'Por um centralismo antropófago: a crise no PCB e a relação entre o partido e os coletivos' (Leonardo CR)
Longe de querer implicar em algo como um “mito do bom selvagem” – afinal a antropofagia e o xamanismo se implica em sociedades guerreiras, como extensão da guerra e da violência –, penso aqui na necessidade de tomar o pensamento indígena a sério, enquanto filosofia, assim como fez Mariátegui.
Por Leonardo CR para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
A crise que estalou no seio do nosso partido atingiu suas atuais proporções em virtude de dois grandes encontros. Por um lado, a situação política internacional, marcada pelo fim do período de hegemonia do capitalismo norte-americano e o consequente acirramento de disputas inter-imperialistas – das quais a guerra da Ucrânia é apenas uma das mais recentes e explícitas – sobredeterminou a nova conjuntura política brasileira, em que o governo Lula III volta a disseminar ilusões democráticas, nacionalistas e desenvolvimentistas, ao deslocar a gringofilia aberta do Bolsonarismo pela possibilidade de uma nova política externa alinhada aos BRICS e aos países vizinhos sul-americanos – parte integrante, desde os anos 60, da estratégia sub-imperialista do capitalismo brasileiro. Essa oscilação faz a partes da “esquerda” crer no potencial de setores da burguesia brasileira de continuar em uma marcha “civilizadora”[1], na qual também as massas trabalhadoras e oprimidas teriam algo a ganhar, enfim realizando o mítico ideal de “nação”, que, segundo alguns, estaria ainda hoje irrealizado no Brasil; por um passe de mágica, os cabeças do “neoliberalismo” e do “fascismo” de ontem, como Geraldo Alckmin, passam para o lado da burguesia nacional progressista e democrática. Não é preciso usar esses nomes para que esse conteúdo se torne evidente nos que ainda apostam em formas, mais ou menos mediadas, de reboquismo com o PT e o campo democrático-popular de modo geral.
Essa estratégia política oportunista e suas relações com o frentismo popular e outras concepções rebaixadas da prática política comunista merecem detida análise, mas aqui quero me voltar para o outro dos grandes encontros que alimentam o fogo da crise no PCB. Ao conteúdo político da atual disputa somou-se também uma crise organizativa, ou formal. É verdade que a primeira tática dos oportunistas e controleiros, desejosos de calar a disputa política, foi enfatizar tão somente o aspecto organizativo, de relações de força: queriam dizer que, por trás do descontentamento de parcelas substanciais da militância, não existia mais do que a ambição pessoal de uma ala para tomar o controle do partido. Não vale a pena perder mais tempo refutando essa leitura tão típica de toda historiografia burguesa – qualquer um que já leu qualquer coisa, por exemplo, sobre a Revolução Cultural na China sabe que os historiadores burgueses tentam se desfazer da tarefa complexa de explicar o movimento de classe do proletariado colocando toda a ênfase em disputas de ego entre Mao Zedong e Liu Shaoqi e suas respectivas alas do PCC. Na verdade, a crise no partido, bem como a política de modo geral, escalou alternando sua ênfase entre questões organizativas e políticas até o ponto de, em seu movimento pendular, mostrar sempre mais o conteúdo real da crise. Se o estopim foi a denúncia política da participação de Eduardo Serra nos encontros da PMAI, seguiu-se um momento que tornou claro o estado decrépito do centralismo no PCB, com processos disciplinares irregulares, expulsões e “desrecrutamentos”. Mais ainda, tornou-se bastante flagrante um descompasso, tanto de funcionamento prático quanto de avanço teórico-programático, entre o partido e sua direção, de um lado, e os coletivos partidários, ao ponto destes se tornarem não apenas focos de descontentamento das bases militantes, como também alvos do ressentimento da direção partidária, cujos membros não perderam oportunidades para atacar, menosprezar e desdenhar, sobretudo em relação à UJC; ao mesmo tempo, ficou ainda mais evidente o quanto importantes, fundamentais, formulações produzidas pelo acúmulo prático e teórico dos coletivos não são absorvidas pelo partido, ficando barradas em seus coletivos – penso, principalmente, em como o partido trata as elaborações do CNMO, do CFCAM e do coletivo LGBT Comunista. Aproveito para agradecer a todos os camaradas que estiveram presentes na plenária de 12 de agosto em São Paulo, pois devo a eles grande parte das reflexões a que me dedico neste texto.
Estariam equivocadas, porém, análises que tentassem dizer que toda a crise seria evitável caso, apenas, o atual CC tivesse sido mais “democrático” e aberto ao diálogo. Assim como também estariam equivocados os que tentassem explicar essa distorção do centralismo apontando, tão somente, a composição social do atual CC – em maioria acadêmicos com estabilidade de cátedra, brancos, sudestinos e homens. Verdade, nenhuma dessas duas coisas é por acaso, mas eu gostaria de contribuir ao debate pedindo para que interpretemos de outro modo a relação entre organização, forma, e programa, conteúdo. Para isso, seria necessário seguir algumas etapas do raciocínio: primeiro, devemos pensar de onde o partido tira seu conteúdo, seu programa, que é, também sua razão de existir; segundo, de onde tira sua forma, ou melhor, se é preciso que tome uma forma, que relação necessária existe entre a forma e o programa; terceiro, como se deve alterar a forma de acordo com a realização desse programa em cada momento concreto, em outras palavras, qual é o papel da disputa interna e da crise do partido; e, finalmente, em quarto lugar, o que diz a atual crise no PCB sobre a relação entre nossa forma organizacional e o programa comunista que os revolucionários precisam avançar em nossa situação concreta. O foco do presente texto é o último ponto, questão bastante complexa, mas da qual quero tratar a partir de um assunto em específico: o da relação entre o partido e seus coletivos. Sobre as três etapas anteriores, darei apenas algumas breves indicações e na medida em que são pressupostos necessários do que realmente desejo abordar.
