Teatro popular: Companhia Andarilhas traz a peça "Inimigas Púlbicas", retratando mulheres revolucionárias na ditadura militar

Baseada em pesquisas nos acervos, dossiês e documentos da ditadura empresarial-militar, a peça traz um panorama histórico que resgata o contexto do golpe militar de 1964, e é dedicada à memória de todas as mulheres guerrilheiras que estiveram presentes na luta armada.

Teatro popular: Companhia Andarilhas traz a peça "Inimigas Púlbicas", retratando mulheres revolucionárias na ditadura militar
Fotografia: Felipe Castelani

Redação | Reportagem por Teylor e Mafe Moneda

“Queremos fomentar ainda mais o teatro popular e político, para que as pessoas enxerguem novas formas de criação e formação de pensamento crítico. A arte é aliada da educação, e o nosso modo de fazer teatro é assim, fazendo arte de forma educativa, aberta à reflexões e críticas sempre. Além disso, esperamos trazer necessidades do presente em relação ao tema: Sem anistia para os golpistas de 1964, pelo fim da violência policial e do genocídio negro nas periferias, pela abertura de todos os arquivos da ditadura e pela construção e implementação de políticas públicas e espaços de memória, verdade e justiça.”

Formada a partir da Escola Livre de Teatro de Santo André, a Cia. Andarilhas é um coletivo teatral comunista e LGBTIAP+ que vem da periferia do ABC Paulista e da Zona Leste de São Paulo. Pesquisando sobre a história e a memória de seus territórios por um viés revolucionário, deram vida à peça “Inimigas Públicas: Memórias de Chumbo”.

A dramaturgia autoral da Companhia, assinada pelas integrantes Bianca Moriel e Brenda Rodrigues, surgiu a partir da compreensão de que mulheres, pessoas negras, PCDs, indígenas e outras minorias são sumariamente apagadas das páginas da história e têm suas trajetórias de luta invisibilizadas.

Amplamente baseada em pesquisas nos acervos, dossiês e documentos da ditadura empresarial-militar, a peça traz um panorama histórico que resgata o contexto do golpe militar de 1964, e é dedicada à memória de todas as mulheres guerrilheiras que estiveram presentes na luta armada contra a ditadura militar brasileira, assim como de todas as pessoas que lutaram e foram presas, torturadas e desaparecidas.

Por conta da temática abordada, mesmo enfrentando problemas de fomento e de passabilidade entre as prefeituras dos municípios que recebem a peça, a Cia. vem recebendo amplo retorno político positivo do público e da crítica, e pretende circular em escolas, equipamentos culturais e outros espaços com a peça “Inimigas Públicas: Memórias de Chumbo” durante o ano de 2024.

Fotografia: Ana Flávia Tragino

Confira na íntegra a entrevista que a Cia. Andarilhas concedeu ao Em Defesa do Comunismo

EdC: Como se deu a junção das pessoas para formarem a Cia.? Há quanto tempo estão juntas? Todas as pessoas da Cia. tem uma origem comum no Teatro, sempre tiveram esse contato, ou há diferentes histórias e momentos de contatos das pessoas da Cia. com o Teatro?

Em 2020, as integrantes Bianca e Brenda entraram para o teatro, no Núcleo de Iniciação Teatral para estudantes de ensino médio da Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT). Foi o ano em que se conheceram e era a sua primeira vez fazendo teatro fora da escola pública - que é de onde nosso teatro vem já que estávamos no movimento secundarista. Permanecemos fazendo as aulas de teatro online por conta da pandemia até 2021, e em 2022 voltamos presencialmente, dessa vez no Núcleo de Dramaturgia da ELT, onde percebemos uma relação muito potente e bonita entre os textos que criávamos, tanto nas criações coletivas quanto individuais.

Então, começamos a escrever uma dramaturgia juntas, o espetáculo autoral chamado “Inimigas Públicas: Memórias de Chumbo” e estreamos no Festival Vamos que Venimos Brasil (VQV), um festival de teatro adolescente que acontece todos os anos em Santo André. Dentre as trocas no festival, encontramos com Mileny Vitória - que trabalha com teatro desde pequena, além de outras linguagens artísticas - e a convidamos para nos dirigir e fazer a técnica de iluminação, já que na época nós não tínhamos uma equipe. Conforme o processo da peça foi ganhando forma, sentimos a necessidade de mais um integrante na equipe e assim, Felipe Castelani - que trabalha com audiovisual e já era um grande parceiro nosso por outros projetos - foi convidado para entrar no coletivo e fazer a operação de som, além da produção. Assim, o coletivo formado por 4 pessoas está caminhando para o seu primeiro ano e meio de história, de forma independente e com muita resistência.

