia de fato não é, por si só, anticapitalista ou revolucionária; mas ela é a única forma possível de agricultura que pode ser anticapitalista ou revolucionária, e não sendo necessariamente para pequenas produções. Inclusive, Richard Lewins e Richard Lewontin resgatam em seu texto “Como Cuba aderiu à Ecologia” que o país saiu da perspectiva de crescimento da Revolução Verde aderindo, em sua agricultura, à agroecologia como estratégia nacional.

Ainda sobre o mesmo texto:

(...) se reconhecemos a existência de um proletariado rural, que trabalha em grandes propriedades produtoras de commodities, balizadoras da luta do campo, então a proposta de repartição destas propriedades em pequenos lotes é absolutamente reacionária! A tarefa aí, para Lênin e para Marx, seria submeter estas grandes propriedades à nacionalização e ao planejamento coletivo.”

Veja bem, camaradas, é inegável a existência de um proletariado rural que trabalha em grandes propriedades (ou em frigoríficos, por exemplo) e em jornadas extenuantes; esse proletariado é a própria cara da superexploração do trabalho típica de países do capitalismo dependente. Entretanto, o camarada ignora que não existe um único método ou ferramenta para a Reforma Agrária que defendemos enquanto marxistas-leninistas. Ser marxista-leninista na América Latina e em todo o terceiro-mundo é, também, estudar as formas de realização e acúmulos populares das reformas agrárias ao longo do nosso continente.

Não existe uma forma única, uma “receita” marxista-leninista de nacionalização da terra e de controle estatal. Existem aí dois problemas: I) ignorar que as terras de latifúndio avançam e tem constantes conflitos sob áreas de povos indígenas, não podendo serem simplesmente estatizadas sem um estudo ecológico do uso da terra e, precisamente, da forma de produção; II) um produtivismo historicamente imbricado nas análises econômicas marxistas, como se todas as forças produtivas tivessem que estar sempre em crescimento. Isso é ideologia liberal; em um país onde, justamente, o agronegócio expande a fronteira agrícola, a mineração alimenta e depende da grilagem de terras e a forma de organização dos centros urbanos coloca a classe trabalhadora em risco diário ao não fornecer adequada proteção à eventos climáticos, acreditar que devemos, na luta pelo socialismo e durante a construção dele, prezar pelo crescimento econômico em grande escala a qualquer custo, é apenas a defesa da reprodução da mesma dinâmica capitalista de produção. Trazendo novamente o texto de Lewins e Lewontin, houve grandes debates que colocavam em cheque o ponto de vista progressivista (ou positivista, de fato) tradicional do socialismo europeu que defendia um inevitável progresso do “antigo” para o “moderno”.

As experiências de Reforma Agrária no Peru, Chile, Egito e China também mostram que diferentes formas de produção coletiva geram diferentes contradições nas forças produtivas e na própria soberania e segurança alimentar des trabalhadores. A monocultura é uma forma de agricultura que se desenvolve para a propriedade privada e para o trabalho alienado; a agroecologia, por outro lado, é um sistema agroalimentar que prescinde de uma organização coletiva de produção. De acordo com a forma de trabalho de cada setor dos trabalhadores agrícolas (pois, pasmem, pequenos produtores também são trabalhadores agrícolas e fazem parte do proletariado, não sendo este restrito apenas aos trabalhadores sem-terra ou assalariados) e com a nossa tática empregada de organização de trabalhadores rurais e a própria construção do Poder Popular, iremos ter resultados diferentes para essa “coletivização” - que pode, inclusive, fortalecer movimentos contrarrevolucionários no campo e comprometer a segurança alimentar des trabalhadores. Nota para algo que devemos nos debruçar no futuro: estudar as relações de trabalho e táticas do MST, articuladas com sua estratégia e seus limites no campo democrático-popular.