1. O partido não basta a si mesmo. Não é mais que a organização daquela minoria revolucionária ativa que se constitui na seção mais avançada do proletariado. Mas disso não decorre que seja de pouca importância; ao contrário, é a formação de um partido que indica a maturidade da classe, seu potencial de subjetivação. A classe, enquanto mero objeto de pesquisa sociológica ou demográfica, não é o que importa; mas, sim, quando essa massa de indivíduos vai além de uma massa de indivíduos para ganhar um significado histórico, dado por sua posição estrutural dentro do modo de produção capitalista e entre as conflitantes tendências imanentes a esse modo de produção. Daí que a classe propriamente dita não existia exatamente no Antigo Regime, em que o estatuto jurídico do estamento incluída no Terceiro Estado tanto a burguesia quanto os despossuídos. O desenvolvimento capitalista quebrou essa unidade e o proletariado precisou romper paulatinamente com tudo que o prendia ao discurso do Terceiro Estado, ao programa da revolução burguesa, ao programa de 1789. Foi a própria classe que, em luta, dentro do desenvolvimento do modo de produção capitalista como um todo, que estimulou a formação de seu partido. Para usar uma terminologia introduzida por Marx – numa carta de 1860 a Ferdinand Freiligrath -, esse é o próprio processo em que se anuncia o partido histórico, que é o próprio programa, o “destino” necessário da classe correspondendo aos seus interesses objetivos dentro das contradições estruturais do modo de produção, bem como todos aqueles setores, os mais avançados, que lideram em cada luta parcial e particular, que são a ponta de lança capaz de levar a classe através de cada elo, de cada degrau da luta em direção à realização desse programa. Com o conceito de partido histórico, o conceito de partido formal estabelece um par muito útil: ele corresponde às organizações efêmeras, específicas e particulares que são conscientemente construídas por militantes da minoria ativa da luta de classes com o objetivo de dar um nível mais elevado de organização às lutas. Ao mesmo tempo que o programa, o partido histórico, foi pré-condição para a organização do partido formal, o partido formal, a seu turno, não é de pouca importância, mas constitui pré-condição para a realização do programa em novo nível, construir o partido formal se torna uma tarefa tão fundamental quanto incontornável de todos os militantes comunistas a partir de certo estágio de maturidade da luta independente do proletariado.
2. Por óbvio, não há nunca uma identidade imediata entre partido formal e partido histórico. A luta do militante do partido comunista é, justamente, para atingir essa identidade: construir um partido formal capaz de abarcar em si o partido histórico e avançar o programa proletário. Disso decorre uma variedade de postulados importantes para a organização comunista, como, por exemplo, a prescrição mais absoluta da atitude auto-proclamatória – que ganha enorme relevo no nosso partido diante da luta contra o pecebismo/partidismo – e do sectarismo – entendido aqui não como a intransigência programática e a defesa da independência e da hegemonia classistas, mas como a mentalidade de círculos e gangues que tenta substituir o ponto de vista unitário da classe. Também decorre, disso, que o centralismo do partido comunista deve ser entendido em termos próprios, com o que quero dizer que não basta a explicação do “centralismo democrático”, atribuído a Lênin, que se resume a “ máxima democracia interna e máximo centralismo na atuação externa”[2]. Na verdade, uma tal exposição do centralismo comunista está equivocada em ambos os seus polos, pois nem a “democracia” é máxima ou uma questão de princípios para comunistas, nem o “centralismo” para fora é, em todos os casos e circunstâncias, inviolável. Para começar por este último aspecto, devemos entender que de modo algum é uma espécie de pecado que comunistas, diante da deriva oportunista da organização formal a que pertencem, formem uma fração para defender o programa e levar adiante a luta proletária; se o partido formal dá as costas para o partido histórico, então que os militantes comunistas deem as costas ao partido formal. Mais ainda, o problema do fracionismo não é uma questão acidental ou contingente que poderia ser resolvida pela supressão burocrática e administrativa de discórdias que passam a atingir ponto programáticos e fundamentais: a fração é um sintoma. Ao que se deve também adicionar: nunca há apenas uma fração, quando uma se constitui, é também porque contra ela se defronta uma outra fração. Se uma crise partidária atinge o ponto do fracionismo, essa desagregação só pode ser resolvida organicamente, pelo lento restabelecimento de ambas (ou mais) frações num partido orgânico e centralista que tem como fundamento de sua unidade não a adesão mecânica a certos princípios ou regras estatutárias, mas a própria atividade prático-teórica conjunta de todos os militantes, com fins a reconstituir um partido em que todos se dissolvam como camaradas, em laços de atuação conjunta.
Quanto à democracia, tampouco ela é a panaceia que certos setores que ainda se dizem marxistas querem fazer parecer: assim como não se pode decidir democraticamente, pelo voto, se a Terra é plana ou não, tampouco seria permissível que o partido decidisse pelo voto aderir ou não ao programa comunista e ao movimento real do proletariado; a causa disso é múltipla, mas, em primeiro lugar, porque o partido é, sim, a vanguarda da classe, mas pertence à ela, encontra seu fundamento apenas fora de si mesmo, no movimento real imanente à sociedade como um todo e ao movimento de classe do proletariado. A democracia, enquanto mecanismo, é ela mesma acidental, no sentido que é adotada justamente onde não há o centralismo orgânico do partido, onde a fragmentação que caracteriza a sociedade burguesa como um todo infecta, também, o partido formal. Enquanto fenômeno histórico específico, a forma democrática é indissociável da sociedade burguesa e pode ser mesmo definida como forma política correspondente à forma jurídica do sujeito e à sociedade da produção generalizada de mercadorias; inevitável que a crítica marxista da democracia seja forçada a usar, acidentalmente, da forma democrática, mas com o objetivo de pôr fim a ela mesma. Não nos esqueçamos de que, em 1917, quando Lênin argumentou que o partido não deveria se chamar “social-democrata”, ele disse: “A segunda parte do nome de nosso partido (Social-Democrata) também está cientificamente incorreta.