EdC: Qual a proposta artística e/ou política da criação da Cia.? O que motivou vocês a se juntarem para construir este espaço?

Desde a escola, já éramos engajadas politicamente, para além de presidentas do Grêmio Estudantil e integrantes do movimento secundarista da região. Ao entrarmos no Núcleo de Iniciação Teatral, fomos provocadas a expor nossas opiniões políticas por meio da dramaturgia e da cena de modo geral, e lá nos foi apresentado o teatro político, que pode e deve ser usado como ferramenta para o trabalho de base. A pedagogia da autonomia, com uma gestão coletiva e de processo de criação colaborativo da Escola Livre de Teatro sempre impulsionou a nossa forma de criação, e diante das nossas vivências e perspectivas diárias como mulheres trabalhadoras, sentimos uma profunda angústia e impotência em relação às violências cotidianas que sofremos e assistimos ao nosso redor. Ao trazer essas questões para dentro do Núcleo de Dramaturgia em 2022, começamos a nossa pesquisa sobre os apagamentos de muitos corpos femininos da nossa história, e com uma dramaturgia pronta e a inscrição em um festival, vimos que já estava tudo encaminhado para que formássemos um coletivo de teatro. Assim, numa noite, quebrando a cabeça pra decidir que nome seria, veio lindamente, Cia. Andarilhas. Somos andarilhas que andam e correm pelos seus territórios, pela cidade e por vários caminhos da arte. A gente quer percorrer outros territórios com o nosso teatro, quer reforçar a coletividade e trazer mais gente conosco quando as portas das oportunidades artísticas - mesmo que escassas - se abrem.

A proposta da Cia. é política, de trabalho de base. Somos um coletivo teatral comunista, LGBTIAP+, que vem da periferia do ABC Paulista e da Zona Leste de São Paulo, que pesquisa sobre memória em seus territórios - por um viés revolucionário - como forma de construir reflexões e práticas artísticas e revolucionárias, mantendo vivo o sonho daquelas pessoas que construíram e que ainda constroem ações pelo poder popular - chama que queremos acesa dentro da juventude, que é o nosso público-alvo.

Quem é do meio artístico sabe o quão é difícil ser artista independente, ainda mais quando o coletivo traz questões políticas na sua pesquisa, não é em todo lugar que temos passabilidade, então vamos ocupando da forma que conseguimos.

EdC: Quais os planos para o futuro da Cia.? Existem novas peças no horizonte? Mais apresentações do espetáculo atual? Quais as perspectivas para 2024?

Com certeza tem uma peça nova no horizonte da Cia. Andarilhas! Até então temos um espetáculo, mas enquanto circulamos com ele por alguns espaços, já pensamos na criação de um próximo, apesar de ainda ser uma sementinha. No mais, a gente pretende circular em escolas, equipamentos culturais e outros espaços com “Inimigas Públicas: Memórias de Chumbo” esse ano, então estamos procurando fomentos que proporcionem isso, além das apresentações independentes que a gente também faz.
Fotografia: Ana Flávia Tragino

Sobre a peça

EdC: O espetáculo “Inimigas Públicas: Memórias de Chumbo” é a obra de estreia da Cia., de quem é a autoria da peça? De onde surgiu a ideia de abordar esse período? Podem nos contar mais sobre o enredo geral da peça?

A obra é autoral do coletivo, uma dramaturgia assinada pelas integrantes Bianca Moriel e Brenda Rodrigues. Na primeira ideia, iriamos abordar questões cotidianas que vivemos e assistimos, vieram pautas sobre assédio, violência, periferia... Mas fomos afunilando e chegamos em um recorte histórico: a ditadura militar no Brasil. Então, afunilamos mais: As mulheres militantes do período. E aí, chegamos em uma pesquisa sobre a memória e a vida das mulheres que participavam ativamente de partidos e coletivos comunistas. Chegamos em Heleny Guariba e Inês Etienne Romeu, ambas militantes do período que possuem suas histórias invisibilizadas na luta contra o golpe. Para além disso, damos um panorama geral do que de fato foi a ditadura, em especial para quem não tem noção do que realmente acontecia e do que acontece até hoje.