Tão latente para a nossa Estratégia quanto a coletivização, é a soberania e vida das populações indígenas, abordada de forma excelente pelo camarada João Thiago, o qual gostaria de fazer algumas contribuições. O camarada coloca que os povos indígenas tem e tiveram outra relação com a terra, que não é a que delimitamos como “trabalho”, pelo fato da forma trabalho não ser a mesma para populações indígenas e não-indígenas, no sentido de não existir uma relação de expropriação, alienação e acumulação. Devemos resgatar que o trabalho não é uma categoria capitalista ou própria das sociedades de classe. O trabalho é uma categoria fundante do ser social; o trabalho é o processo pelo qual o ser humano modifica a natureza e é modificado por ela novamente; é a gênese do metabolismo social - e aqui estou falando do trabalho abstrato, a categoria trabalho em si. Já em questão do trabalho concreto, suas formas de organização nas diferentes sociedades e formas particulares de produção e reprodução dentro dessas sociedades, é precisamente na natureza do trabalho concreto das populações indígenas de seus próprios modos de vida que difere radicalmente o que se concebe no tocante à território e natureza. Em resumo, o fato do metabolismo homem-natureza nunca ter sido fracionado em territórios indígenas (e aqui cabem ressalvas à indígenas urbanizados) deriva do trabalho concreto ser diferente, não da categoria trabalho ser antagônica aos modos de vida e organização dessas populações.

Dialogando com o que o camarada traz acerca da concepção de território não apenas como terra demarcada objetiva, mas como a construção de vida - que é, precisamente, a natureza como um produto social -, gostaria de trazer um exemplo latinoamericano de efetivação dessa concepção. As Terras Comunitárias de Origem, na Bolívia, foram o reconhecimento de um sujeito de direito coletivo para as populações indígenas, ajudando a reconstruir a geografia dos povos bolivianos e a construção de uma identidade plurinacional. As TCO são pautadas pela compreensão de território sagrado, coletivo, pelas quais recursos naturais não podem ser privados ou alienados. No Peru, foi através da análise da superexploração da força-de-trabalho do campesinato que José Carlos Mariátegui afirmou que a questão agrária, da terra e da sobrevivência das populações indígenas são inseparáveis; naquele momento, a população indígena correspondia a 65% da população do país e a 85% da população rural. Coexistiam diversas relações de produção simultaneamente no território peruano: trabalhadores assalariades, meeiros, arrendatáris chamados yácones, bem como produções com objetivos diversos: exportação, sustento das comunidades, acumulação para os senhores de terra, fortificação da indústria, bem como diferentes concepções de Reforma Agrária. Devemos aprender, também, com as formulações latino-americanas que podem nos ajudar a compreender, como diz o camarada João Thiago, a dialética das relações classistas brasileiras e sair da herança do marxismo europeu, e ter a clareza que não é possível separar, concretamente, as dinâmicas em questão. O metabolismo homem-natureza não é seccionável, recortável, de forma que não podemos separar o uso da terra da sobrevivência da classe trabalhadora e dos povos indígenas. Inclusive, quanto mais pudermos imbricar, na práxis, a alienação do trabalho e da natureza como elemento central da contradição capital-trabalho no campo, melhor conseguiremos avançar no tocante à ecologia política na prática.

“Como defensores do socialismo ecológico, retrucávamos com o argumento que era o cúmulo do idealismo esperar que se aprovassem resoluções sobre a produção e que a natureza obedeceria.

Argumentávamos que o desenvolvimento era um processo com ramificações no qual escolhas técnicas não eram socialmente neutras e que cada tipo de sociedade tinha de encontrar seu próprio padrão de relacionamento com a natureza. (...) vimos a escala da agricultura como dependente de condições naturais e sociais, com as unidades de planejamento abraçando várias unidades de produção. Diferentes escalas de cultivo seriam ajustadas às bacias hidrográficas, às zonas climáticas, à topografia, à densidade populacional, à distribuição de recursos disponíveis e à mobilidade das pestes e de seus inimigos.