Democracia é uma forma de estado, enquanto nós, marxistas, somos contrários a qualquer forma de Estado”[3] e depois diz ainda que democracia sempre implica uma forma de dominação do povo, enquanto, mesmo na Rússia soviética em seus anos iniciais, ele dizia que a democracia já estava deixando de ser democracia, pois o povo armado não pode dominar a si mesmo. É fundamental que os marxistas revolucionários retomem com toda a força a crítica da democracia, mais do que apenas da democracia “burguesa”[4].
3. Assim como a dialética dissolve todas as definições escolásticas e todos os esquemas estáticos, também o centralismo comunista não pode ser definido em regras estatutárias, normativas de caráter legislativo. Nenhum estatuto é grande o bastante para conter o movimento real. A sociedade burguesa, a qual ainda pertencemos e na qual estamos mergulhados, não tolera a transparência e o planejamento consciente, inclusive no sentido de que é inevitável que todos, indivíduos que aderiram voluntariamente a uma organização política, tragamos para dentro desta a duplicidade e a cisão que caracterizam o sujeito na sociedade burguesa, assim todas as tentativas – marcas da ideologia burguesa – de planejar racionalmente a política por mecanismos de todos os tipos, como faz a “ciência” política burguesa, não passam de ilusões, como todo o constitucionalismo. As crises que, necessariamente, devem afligir não apenas a sociedade burguesa como um todo, mas também o partido comunista nela inserido, não podem ser resolvidas senão por dentro delas mesmas. Isto é, devem atuar as relações de força e de posições da classe e sua capacidade de encontrar elementos subjetivos que avancem o programa objetivo da classe. Mais ainda, para o partido comunista, toda crise deve necessariamente se tornar uma oportunidade para aprofundar sua clarificação do programa comunista e entender o que falta para atingir a identidade entre partido formal e partido histórico. Assim, a crise é um teste pelo qual deve passar o partido; verdade, nele pode ser destruído e desaparecer, mas também pode sair dele muito mais forte do que antes. A crise é um momento absolutamente necessário que grita que a estrutura formal, organizativa, do partido não está a altura de suas tarefas objetivas para avançar a luta do proletariado na via revolucionária. Sei que é inevitável angustiar-se diante da desagregação de um partido ao qual se dedica toda uma parte de nossas vidas, devemos, portanto, fazer com que essa crise se resolva por dentro dela mesma justamente para que saiamos dela com uma ferramenta da luta de classes ainda mais afiada do que antes. Como fazer de uma pedra uma ponta de lança sem lascar essa mesma pedra?
4. Cobertos os pressupostos em termos gerais, posso finalmente esclarecer a questão imediata a que tudo isso se reporta: a da estrutura do complexo partidário, ou da relação entre o partido e seus coletivos.
A estrutura do partido como órgão central ao qual se ligam os coletivos “especializados” faz frente a uma questão da maior atualidade e na qual os comunistas brasileiros desempenham um papel histórico enorme; dar a máxima atenção a ela e seguir avançando é mais do que uma possibilidade, é um dever que temos, enquanto militantes comunistas, para com o movimento proletário mundial, ao qual devemos oferecer nossos aportes. A questão a que me refiro é a tomada de consciência de outras modalidades em que o proletariado se apresenta heterogêneo. Se em O que fazer?, Lênin abordava também a heterogeneidade da classe fragmentada por setor, indústria, empresa, colocando o partido como órgão no qual a consciência trade-unionista e economicista, ligada às lutas parciais, era superada na consciência política de classe, a proliferação de lutas levadas em frente por novas formas de subjetivação, sobretudo nos últimos 60 anos, força que todos os comunistas levem muito a sério a heterogeneidade que se apresenta nas modalidades de raça, gênero, sexualidade, tanto quanto, no passado, levou-se à sério a fragmentação econômica e nacional (assunto no qual, também, Lênin foi um dos grandes, sendo seu tratamento das lutas de libertação nacional e do direito dos povos à auto-determinação uma herança crucial para nós).
Todos os chauvinistas que se agarram às tosquices do passado, esses que enxergam em toda discussão sobre sexualidade “pós-modernismo”, que acreditam que levar em frente a luta contra a supremacia branca seria “dividir a classe”, que acham que o movimento LGBT seria uma “importação ianque”, esses não necessitam de refutação pormenorizada aqui, não é para eles que escrevo. A discussão que quero pautar não é uma tentativa de, mais uma vez, defender a legitimidade dessas lutas – que creio ser critério mínimo para ser um comunista hoje –, mas, sim, uma contribuição para a discussão, entre nós, sobre nossa organização e se ela corresponde às tarefas objetivas que temos diante de nós. Para tanto, o que segue será em duas etapas: a) a classe, b) o partido. Para evitar que o texto se tornasse excessivamente longo, suprimi citações e referências, me atendo ao conteúdo, assim como explicações e exemplos detalhados, assim, peço desculpas por um certo nível inevitável de densidade.
a)
I. Na acepção marxiana, o proletariado é a absoluta negatividade da sociedade burguesa. Ao contrário dos estamentos e castas pré-capitalistas, a classe na sociedade burguesa é a dissolução de todos os elementos positivos que a localizavam. O que definia o proletariado era sua situação de despossessão, de ser duplamente livre – nem servo, nem proprietário – que o obriga a vender sua força de trabalho.