Com duas atrizes em cena, contamos as suas histórias e os sonhos dessas mulheres, que, sobretudo, relacionam-se com os nossos sonhos de hoje, enquanto jovens, estudantes, artistas e trabalhadoras. "Inimigas Públicas: Memórias de Chumbo" é, para além de um ato político pelo poder popular, uma obra dedicada à memória de todas as mulheres guerrilheiras que estiveram presentes na luta armada contra a ditadura militar brasileira, assim como de todas as pessoas que lutaram e foram presas, torturadas e desaparecidas.

EdC: O que levou a Cia. a escolher Ditadura Militar como pano de fundo histórico, e as mulheres como personagens centrais para a peça?

A gente já sabia que queria falar sobre mulheres, porém não tínhamos chegado ainda em uma temática mais específica. Pensamos nas lutas de mulheres dentro das ditaduras da América Latina, então chegamos na ditadura militar brasileira, que ainda é tão recente. Além disso, o debate sobre o golpe de 1964 é muito pautado nos dias de hoje, principalmente após um governo genocida que fomentou atos pró-ditadura militar até então, atuou juridicamente para celebrar o golpe e movimentou estruturas ministeriais a fim de militarizar o que pudesse. Em geral, as pessoas não possuem uma compreensão crítica do que realmente foi o golpe, tanto aqueles que viveram na época quanto os mais jovens que aprendem sobre o assunto de forma distorcida nas escolas.

As pessoas não sabem o que aconteceu, muito menos das mulheres, mães, pessoas negras, indígenas, LGBTIAP+ e PCD’s que estiveram presentes na luta, afinal, o que geralmente se conhece de nomes de guerrilha são homens. Nos incomoda ver uma maioria masculina na militância comunista e de só ter visto nomes masculinos citados na história da luta contra o golpe.

EdC: Existem mulheres específicas, personagens da vida real, que foram retratadas na peça ou usadas como inspiração para a composição das personagens? Quais?

No espetáculo, contamos a história de Heleny Guariba, professora de teatro, diretora, dramaturga, mãe e militante da Vanguarda Popular Revolucionária. Até hoje é tida como desaparecida política desde 1971. Além dela, contamos também a história de Inês Etienne Romeu, na época militante e dirigente das organizações Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares (VAR-Palmares) e Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop), única sobrevivente da Casa da Morte, um dos maiores centros de tortura da ditadura, em Petrópolis/RJ, e também foi a última presa política a ser libertada no Brasil.

Percebemos, ao longo da pesquisa de acervo, em documentos e dossiês, que as histórias de ambas se relacionam. Se não fosse Inês, que até o fim de sua vida relatou detalhadamente tudo o que pôde sobre os crimes cometidos lá dentro, consigo e com camaradas, não saberíamos que Heleny passou pela Casa da Morte, por exemplo. Apesar de falar sobre as duas, citamos vários outros nomes importantes também, como Thereza Santos, Alceri Maria e Dinalva Oliveira.

EdC: Como vocês buscaram retratar a luta de resistência feminina? Quais pontos vocês acham que foram apagados da história e precisam ser lembrados?

Construímos a dramaturgia traçando um paralelo entre as histórias dessas militantes do período e a luta que devemos travar no presente. Com um cenário repleto de documentos e fotos do período e trilha sonora composta por músicas da mesma época, o espetáculo busca uma imersão não apenas discursiva, mas visual e sensorial na história destas personagens. Ao longo da pesquisa, percebemos os apagamentos em especial de mulheres racializadas, LGBTIAP+, PCD’s e com outros recortes que estruturalmente, são apagados da existência dessas pessoas. Tendo isso em vista, além da memória das mulheres que foram torturadas, mortas e desaparecidas no regime militar, procuramos lembrar dos torturadores que não tiveram punição, dos espaços que nos foram tirados e da dor de muitas famílias que não encontraram os corpos de seus parentes, que são tidos como desaparecidos até hoje. Por isso, buscamos manter vivos os sonhos das militantes da época e manter esse debate sempre vivo, a fim de que para além da construção de uma militância comunista efetiva contra a extrema-direita e o imperialismo, possamos ter como premissa para que não se esqueça o que ocorreu e para que nunca mais aconteça.