A colcha de retalhos aleatória da agricultura camponesa, restringida pela posse de terra, e as extensões de terra arrasadas pelo cultivo industrial seriam ambos substituídos por um mosaico planejado de usos da terra.” (Lewins e Lewontin, 2022)

Como bem coloca a camarada anônima, não temos um programa ambiental pautado na Ecologia marxista. A grande parte de nossos camaradas sequer sabe o que é a ecologia marxista, e por vezes nos vemos totalmente à reboque de debates promovidos pelos ecossocialistas no quesito, por exemplo, das mudanças climáticas, ou de análises extremamente limitadas acerca da questão agrária, que se utilizam de fontes exclusivamente soviéticas e, quando muito, chinesas, sem jamais nos voltarmos para um combate efetivo do ecofascismo que cresce entre os setores da ecologia burguesa, ou uma práxis efetiva e consequente em assentamentos rurais e ocupações urbanas.

Apêndice: sobre nosso rebaixamento

Para finalizar, gostaria também de falar um pouco sobre o tocante ao rebaixamento da questão agrária e a absoluta falta de perspectiva efetivamente ecológica no Programa de Campanha do PCB para as eleições nacionais em 2022. Vemos dois parágrafos acerca de questão agrária:

“8. Terra e agricultura. Confisco sem indenização de todas grandes propriedades fundiárias e utilização para produção de alimentos saudáveis. Regularização imediata dos assentamentos rurais. Demarcação e regularização das terras dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhas. Incentivo à redução do uso de agrotóxicos nas plantações, combinando o apoio à agricultura familiar, o fomento à organização de cooperativas para a produção agroecológica, armazenamento e escoamento de gêneros para alimentação e a produção estatal.”

“47. Agricultura. Retomada dos estoques reguladores da Conab. Realização de uma reforma agrária sob o controle dos trabalhadores, com a imediata desapropriação sem indenização de todos os latifúndios improdutivos, das fazendas com trabalho escravo e as que não estejam cumprindo a função social conforme regulamenta a legislação. Fortalecimento dos órgãos de abastecimento alimentar e dos estoques reguladores, visando a que o governo do Poder Popular tenha condições de garantir a segurança alimentar da população, bem com o fortalecimento dos órgãos de pesquisa agropecuários e a construção de empresas públicas para a produção de insumos para a agricultura visando tornar o país autônomo nessa área. Criação de uma nova política agrícola, ecologicamente sustentável, com incentivo e crédito à produção de alimentos saudáveis, e preços mínimos que possam garantir o aumento da produção. Como estímulo à democratização da posse da terra e garantia de sua propriedade pelos trabalhadores, o governo do Poder Popular incentivará a constituição de grandes cooperativas agropecuárias visando racionalizar o sistema produtivo e ampliar a oferta de alimentos básicos.”

Restringir a desapropriação/confisco sem indenização (inclusive, isso se chama…. expropriação? Qual o medo de utilizar essa palavra?) apenas à latifúndios ditos improdutivos e sob a justificativa da função social é uma perspectiva burguesa de reforma agrária. Até quadros conhecidos do campo social-democrata, como Plínio de Arruda Sampaio Júnior (PSOL), conseguem superar essa perspectiva da função social da terra. Arruda coloca que o sujeito da reforma agrária e da revolução brasileira é o proletariado, portanto, essa luta deve ser necessariamente anticapitalista. Mas ele vai além:

“(...) a necessidade de superar a teoria que embasou a luta pela reforma agrária no último período, cuja essência consistia em cobrar da burguesia o cumprimento da função social da terra - uma forma de equacionar a solução do problema agrário perfeitamente coerente com o programa democrático popular que orientou a ação do PT, CUT, MST, CPT e todos os movimentos sociais desde o final dos anos 1970. Ao vincular a luta pela reforma agrária ao princípio da função social da terra, a questão agrária ficou encapsulada nos parâmetros da ordem estabelecida pela ditadura do grande capital. Assim, a reforma agrária ficou equacionada na perspectiva dos inimigos da reforma agrária. O problema central da questão agrária brasileira - o grande latifúndio, a monocultura, o agronegócio - simplesmente foi posto à margem da discussão. A questão agrária foi transformada em um problema residual, deslocada dos problemas urbanos, ambientais, sociais que condicionam a revolução brasileira. Então, o que quero dizer, e com isso concluo, é o seguinte: a reforma agrária brasileira não pode ser reduzida a um problema de distribuir terra. Muito menos terra na fronteira ou terra improdutiva.”

