'Sobre ousar perder e sobre mexer em tudo e não mudar em nada' (L.P.)

Precisamos de posições e prática cada vez mais decididas, ousadas e bem-fundamentadas na nossa experiência e em nossa teoria. Se temos um partido que não erra, não quer dizer que temos um partido que acerta. Quer dizer que temos um partido que receia ousar.

'Sobre ousar perder e sobre mexer em tudo e não mudar em nada' (L.P.)
"É preciso afirmar: Temos o direito de errar! Em verdade, temos o imperativo de errar!"

Por L.P. para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas,

Gostaria de discutir sobre uma questão que, por vício de nossa cultura política, faz parte da nossa prática militante - e não pode persistir. Em função da nossa extinta unidade partidária, por muito tempo, se escorar no encobrimento das divergências, no federalismo, no amiguismo e em dezenas de tênues acordos - mais ou menos velados - criou-se o costume de não tomar posições firmes e decididas.

Isto é um problema de primeira ordem, camaradas! Nossas notas políticas, resoluções congressuais e até nossas formas organizativas (no plural!) são sempre dúbias, de forma que se pode tirar duas, três ou quatro posições divergentes e contraditórias, a depender das intenções de quem interpreta dado documento ou orientação. Isto é inaceitável para uma organização comunista que tem princípios e quer aglutinar e liderar o movimento de massas.

O oportunismo chafurda e prospera na dubiedade. Trocar posições como se troca de roupa, aplicar seletivamente as suas políticas (lembremos do “centralismo seletivo”) é absolutamente típico dessa posição, como o velho Vladimir nos adiantou a mais de 120 anos atrás, no seu “O que fazer?”: “É difícil caçar um oportunista com uma simples fórmula, porque facilmente assinará qualquer fórmula e com não menos facilidade a renegará, porque o oportunismo consiste precisamente na falta de princípios mais ou menos definidos e firmes.

Para falar em exemplos, vamos começar pelas resoluções congressuais sobre a questão agrária: temos resoluções que se conflitam, como por exemplo a 47 e a 56. Na primeira, se especifica como imediata a luta pela reforma agrária nas periferias da cidade, na segunda essa “prioridade” já se amplia para o proletariado rural e “os trabalhadores e as trabalhadoras sem-terra, camponeses ou pequenos/as proprietários/as, microagricultores/as ou de subsistência, além de quilombolas, ribeirinhos/as e indígenas organizados/as em comunidades específicas que vivem da terra”. Com tantas áreas prioritárias, sem apresentar pautas realmente concretas para a maior parte, não poderíamos basear nenhum trabalho efetivo nestas resoluções.

Além das vaguezas sobre organizar setor x ou y, o PCB apresenta como propostas “concretas” apoiar a reforma agrária, pelos títulos de propriedade de pequenos lotes de terra sem direito de revenda e o impulsionamento da agroecologia, a fim de não “reproduzir o padrão capitalista”. Há nisso tudo, claramente, muitas confusões.

Para ficar em poucas delas: se reconhecemos a existência de um proletariado rural, que trabalha em grandes propriedades produtoras de commodities, balizadoras da luta do campo, então a proposta de repartição destas propriedades em pequenos lotes é absolutamente reacionária! A tarefa aí, para Lênin e para Marx, seria submeter estas grandes propriedades à nacionalização e ao planejamento coletivo. Sem falar que os conflitos no campo são uns dos mais brutais do país, com potenciais de luta e organização da revolta sem iguais. Vamos nos limitar, na luta imediata, a defender reforma agrária nas periferias das cidades e agroecologia? A própria realidade nos impede de parar por aí.

Sobre a agroecologia, se idealiza isto de tal maneira que se atribui a ela a potencialidade de interromper o padrão de produção capitalista e o potencial para ser a base de um modo de produção! É absurdo, no marxismo, pensar que uma técnica de produção, mesmo que seja de pequena produção ou seja ambientalmente consciente, é, por si, anticapitalista ou revolucionária. E, dedicando três parágrafos inteiros (mais do que para a questão negra) para esta proposta reformista, inclusive encaminhando campanhas nacionais nesse sentido, só podemos tirar a conclusão de que resulta de uma nivelação por baixo do programa. Para não encaminhar nenhuma proposta socialista, estas tão polêmicas e que estimulam os ânimos e as discussões, melhor suprimir tudo.

Outra contradição importante: O partido, na resolução 69, enfatiza a importância dos coletivos porque “é preciso lutar pela ampliação e efetivação dos direitos conquistados constitucionalmente, assim como o combate a todas as formas de opressão, discriminação e assédios, propondo um programa educacional/cultural capaz de mobilizar trabalhadoras, trabalhadores e camadas populares”, que além de ser uma perspectiva reformista, entra em contradição com os acúmulos revolucionários dos coletivos, que em seu trabalho tendem a apontar a revolução socialista. É difícil tentar situar a luta contra estas formas de opressão na proposição de programas educacionais e culturais.