EdC: O que vocês esperam provocar com esse espetáculo? Qual o intuito artístico vocês tiveram ao construir essa produção?

O que mais esperamos é evocar memórias, sentimentos e sobretudo, ódio de classe no público para que ele sinta o que estamos experienciando durante o espetáculo. É sempre muito bom quando conversamos com as pessoas após a peça e elas dizem que se emocionaram ou que sentiram um nó que ainda não desatou na nossa história, porque é exatamente como nos sentimos em relação à toda pesquisa, desde quando começamos o projeto. Queremos fomentar ainda mais o teatro popular e político, para que as pessoas enxerguem novas formas de criação e formação de pensamento crítico. A arte é aliada da educação, e o nosso modo de fazer teatro é assim, fazendo arte de forma educativa, aberta à reflexões e críticas sempre. Além disso, esperamos trazer necessidades do presente em relação ao tema: Sem anistia para os golpistas de 1964, pelo fim da violência policial e do genocídio negro nas periferias, pela abertura de todos os arquivos da ditadura e pela construção e implementação de políticas públicas e espaços de memória, verdade e justiça, entre outras pautas.
Fotografia: Ana Flávia Tragino

Outros pontos

EdC: Como tem sido a receptividade dessa peça nos espaços de apresentação? Vocês sentem que há um acolhimento dessa temática ou a obra tem sofrido algum tipo de boicote ou rejeição, por parte dos espaços ou do público?

A maior parte das apresentações foi bem recebida pelo público, que demonstrou um desejo genuíno por mudança. Apesar disso, enfrentamos dificuldades com os governos das cidades onde nos apresentamos devido à resistência em abordar uma temática tão delicada. Porém, agimos com cautela para transmitir nossa mensagem, garantindo que o público se envolva plenamente na peça. Apesar dos obstáculos e das rejeições por parte das prefeituras e aliados, o público sempre acolhe nossa mensagem positivamente, o que é fundamental para nós.

EDC: Estamos no mês de março, em que celebra-se a data de luta do dia das mulheres trabalhadoras. Vocês tem alguma apresentação para este mês, unindo estas lutas? Se não, há alguma outra apresentação planejada que possamos divulgar?

Infelizmente esse mês não fechamos com nenhum espaço, mas muito em breve vamos divulgar uma apresentação que para nós, será muito especial. Por enquanto, só podemos liberar isso, mas para quem quiser saber que apresentação será essa, siga @ciaandarilhas no Instagram.

EdC: As estatísticas e dados, no Brasil, sobre números de teatros ou salas de espetáculo, de ingressos vendidos, sessões e etc., expõem um consumo muito baixo, focado nas capitais - especialmente das regiões sul, sudeste e centro-oeste, ainda que com alguns polos no nordeste -. Vocês enxergam - e se sim, qual - que existe uma importância em produzir um teatro popular, que dissemine entre a classe trabalhadora o interesse pelo teatro e que trate de temas que de fato lhe digam respeito?

Com certeza! Um dos objetivos da Cia. Andarilhas é fazer do teatro um espaço de lazer e debate acessível para a classe trabalhadora, porém, tudo é um processo. Não tem como a gente querer teatros lotados quando as pessoas estão preocupadas se terão comida no dia de hoje ou quando possuem escalas exaustivas de trabalho e não possuem tempo para o lazer, como por exemplo, ir ao teatro. Então é preciso que a luta pelo acesso à cultura esteja aliada às lutas ligadas ao trabalho, ao transporte, à alimentação... afinal, tudo está conectado.

De modo geral, que a classe trabalhadora tenha condições dignas de vida para acessar equipamentos de cultura. É difícil ocupar sendo público e sendo artista, principalmente enquanto a cultura está sendo privatizada e desmontada pela burguesia.

Para continuar acompanhando a gente, sigam @ciaandarilhas no Instagram!

Agradecemos o espaço e vida longa ao teatro popular!