Sem pautar uma reformulação geográfica que não se limite à distribuição de terras, mas sim um novo sistema agroalimentar integrado à uma reforma urbana, continuaremos em uma perspectiva burguesa de Reforma Agrária. Claro, não há interesse algum do Comitê Central a retomar efetivamente o trabalho político historicamente realizado pelo PCB no proletariado rural. É melhor se prender em uma defesa legalista de princípios constitucionais. Inclusive, essa defesa aparece até em notas públicas, como por exemplo a nota “Marco Temporal! Não!”, lançada em 23 de agosto de 2023, onde encontramos:

“O último dos votos, do ministro Alexandre de Moraes, embora se posicionando contra a tese, trouxe muitas preocupações quanto a limitantes, a nosso ver inconstitucionais, da plenitude desse direito originário. Espera-se que isto seja corrigido e assentado nos moldes em que constitucionalmente devido.”

O problema do Marco Temporal é ser inconstitucional? O problema do latifúndio é só quando ele não cumpre sua função social? Quando o latifúndio tem uma produção bruta e eficiência econômica, quando “desenvolve as forças produtivas”, ele deve ser mantido? Isso é uma resposta legalista, economicista e apoiada em uma leitura etapista de formação social brasileira - aqui, Nelson Werneck Sodré e Caio Prado Jr. nunca foram superados.

Outra concepção rebaixada nesse programa é o fortalecimento de pesquisas públicas e criação de fábricas de insumos. Não é pautado em nenhum momento o fim das grandes indústrias químicas de propriedade privada; meramente “fortalecer pesquisas públicas” é apenas uma realocação de recursos financeiros dentro do Estado burguês. Mesma coisa pode ser observada no ponto acerca da Ciência e Tecnologia:

“Será aumentada a dotação orçamentária para a promoção do desenvolvimento Científico e Tecnológico realizado a partir das universidades e instituições públicas e das empresas estatais. Será efetuada a expansão dos programas de bolsas de mestrado e doutorado e de apoio à pesquisa. Serão priorizados, na alocação de recursos, os temas de pesquisa científica e tecnológica voltados para o atendimento das demandas da classe trabalhadora, como meio ambiente, desenvolvimento urbano, tecnologias de saúde e produção de medicamentos, estudos sociais, artes, formação de professores e outros.”

Além de extremamente vagos o que são os “temas voltados para o atendimento das demandas da classe trabalhadora” (isso pode significar literalmente qualquer coisa), a proposta se resume à realocação de recursos. Não existe uma crítica concreta à Universidade burguesa, não existe construção do MUP, não existe ciência popular - o mais próximo disso que existe, é a ciência estatal. Com certeza, camaradas, criar empresas estatais sem eliminar a ciência e a indústria burguesa em nosso país é a solução revolucionária para a pobreza no campo. Isso é apenas um resquício do projeto democrático-nacional. Ciência popular não se resume, simplesmente, a política de cotas nas universidades ou ampliação das bolsas e assistência estudantil; ainda que isso seja primário, a construção da ciência popular passa pela exigência do fim do vestibular, para a construção de outra forma de Universidade e da própria ciência radicalmente - em seus métodos, formulações e técnicas. O desenvolvimento científico cubano, por exemplo, teve como ponto central a historicidade, a determinação social da ciência, a priorização dos processos sob as coisas. A ciência é um processo social, e até as abordagens, ferramentas de investigação e métodos estatísticos são compreendidos como produtos das relações sociais que o produzem, bem como as técnicas que derivam disso também o são.