II. Historicamente, porém, formulou-se também uma identidade da classe operária em termos sociológicos e culturalistas, deu-se a ela uma positividade. Isso remonta às origens do antigo movimento operário, que mais que uma classe, constituiu-se em casta separada do mundo burguês por seus sindicatos, partidos, associações, clubes, arte, até roupas distinguiam o operário – seu boné de viseira proverbial - do burguês.
III. Mais do que apenas cultural, essa positividade era o signo sob o qual o proletariado se tornou sujeito. O fetichismo da mercadoria implica na reificação de relações sociais em relações entre coisas, mas, ao mesmo tempo, reverte na constituição de sujeitos, subsumidos em uma forma abstratamente universal, do sujeito de direitos, que leva a mercadoria ao mercado. No mesmo processo em que a classe operária gradualmente conquistou direitos e integrou-se à sociedade burguesa, ela também unificou-se sob um Sujeito coletivo, pré-condição, justamente, para sua integração ao Estado burguês. Foi assim que se expandiu o sufrágio universal, constituíram-se partidos operários, criou-se o direito do trabalho, as convenções coletivas, estatuiu-se o direito à greve. Essas conquistas, todavia, tornaram-se também armadilhas: a classe operária integrada não era o proletariado revolucionário; essa classe, dotada de uma positividade, não era a negatividade em marcha de que falava Marx.
IV. A fórmula de Marx desde sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel era de que o proletariado deveria abolir a si mesmo, processo no qual nega o todo da sociedade. A classe operária integrada, por outro lado, não podia ser essa negatividade absoluta, tinha agora um ídolo, o Trabalho. O Trabalho estava para a classe operária como o Capital estava para a burguesia. Ao invés de ser visto justamente como a substância do valor, pelo qual o proletariado se vê explorado no modo de produção capitalista, o Trabalho tornou-se um símbolo moral, ontológico. Para Marx, a condição proletária, o trabalho, era a negação a ser negada, pois a relação entre capital e trabalho era interna, o capital é trabalho morto, mas ainda trabalho; para a social-democracia, a relação entre capital e trabalho passou a ser externa: acreditou-se ser possível abolir o capital sem abolir o proletariado, criar um mundo à imagem do proletariado.
V. A classe operária, nessa época ainda enxergando a si mesma como extensão do discurso do Terceiro Estado, de 1789, do jacobinismo e do republicanismo radical, herdara também a metafísica do Progresso, a crença na evolução linear, na marcha civilizatória. A isso se somava também o otimismo que definia a social-democracia oitocentista, afinal, eles acreditavam que o progresso do capitalismo levaria, mais cedo ou mais tarde, ao socialismo, invariavelmente; quanto mais indústria, mais proletariado, mais tecnologia, e, se o proletariado seria a maioria numérica e a burguesia estava aceitando expandir o sufrágio, por que não até mesmo um socialismo pelo voto? Quanto mais a social-democracia e o velho movimento operária acreditavam na possibilidade de integração e mantinham esse otimismo, mais capturados estavam no Estado burguês: nacionalismo, chauvinismo, eleitoralismo, etc, todos estavam interligados. É nessa época que surge a expressão aristocracia operária, tão importante, por exemplo, para Lênin, para explicar o revisionismo, o centrismo e o oportunismo na social-democracia alemã.
VI. Como projeção da própria forma-sujeito típica da sociedade burguesa, também esse Sujeito coletivo sob o qual se unificou a classe operária se formou pela exclusão e pela dissociação. O Trabalho, o grande signo que a identificava, isto é, o Trabalho Abstrato, é resultado do processo global de produção, dentro do qual o proletariado é desde sempre desigual, segmentado e fracionado. Há trabalhadores mais e menos especializados, com mais ou menos direitos, com maior ou menor formação e salários, há os trabalhadores produtivos, dentro do ciclo de valorização do capital, e os improdutivos, não menos proletários; há o trabalho que foi historicamente designado como masculino e o trabalho historicamente designado como feminino – o trabalho doméstico, reprodutivo, de cuidado – e, por isso, as mulheres podiam ser excluídas da forma-sujeito. Sempre houve as franjas do proletariado que eram integradas à forma-sujeito de forma muito desigual e precária e, portanto, podiam ser superexploradas: negros, imigrantes, criminalizados. Havia ainda aqueles cuja integração na forma-sujeito era bastante condicional e podia ser revogada, como ocorreu com os judeus, quando a sociedade burguesa começou a naufragar na catástrofe gerada em seu próprio seio. Foi graças a tantas exclusões, dissociações e segmentações que formou-se uma imagem típica da classe operária como homens, brancos, de colarinho azul, com macacões e capacetes, de grosso bigode – essa imagem ou mitologia, por mais ideológica que foi, não foi menos real a seu modo, ideológico.
VII. Se essa classe operária integrada surgiu em finais do século XIX, consolidou-se e atingiu uma estabilidade relativa nas três décadas de glória do fordismo e do Estado de Bem-Estar Social, entre 1945 e 1975. A enorme crise capitalista de 1968-1973 e a consequente reestruturação global do modo de produção capitalista, entretanto, dando abertura ao “neoliberalismo”, “pós-fordismo”, dominação real do capital, completou esse processo de integração decompondo a classe operária. A positividade que mediava a integração do proletariado ao Estado burguês, não sendo mais sustentável diante da crise de lucratividade e do velho imperialismo europeu, foi descartada e a nova modalidade passou a ser integrar a cada trabalhador individual como sujeito. O velho operário começa a desaparecer, surge o “microempreendedor individual”, a empresa de si mesmo. Os sindicatos encolhem, o direito trabalhista e social é desmontado, partidos que antes haviam aglomerado multidões, colapsam e desaparecem. Ao mesmo tempo, o desaparecimento da Grande Identidade do Trabalho e a aparente exaustão das relações baseadas na mercadoria para dar coesão social implicou na proliferação de lutas sob novas identidades: aquelas franjas do proletariado que haviam sido sempre dissociadas, excluídas, submetidas e que, portanto, tinham uma necessidade imediata e vital de lutar, deram seguimento a suas lutas segundo suas modalidades específicas de exploração: mulheres explorada enquanto mulheres lutando enquanto mulheres, negros explorados enquanto negros lutando enquanto negros, e assim por diante. Compreender essa transição é compreender o mundo em que vivemos e fingir que podemos simplesmente voltar ao velho movimento operário é uma utopia reacionária. A luta de classes precisa avançar em sua nova fase.