Os coletivos não podem ser meros acessórios culturais do Partido, para validar a sua existência e impulsionar o alcance do mesmo. As áreas de atuação dos coletivos são junto aos setores despossuídos e oprimidos da sociedade, sendo eles tão ou mais vitais para o processo revolucionário no Brasil que o trabalhador estereotípico, sindicalizado, branco, homem, macho.

Creio que esta crítica, bem como às suas manifestações práticas, estejam bem desenvolvidas, em especial na tribuna do camarada Leonardo C.R., mas vale deixar registrado aqui.

Na seara internacional, como exemplo mais gritante, temos a “Declaração Política sobre a Crise Militar na Ucrânia”. Essa declaração, de fevereiro de 2022, é dúbia desde o título: O que é uma “crise militar”? O Google aponta como primeira resposta a renúncia em série de militares de alta patente em 2021, no governo Bolsonaro.

Realisticamente, é fácil arguir que “crise militar” quer dizer guerra. Mas, ao mesmo tempo, os oportunistas entre nós lerão aí as tais “contradições interburguesas” que “os comunistas devem explorar” (quem nunca escutou isso para justificar o mais pobre oportunismo?). Além disso, logo na primeira linha de texto, a guerra é caracterizada como “operações militares especiais”. A quem interessa que um Partido Comunista reiteradamente se furte da caracterização objetiva dos fenômenos por uma caracterização altamente ideológica e, francamente, exculpante?

A nota segue, em tom declaratório, repetindo todo o discurso militar russo em justificativa para a invasão: a causa da guerra é o potencial ingresso da Ucrânia na OTAN, “o que colocaria em risco a segurança da Rússia”, o reconhecimento do governo russo da independência de Donbass seria “forma de proteger a população que vinha sendo bombardeada por nova onda de ataques do regime ucraniano”, e de resto repetindo fio a fio as justificativas ideológicas da guerra, sem nunca se preocupar em desvelá-las. Faz, além disso, um esforço monumental para não caracterizar o papel da Rússia nesta guerra, apesar de admitir que há um interesse da burguesia do país na guerra.

É uma declaração política que não qualifica a guerra, nem busca elucidar as suas determinações, bastando-se a repetir o discurso russo e “multipolar”, encobrindo-se aqui e acolá com alguma “concessão” ao marxismo. Derradeiramente, vemos na conclusão do texto o seu descolamento da perspectiva revolucionária, ou melhor, sua adesão à perspectiva reformista. No seu parágrafo de conclusão, a Rússia, a agressora militar, não é mencionada.

E o derrotismo revolucionário? Transformar a guerra imperialista em guerra civil revolucionária, alguém? Estas ideias todas tentam resumir em “luta independente” da classe trabalhadora. Independente de quem, se toda a luta proposta ao final é pelos interesses da burguesia russa e manutenção da mentirosa “paz mundial”?

Alguns poderão dizer: mas leia o final da declaração! Diz lá, “reforçamos ainda a importância da unidade dos trabalhadores russos e ucranianos para a superação do capitalismo e a construção do socialismo em seus países, e dos trabalhadores de todos os países para seguirem no rumo da revolução socialista em todo o mundo.”

De fato, diz. Mas este é justamente o problema! Não podemos continuar usando o socialismo como adereço para finalizar os textos. Precisamos propor o socialismo integralmente, em palavras e em feitos. E não participar de Plataformas anticomunistas.

Vamos resumir: o Partido opera nivelando as suas posições por baixo, revelando em cada texto um cabo de guerra entre as diversas frações que operam dentro dele. Nas resoluções, notas políticas e orientações, sempre há um grande espaço para confusão e dubiedade, para garantir pela vagueza que cada grupo de dirigentes possa aplicar a sua política - embora unidos agora contra a militância comunista, o PCB tem importantes diferenças de linha em cada CR. Com esta cobertura, o federalismo se desenvolveu e os trabalhos foram entravados. O oportunismo é sempre favorecido pela incerteza, dubiedade e falta de princípios.

Em face deste problema, é preciso afirmar: Temos o direito de errar! Em verdade, temos o dever de errar!

Preciso conceder que esta frase pode parecer um pouco estranha. Mas vamos destrinchar o significado. Meu avô costumava dizer que temos dois métodos para aprender: o método inteligente e o método burro. O método inteligente é aprender pela experiência dos outros, pela leitura, pela observação. O método burro, vocês podem imaginar, é tendo a amarga experiência de errar por si mesmo.