Para finalizar, é quase um escárnio falar de crédito rural para produtores. Criticamos durante anos os programas do FIES e ProUni como medidas de endividamento para a juventude precarizada brasileira, e defendemos algo mil vezes pior para es trabalhadores rurais. O crédito agrário apenas aprofunda, em particular, a dependência de agricultores ao mercado financeiro, fortalecendo o agronegócio e minando quaisquer perspectivas de autonomia e auto-organização desse setor do proletariado; ao mesmo tempo, de forma geral, aprofunda a dinâmica de dependência econômica do Brasil em relação ao exterior. Não existe “tornar o país autônomo” aprofundando a dependência econômica. Cooperativas também são colocadas como a grande solução para a reforma agrária; devo lembrar, camaradas, que a palavra “cooperativa” pode ter inúmeros significados. A Copacol, a Cocamar, a Castrolanda, a Frimesa, são todas cooperativas. Cooperativa é um termo jurídico-burguês para a aglutinação de forças produtivas de diferentes proprietários em torno de uma produção comum com repartição de lucros para seus sócios. É uma forma burguesa de produção.

Mas cooperativa também pode ser, por exemplo, o desenvolvimento espontâneo ocorrido na Reforma Agrária na China entre 1949 e 1953 com o I Plano Quinquenal; nesse contexto, partia de grupos de ajuda mútua entre agricultores para problemas práticos cotidianos da produção agrícola, e veio a se desenvolver em dois momentos: I) de caráter capitalista, pois cada membro continuava proprietário de sua gleba e meios de produção; ou II) de caráter semissocialista, pois a propriedade se diluía para coletiva dos membros de cada cooperativa. Em 1958, o sistema de cooperativas foi definido pelo Comitê Central do Partido Comunista Chinês como necessário de ser transformado em comunas populares rurais, com infraestruturas que visassem a elevação do nível de vida da população rural chinesa e a administração popular da economia, educação, cultura, segurança pública e poder militar nessa unidade administrativa básica do Estado, que é a comuna. (Mantenho aqui críticas ao suposto socialismo chinês, não me furtando de aprender com os acúmulos da Revolução Chinesa).

Mas não devemos formular acerca da Ecologia Marxista e tudo que a engloba para apenas formularmos um programa de campanha melhor. É uma questão bem mais urgente: não iremos fazer nem uma Reforma Agrária nem uma revolução sem compreender materialmente o que é o proletariado rural brasileiro e qual a relação sociometabólica que os comunistas, para emancipação da humanidade, devem visar construir. Por isso, camaradas, tentarei ser propositiva:

I) Devemos fazer um mapeamento, por estado, do perfil do proletariado rural; quem é esse proletariado? São os trabalhadores assalariados de grandes empresas agrícolas? São os pequenos proprietários proletarizados em regimes de cooperativa, ou independentes dela? São os trabalhadores sem-terra, em ocupações ou assentamentos? Qual o perfil de raça e gênero desse proletariado?

II) Qual o escopo produtivo principal desse proletariado rural? É produção primária vegetal, produção primária animal, processamento? Quem trabalha nas indústrias de processamento? Onde estão concentradas essas indústrias? Para onde é escoada essa produção?

IV) Qual é o regime de concentração de terras? Qual o regime de mecanização do trabalho? Onde se encontram as principais contradições da dependência econômica dentro do campo? Qual é o papel que a extensão rural e os extensionistas cumprem em relação ao proletariado?

V) Quais são as formas já existentes de organização desse proletariado? Sindicatos Rurais municipais, de pequenas regiões? Assentamentos? Qual o histórico de conflito de terras na região e, especialmente, como isso se indica hoje? Qual é a condição de produção e reprodução da vida das populações indígenas que ali vivem?

VI) Qual o papel do MST e da LCP na região? Existem milícias armadas na região? Nas áreas de fronteira, como se dá o tráfico de drogas e armas?