VIII. Essa nova fase é um novo ciclo de lutas. A cada ciclo de lutas corresponde uma composição de classe. Relação complexa entre o proletariado enquanto objeto, força de trabalho para o capital, em distribuição dada dinamicamente pela composição técnica do capital, e a possibilidade de subjetivar o proletariado em uma composição política. É característico de toda ideologia pressupor uma unidade originária: o fascismo pressupõe a unidade nacional, racial, familiar, pressupõe uma ligação ctônica entre um povo e uma terra. A ideologia iluminista burguesa pressupôs uma unidade originária do Sujeito em vários níveis, a começar pela unidade da mente, da psiquê, mas também incluiu, em sua variante do movimento operária, a crença em uma unidade originária da classe. A unidade, na verdade, é um produto, ela deve ser construída na prática e na luta mesma. O proletariado em sua unidade original nada mais era que uma categoria vazia, estatística, que serve ao capital; o proletariado enquanto agente político, que luta, é, ele mesmo, produto de sua própria luta, ele se forma na luta e, conforme luta, adquire uma forma. Se a imagem da velha classe operária integrada, monolítica, de que falo surgiu e teve efetividade por tantas décadas, tampouco foi por mera propaganda ideológica: a ideologia é real justamente porque expressa uma certa relação com as relações sociais; no período fordista, a forma de arregimentar os trabalhadores, concentrá-los em fábricas, organizar a divisão do trabalho, tudo isso produzia um certo perfil de proletário que se refletia no sujeito coletivo que unificava a classe. É esta a relação entre a composição técnica do capital, a divisão do trabalho que ela impõe ao operariado e a possibilidade do proletariado atingir certas formas organizativas específicas a sua composição de classe. As lutas das mulheres, dos trabalhadores negros, das pessoas LGBT, dos criminalizados e medicalizados, não são meros acessórios laterais de um Sujeito universal e central que seria o Proletário ideal – homem branco, europeu, cisgênero, heterossexual; o proletariado é formado pela luta de todas as suas partes em uma composição que transforma a si mesma por sua luta, encontrando diferentes formas de organização e estabelecendo relações desde o menor nível – “espontaneidade” não existe propriamente, mesmo na mais súbita das greves, já há entre os trabalhadores uma forma de organização “micropolítica”, mas, claramente, conforme se sobe o nível de complexidade social, mais difícil é organizar a classe. Em verdade, em inúmeros momentos da luta de classes, a composição de classe se alternou e se sobredeterminou com fatores raciais, nacionais, de gênero, sexuais, e assim por diante. Não há exagero em dizer que, por exemplo, os mais determinados e radicais proletários da Europa, hoje, são os trabalhadores imigrantes; aqui, na América, do Sul ou do Norte, não é verdade que isso cabe aos trabalhadores racializados? Se eles são os mais determinados, não são a vanguarda?
IX. Aceitando-se que a unidade de classe só pode ser construída na prática segundo uma composição de classe atual e que retornar a um momento ultrapassado do movimento operário seria uma utopia reacionária, torna-se necessário pensar como pode surgir uma unidade de classe hoje que não seja o mesmo antigo Sujeito abstrato que tornou a classe operária em apêndice do Estado burguês. Uma tal unidade só poder ser negativa. Isto é, só podemos atingir tal unidade pela negação de tudo que nos divide, mas tudo o que nos divide é justamente tudo aquilo que nos constitui enquanto sujeito e enquanto proletários; o proletariado, como dito, só existe em sua fragmentação, em concreto, como proletário negro, proletária mulher, proletário judeu, proletário homossexual, etc. A unidade portanto só pode ser como negação simultânea e combinada da negação da condição proletária, recusa do trabalho que nos explora, e, por isso mesmo, negação da supremacia branca que racializa, do patriarcado e da dissociação de gênero, da norma cisheterossexual, da família burguesa em somos pela primeira vez inseridos na ordem ideológica, definidos num ponto da reprodução social capitalista. Em certo grau, o que se exige, portanto, é a generalização do princípio bolchevique, comunista, do derrotismo revolucionário: o comunista branco deve trair a branquitude, o comunista homem deve trair o patriarcado, o comunista hétero deve trair a norma heterossexual. O perigo de abraçarmos nossas identidades, que tornam possível nossa integração à ordem capitalista, como ocorreu com a classe operária, também aparece hoje em outras formas: a nova onda de feministas liberais que se agarram à identidade de mulher como pseudo-comunidade, para excluir pessoas trans, acabam até mesmo reafirmando essencialismo de gênero e tudo contra o que as primeiras feministas haviam lutado. Da mesma maneira, há uma razão lógica interna para que Garvey tenha acabado fazendo acordos com a Ku Klux Klan. Ao contrário do que alguns ultrapassados da velha esquerda gostariam de fazer parecer, isso não é novo, não é típico apenas das “novas identidades”: parte integral da propaganda nazista foi colocar os trabalhadores “respeitáveis”, sindicalizados e com melhores condições, contra os subproletário precarizados, tratados como “escória” – também ali atuava a pseudo-comunidade, nacional, racial, e até a pseudo-comunidade do Trabalho – “O trabalho liberta” estava no portão de Auschwitz. Mas, então, como criar a organização política da classe que fomente essa unidade de classe em seus setores mais avançados sem nem cair no niilismo reducionista (“esqueçam a raça e o sexo!”) nem ontologizar as identidades voltando a tratá-las como essências pré-sociais?