Nós, comunistas, temos muita sorte em um aspecto - temos muita experiência acumulada. Desde a inauguração do Partido, em 1848, com seu Manifesto, os comunistas não se furtaram de uma única luta! Disto, precisamos tomar lições científicas para nos ajudar, e um bom balanço e apreensão do marxismo, estimo, deve adiantar nossa revolução em uns 50 anos, isto se não for condição sem a qual não haverá revolução.

Contudo, nem tudo é ler e pensar. Muitos dos desafios que enfrentamos, senão a maioria, são particulares de nossa época e local. Para isso, camaradas, não há fuga. Precisamos seguir pelo método burro. Somente a coleção mais corajosa, mais coletiva e mais produtiva de erros pode nos apontar os caminhos da revolução no mundo de hoje.

Acho que agora posso dizer o que a palavra errar quer dizer neste texto. Quer dizer ousar. Ousar lutar é ousar vencer, mas o que não está escrito aí é a possibilidade de fracassar.

Precisamos de posições e prática cada vez mais decididas, ousadas e bem-fundamentadas na nossa experiência e em nossa teoria.

Se temos um partido que não erra, não quer dizer que temos um partido que acerta. Quer dizer que temos um partido que receia ousar.

Daqui para frente, precisamos ter a coragem de tomar posições decididas. Para ter este tipo de política é necessário que sempre se preze por esgotar o debate, que se descubra exatamente o que cada posição significa, mas, ao final das discussões, escolher um caminho, sem margem para confusão, e segui-lo. Depois, se errarmos, vamos conseguir tirar lições muito mais profundas do erro, e maximizar o lado positivo e pedagógico dele. Se acertarmos, infinitamente melhor: teremos construído uma ação com máxima unidade, levado ela às últimas consequências, e adquirido um saldo político solidamente positivo.

Esta é uma perspectiva que precisamos ter em nossa nova cultura política.

Sobre mexer em tudo e não mudar em nada.

Faz-se necessária mais uma reflexão. Desta vez, sobre alguns caminhos que este movimento pela Reconstrução Revolucionária pode assumir e especialmente, os caminhos que não pode tomar.

Vamos lá: Todos aqui constatamos uma profunda crise no complexo partidário do PCB. Como ilustrei acima com alguns exemplos, esta crise não emana da má aplicação do estatuto ou de dirigentes moralmente corrompidos, mas emana de uma estratégia má construída (não obstante os melhores esforços de centenas, talvez milhares - ou milhões - de militantes), que implica em erros táticos de variados graus de profundidade, com seus reflexos organizativos.

É natural que, no momento inicial, as críticas se voltem para estas mediações que fazemos com o programa comunista. É o que está imediatamente ao nosso alcance, é com o que lidamos diariamente, e é onde efetivamente se desenvolvem os conflitos. Mas, como Lênin adianta, é impossível separar estes três aspectos de forma mecânica:

“O oportunismo no programa está naturalmente ligado ao oportunismo na táctica e ao oportunismo em matéria de organização.” - Lênin, Um passo para a frente, dois passo para trás.

Ou seja, chegamos no impasse. Quebramos nossa organização em duas porque notamos grosseiros equívocos em tática e organização. Não podemos nos dar ao luxo de tentar resolver estas questões sem resolver, desde o princípio, o nosso programa. A unidade de comunistas que deve ser (re)fundada e repactuada só pode ocorrer em torno de novos princípios, que não são de forma alguma inéditos.

É hora de redescobrir a doutrina do marxismo revolucionário, aplicá-la com rigor nunca antes visto, nos desfazer de todos os preconceitos, lugares-comuns e confortos teóricos. Não podemos de nenhuma maneira colocar de lado a crítica impiedosa de tudo que existe. Abrir mão desse exercício crítico é abrir alas para o oportunismo. Não podemos seguir pensando, sem questionar, que o Brasil carece de uma etapa democrática, que a solução para todo o campo é a reforma agrária, que as lutas pautadas em identidades são secundárias, que o “mundo multipolar” é interessante ao proletariado, que o Partido é uma organização nacional e nacionalista, que o bloco revolucionário é uma panaceia geral de todos os “trabalhadores”, entre mil e uma ideias que são facilmente difundidas e aceitas (exatamente por serem lugares-comuns confortáveis) dentro da esquerda, que no final vão desembocar no etapismo, no imediatismo e mais uma vez, parir o oportunismo em uma organização comunista.

Vamos fundo, camaradas. Vamos aproveitar o momento de crise, que há muito já é inevitável, e fazer o mais hercúleo trabalho de crítica e autocrítica da história do comunismo!

Ousar lutar, ousar vencer!