Sem ilusões que estaremos, amanhã, nacionalizando um coletivo agrário e que teremos ao nosso lado todas as organizações de resistência indígena através da simples força das nossas formulações. Mas devemos nos perguntar desde já: como podemos construir junto às populações indígenas sua luta e, especialmente, aprender com elas, já que são inegavelmente um exemplo de auto organização? Qual é o proletariado rural que queremos organizar? Qual é o projeto de ecologia política que está à altura das tarefas da revolução brasileira em um país de capitalismo dependente? Onde começamos nossa inserção? Nas casas de passagem indígena? Nas Frentes Antirracistas? Nas agroindústrias? Nos assentamentos já organizados? Nas ocupações urbanas? Nas hortas comunitárias de bairros periféricos? Nos cursos das ciências agrárias, também, por que não?

Por fim, para aqueles que me acusarem de ser maoísta, devo admitir que apesar de 80% do proletariado brasileiro viver nos grandes centros urbanos, é o latifúndio que é o grande pilar do poder político no Brasil. E resgato a experiência da Revolução Zapatista, onde a estratégia da ação é, precisamente, um sujeito coletivo que realiza a transformação agrária. O sujeito da transformação é o próprio camponês, não o Estado; o modo de ação é com as armas, não com a lei. Sem acúmulos e estudos acerca de todo o proletariado rural brasileiro e das comunidades tradicionais convenientemente esquecidas em nossas táticas, estamos perdendo de vista a resposta de quem é o sujeito revolucionário brasileiro.

P.S. Agradeço à camarada anônima por ter exposto de forma tão visceral a misoginia para com as militantes mulheres que formulam sobre temas que não eram considerados centrais no antigo PCB. Seu relato me fez perceber que eu de fato não estava louca por me sentir mal das minhas formulações morrerem em uma caixa de email, ou por camaradas rirem da minha cara quando dizia que estava estudando Teoria Marxista da Dependência. Existe uma relação muito sutil de rechaço e misoginia no tocante à questões de ecologia nas fileiras de diversas organizações comunistas; acredito que isso é atrelado em alguma medida com o perfil de gênero de quem toma frente na agricultura familiar e na agroecologia. Algumas formulações minhas em ecologia marxista efetivamente morreram em caixas de email de instâncias, mas algumas foram publicadas e essas vou deixar nas referências para quem queira ler.


Referências:

https://emdefesadocomunismo.com.br/os-comunistas-e-a-questao-indigena-reflexao-sobre-palavras -de-ordem-e-horizontes/

https://emdefesadocomunismo.com.br/sobre-ousar-perder/

https://emdefesadocomunismo.com.br/a-luta-ambiental-no-pcb-uma-emergencia-subestimada-contribuicao-anonima/

https://pcb.org.br/portal2/30776

LEWINS, R., LEWONTIN, R. Dialética da Biologia: ensaios marxistas sobre ecologia, agricultura e saúde. São Paulo: Expressão Popular, 2021.

STEDILE, J.P. (org). Experiências históricas de reforma agrária no mundo, Vol. I e II. São Paulo: Expressão Popular, 2020 e 2021.

FOSTER, J.B. A Ecologia de Marx: materialismo e natureza. São Paulo: Expressão Popular, 2023.

FILHO, L.C.P.M, MACHADO, L.C.P. A dialética da agroecologia: contribuição para um mundo com alimentos sem veneno. São Paulo: Expressão Popular, 2017.

SAITO, K. O ecossocialismo de Karl Marx. São Paulo: Boitempo, 2021.

MATTEI, L. (org). A questão agrária no desenvolvimento brasileiro contemporâneo. Florianópolis: Insular, 2013.

Textos meus:

Ecologia política na formação capitalista dependente - https://lavrapalavra.com/2022/10/27/ecologia-politica-na-formacao-capitalista-dependente/

Produção agrícola, trabalho e fenda metabólica: contribuição ao debate sobre a agricultura brasileira - 3ª edição da revista O Futuro (nacional) da UJC (Juventude, saúde e questão ambiental)