b)
I. O partido é uma forma irrenunciável, em que as várias seções da classe se unificam negando a si mesmas. Ao longo da história da luta do proletariado, as mais diversas formas de organização foram inventadas – trade unions, sindicatos, comitês de fábrica, conselhos operários, cordões industriais, clubes, sociedade secretas, grupos armados ou guerrilheiros, guardas vermelhas. O partido se destaca entre as formas por ser aquela em que as seções mais determinadas e avançadas de cada seção do proletariado se reúnem, onde se tornam um ponto de formação de consciência e, também, de organização de classe colocando i) acima dos interesses parciais de cada seção, o programa da classe como um todo, acima das nações, dos setores de trabalho; ii) acima das demandas imediatas do momento, o sentido histórico do movimento em seu conjunto.
II. O partido realiza essa função específica porque é um espaço de transcendência. Na medida em que os trabalhadores, em suas lutas parciais, lutam por interesses imediatos, essa etapa não é irreconciliável com a reconsolidação do modo de produção capitalista e, muitas vezes, pelo contrário, o reforça. As lutas por melhores condições de trabalho, por mais direitos, por aumentos salariais, por mais importantes e incontornáveis que sejam, reafirmam o proletariado em sua condição. O fim de uma greve é sempre o momento em que a classe, mesmo que a título de trégua, reafirma que é o proletariado, a classe que trabalha e é explorada. Esse tipo de luta é o que podemos chamar de imanente ao sistema. Toda luta precisa, necessariamente, começar sendo imanente. A luta de Lênin contra o economismo russo em O que fazer? era precisamente uma luta contra a superestimação das lutas imanentes, ou econômicas, em prejuízo da luta transcendente, ou política, pela qual a classe, por meio de seu partido, pode atacar toda a estrutura social capitalista. O momento histórico em que o proletariado pôde formar seu partido, ainda no sentido histórico da palavra – e não do formal –, foi quando elementos suficientes do proletariado já encontravam disposição (subjetiva) e condições (objetivas) para se engajar nas lutas com um sentido de transcendência. A princípio, reorganizando as lutas imanentes tendo sempre como bússola a preparação para a ruptura; depois, fazendo a ruptura. Sem o partido, essa evolução é impossível: mesmos os revolucionários conselhos operários foram incapazes de fazer a ruptura, na Alemanha em 1918, na ausência de um partido; é o partido que imprime às lutas imediatas a direção transcendente.
III. O partido é um espaço de transcendência porque é nele que cada seção da classe nega a si mesma. No partido, os elementos que passam a compor a vanguarda, que antes foram daquela minoria ativa em luta, precisam, necessariamente, não mais conduzir a luta tendo em consideração apenas os interesses parciais e imediatos. Isso significa dar o primeiro passo para a autonegação revolucionária do proletariado: negando as modalidades concretas em que cada um é um proletário: o proletário vidraceiro e o proletário pedreiro, no partido, tomam distância do espaço concreto e específico em que são submetidos ao capital: no partido, o pedreiro já não precisa mais ser apenas pedreiro. Isso se aplica, também, resguardadas algumas diferenças, ao problema central aqui discutido: a atual organização dos coletivos partidários encerra questões do movimento negro, do feminismo, do movimento LGBT nos coletivos – se essas questões não orientam o partido como um todo e se os militantes dos coletivos não tem poder de direção no partido como um todo, então não estamos realizando, efetivamente, o centralismo bolchevique, mas mantendo os coletivos como acessórios de um suposto Sujeito universal, hoje incorporado por acadêmicos brancos e homens. Em certo sentido, uma vez que a adesão ao partido é política e mesmo não proletários podem nele militar, a natureza do partido já é definida por essa pré-condição de que todos os que nele entram neguem a si mesmos na adesão ao programa comunista. Claro, alguém saído da pequena-burguesia pode ser comunista, negar isso seria o imediatismo típico do obreirismo, que, a seu turno, confunde a função de luta econômica do sindicato com a função política do partido. A função política é precisamente a da transcendência. Por esse motivo, o partido já anuncia, mesmo abstratamente, a emancipação, quando não mais o trabalho assalariado pesar em cima de cada ser humano.
IV. Essa autonegação no partido, ao criar um distanciamento, implica uma projeção da classe para fora, que é pré-condição para a classe, espelhando-se, reconhecer a si mesma. Lênin disse que a consciência política de classe é trazida de fora da classe; isso é verdade, se bem que alguns interpretaram isso como querendo dizer que o proletariado depende da pequena-burguesia. O que isso significa, de fato: que o proletariado depende do movimento global da sociedade, no desenvolvimento de todas as suas tendências contraditórias, práticas, políticas, econômicas e intelectuais. Quando o partido, por meio dessa projeção da classe, cria um distanciamento, isso permite à classe apropriar-se de todo esse desenvolvimento da totalidade da sociedade capitalista. De fato, é um “fora” da classe, mas um fora que retorna a ela[5], pois só com a constituição histórica do partido pode a classe, enxergando-se no programa e no partido, reconhecer-se e tornar-se sujeito político.
V. O bolchevismo, com a rejeição do partido de massas social-democrata, iniciou uma ruptura com o velho movimento operário; essa ruptura, todavia, não podia ser completa, dado que o bolchevismo ainda existia nos tempos do movimento operário. Hoje, com o desmantelamento da composição de classe fordista, da classe operária integrada e seu culto do Trabalho, uma transformação necessariamente deve ocorrer. O partido bolchevique ainda era um partido do Trabalho, um partido para emancipar o trabalho do capital. Não era um partido para abolir o trabalho. Ainda era o partido de um Sujeito coletivo, abstrato herdado do velho movimento operário. Pensar na construção do partido comunista hoje, após a reestruturação de 1968-73, implica pensar na construção de um centralismo sem Sujeito, de um universalismo sem universal. Se o Trabalho era o universal positivo que unia todas as diferentes seções da classe, hoje o que unifica as diferentes seções da classe é justamente um furo, um espaço vazio, uma negatividade.
VI. Pensar o universalismo sem universal é rejeitar tanto o universalismo abstrato iluminista que com seu Sujeito abstrato colocava o homem branco europeu como ponto central, quanto é, também, rejeitar as políticas de identidade liberais que, longe de romper com a forma-sujeito abstrata da sociedade burguesa, apenas fazem ela se multiplicar, criando novas identidades fixas, congeladas que servem para a integração na ordem jurídica e política da burguesia. Ainda que a questão seja mais fundamental que nunca hoje, há sementes antigas que ainda nos servem. Muito antigas. A forma com que Marx e Engels – e mais tarde, Lênin – lidaram com as disputas nacionais é um indicativo. Sobre as questões irlandesa e polonesa, Marx e Engels haviam dito: um povo que oprime outro não pode ser livre. Isso é lutar pela emancipação universal, mas também não condicional. É uma espécie de universalidade insurgente. Também Lênin, ao tratar da questão do direito à auto-determinação dos povos colocou: os bolcheviques defendiam o direito dos ucranianos à auto-determinação, mas os bolcheviques ucranianos deveriam fazer campanha contra a secessão e pela unificação na URSS. Não há contradição aqui. Mas as raízes dessa forma de universalismo que devemos pensar hoje são, talvez, ainda mais antigas. Hoje se sabe que, por coincidência ou não, a frase um povo que oprime outro não pode ser livre não foi, originalmente, cunhada por Marx e Engels. Quem a enunciou pela primeira vez foi um indígena peruano, Dionisio Inca Yupanqui, que foi delegado, na década de 1810, para as Cortes da Espanha, onde defendeu a libertação das então colônias espanholas. Como também já sabe por seus Cadernos Etnológicos, Marx aprendeu, e muito, com as experiências dos povos indígenas: com os iroqueses, pensou a forma comuna, com os Inca – pelo qual tinha enorme admiração – pensou a propriedade comunal. Talvez, nós, brasileiros, também tenhamos muito a aprender nesse sentido.
VII. O movimento comunista brasileiro tem um dever de colocar os povos indígenas como vértice de sua luta. Amplamente reconhece-se em Mariátegui o fundador do marxismo na América Latina – não transplantando apenas, mas aclimatando-o – com toda a justeza, por ter unido a um marxismo-leninismo revolucionário um radical comprometimento, inclusive ao nível teórico, com a luta dos povos indígenas do Peru pela terra. Fazer como ele, como Marx, como Lênin, não deve ser apenas copiar suas conclusões, mas fazer também aqui, no Brasil, como eles. Um histórico militante do PCB, ainda que pouco ortodoxo, Oswald de Andrade é um dos poucos comparáveis a Mariátegui entre nós: ao pensar a antropofagia ele foi além do nacionalismo tacanho e burguês do movimento verde-amarelista, ao mesmo tempo em que se emancipou da cópia do ideal europeu. Sua ênfase central no ato ritual da antropofagia, revolucionária, foi também uma forma de pensar a unidade na diferença, a negação de si no outro. Nas últimas décadas, a antropologia amazonista, como nos escritos de Eduardo Viveiros de Castro, deu nova vida às reflexões antropofágicas, que em Oswald ainda eram apenas especulativas e filosóficas.
O canibalismo tupinambá constituía um complexo sistema de rituais que longe de ser uma forma de mero sacríficio era, na verdade, um meio de criação de laços sociais, imanentes à comunidade, definindo a afinidade como anterior ao parentesco. Pela mesma palavra, tovajar, definia-se tanto o “inimigo” quanto o “cunhado”. Essa afinidade, modelo da intersubjetividade tupinambá, colocava a relação entre cunhados como afinidade na diferença: casa-se com minha irmã o que é diferente de mim. Todos como espelhamento e repetição do laço antropofágico. Mais do que a carne do inimigo, o que se consumia na antropofagia tupi era a posição ou condição do inimigo; substituía-se no lugar dele. Na cosmologia amazônica, a posição é o corpo, que é a única diferença entre sujeitos iguais: homem, onça, anta, arara, todos sujeitos, todos pessoas, que enxergam e pensam da mesma forma, mas de posições, corpos, diferentes – o completo oposto do pensamento europeu iluminista, que imagina uma natureza biológica única com diferenças culturais, psicológicas. De forma complexa, a antropofagia tupi é devorar o inimigo i) para conhecê-lo de sua posição, é uma antropologia, mas também é ii) para estabelecer com ele uma relação, é uma política. Pela devoração canibal, o tupi define o Eu como Outro, sem nenhuma fixidez de identidade, mas pela alteração constante de posição.
Se quisermos pensar a construção do universalismo sem universal, podemos tomar a antropofagia, agora um conceito rico e multideterminado com ampla base científica graças à antropologia, podemos também pensar no partido segundo um conceito que deriva do de antropofagia: o de xamanismo. Assim como já se disse que o devorar o Outro é substituir-se na posição dele que, para a cosmologia amazônica, também os animais são pessoas – a onça, no corpo de onça, se vê homem e vê o sangue do homem que ela morde, cerveja de mandioca – o que atravessa essas diferenças e estabelece relações entre vivos e mortes, homens e animais, é o xamã. No xamanismo amazônico, entretanto, o xamã é, ele mesmo, não completamente humano, ou não completamente vivo: ele mesmo precisa ser parte morto, parte animal, para estabelecer uma verdadeira diplomacia. O militante do partido comunista tem muito em comum com o xamã amazônico: no partido, pertencemos e já não pertencemos a nossa condição anterior, a qual devemos negar para tomar a posição do Outro, assim como o partido, não obstante surgido de um movimento imanente ao modo de produção capitalista, tem já a função de ser um além dele, ser a arma pela qual se pode explorar uma situação revolucionária para efetuar a transcendência. Para tanto, é preciso o vácuo negativo que o partido representa.
VIII. O que proponho até aqui é menos uma fórmula organizacional, que considero fútil já que sempre será superada pelo movimento real, e mais uma forma necessária para que os comunistas brasileiros voltem a pensar em seu papel, sua organização e sua relação, a partir da questão necessária de integrar as diferenças num universalismo novo, sem um universal abstrato. Temos ainda muito para aprender, mas o que se torna bastante flagrante é o quão pouco nós, comunistas brasileiros, temos aprendido com os povos indígenas de Pindoráma, a terra batizada de Brasil. Longe de querer implicar em algo como um “mito do bom selvagem” – afinal a antropofagia e o xamanismo se implica em sociedades guerreiras, como extensão da guerra e da violência –, penso aqui na necessidade de tomar o pensamento indígena a sério, enquanto filosofia, assim como fez Mariátegui.
Esboço de uma conclusão encaminhativa
A título de conclusão, pensei em a) sintetizar o que creio ser o argumento político que toda essa longa exposição implica, e b) propor um esboço encaminhativo que dela deriva.
a) Não parece restar dúvidas que a explosividade da atual crise tem muito a ver com o desgaste da relação entre o partido e os coletivos, em uma estrutura organizacional obsoleta. A meu ver, a forma coletivo foi justificada por um período, importantes formulações nasceram graças a essa relativa autonomia -no coletivo LGBT Comunista, no CFCAM, no CNMO, etc – e também a ela podemos relacionar o grande crescimento da UJC. Entretanto, é uma estrutura na qual já não cabe o conteúdo político que precisamos avançar. Não basta que exista um coletivo formulando com propriedade sobre a conjuntura atual da transfobia e da transmisoginia: é preciso que tais formulações orientem o partido como um todo. Preocupações como essa é que guiaram toda essa reflexão sobre a necessidade de continuar pensando e aprimorando nosso centralismo, correspondente à construção de um novo universalismo no período histórico em que nos encontramos.
O radical internacionalismo de que necessitamos também me levou a pensar ao lado da antropofagia e do pensamento indígena. Como frisei tanto, esse novo centralismo-universalismo exige de nós a negação de nós mesmos: é preciso começar negando a nós mesmos enquanto brasileiros, denunciar esse Estado-nação burguês de origem colonial, indissociável do genocídio dos povos indígenas e da espoliação destas terras, e levantar a bandeira da descolonização. Esse processo de acumulação originária que bombeou o crescimento do capitalismo europeu e lançou as bases do moderno capitalismo dependente brasileiro, nascido como contraponto integrante do capitalismo mundial, deve se tornar uma pedra de toque da nossa negatividade radical. É ver não apenas a barbárie implícita na civilização burguesa, é reabilitar isso que a burguesia chama de barbárie, denunciar seu eurocentrismo, revelar que por trás de todas as palavras bonitas do Iluminismo, seu Sujeito abstrato era intrinsecamente colonial, genocida, patriarcal.
A riqueza do pensamento indígena, com o qual penso que devemos aprender, também é significativa por vivermos na era da catástrofe climática e ambiental. O pensamento indígena, perspectivista e multinaturalista, nos permite pensar relações não apenas entre diferenças humanas, mas também com o não-humano. Começar a pensar o comunismo como cosmopolítica, como relação política entre humano e animal, humano e biosfera. Seria isso uma forma de seguir aquele impulso de Marx para que o comunismo seja a reconciliação do humano com a natureza, para que o humano reorganize suas relações sociais de modo a agir de acordo com a realidade: como parte da natureza, pois somos tão produto dela quanto ela é produto da nossa atividade social – hoje sabemos que a enorme Floresta Amazônica foi objeto de uma verdadeira jardinagem milenar pelos povos indígenas. Como não pensar, hoje, que devemos aprender justamente com o pensamento daqueles na vanguarda da luta contra o latifúndio, contra o extrativismo, contra o agronegócio, contra a devastação do mundo? É nosso dever estar ao lado da luta indígena pela terra, contra o Marco Temporal, pela preservação de suas culturas.
b)
- Integração dos coletivos partidários e seus militantes no partido, como partido;
- Integração da direção dos coletivos na direção partidária;
- Valorização e elevação da Fração Indígena do PCB à condição de coletivo em igualdade com os outros;
- Delegação da tarefa de formulação política, com aplicação para todo o partido, para os coletivos, a serem sintetizados em Congresso;
- Formulação de formações políticas pelos coletivos a serem intercambiadas em todo o complexo partidário; que haja formações feministas, antirracistas, do movimento LGBT, indígenas em todo o complexo.
Não se tratam, evidentemente, de verdadeiros encaminhamentos, apenas tomam a forma de encaminhamentos para resumir uma conclusão política. Em todo caso, construir o nosso centralismo, o nosso universalismo sem universal, seja como um comunismo antropófago ou leninismo xamânico – é brincadeira, mas nem tanto! -, de modo que não mais os coletivos partidários sejam meros acessórios que complementam o Sujeito abstrato, é uma grande tarefa que apenas a militância como um todo, organicamente unida, pode resolver, em nosso XVII Congresso.