'Sobre o trabalho de direção ou Direção dirige, e…?' (Konrado)

Além dos prejuízos práticos, essa relação de dependência dos dirigentes perpetua a aceitação acrítica às formas de direção e desvios. Acontece por exemplo que só passamos a reconhecer e caracterizar problemas de métodos de direção quando eles são evidenciados por quadros nacionais

'Sobre o trabalho de direção ou Direção dirige, e…?' (Konrado)
"O reboquismo, isto é, comportar-se como aquele que deve apagar a luz e fechar a porta, também é inconsequente, e quebra a relação partido-massas, levando muitas vezes a rachas."

Por Konrado para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Introdução

Camaradas! Trago a presente tribuna como tentativa de qualificarmos nosso debate acerca dos deveres de uma direção. As lacunas na formação de dirigentes têm cobrado um preço alto de nossa militância, com tanto quadros que eram referências locais como instâncias dirigentes inteiras se recusando a dirigir, paralisados por suas incongruências, ao mesmo tempo que muitos dos que efetivaram uma direção, o fizeram à revelia das bases - em forma e em conteúdo. Aqui tento contribuir tanto para a superação de desvios, quanto para a análise concreta do que deve e não deve ser parte de nossos métodos.

Vamos ao texto!

Centralização vs. orientação

Primeiro de tudo, camaradas, tiremos já o elefante da sala: dirigir não é apenas centralizar. Fui convencido de que este é um dos principais entraves teóricos para desenvolvermos uma visão completa e adequada do que deve ser um trabalho dirigente. Este convencimento se cristalizou quando fui designado com a tarefa de elaborar uma formação para a CR-UJC-PR sobre o trabalho de direção, com enfoque em embasar os novos membros recém cooptados a desempenhar este trabalho; esta formação foi articulada com uma segunda, sobre o trabalho de assistência, que também serviu para o meu convencimento.

O movimento comunista, em especial o marxista leninista, produziu ao longo da última dúzia de décadas uma extensa literatura, ainda assim, como bem vem apontando o camarada Jones, muito pouco se debruçam os nossos camaradas sobre essa temática, muito menos formulando sobre as implicações práticas, organizativas, dos métodos de direção. Isso se torna pior quando todo nosso complexo partidário, em suas várias resoluções e estatutos, seja do partido stricto sensu, seja dos seus 5 braços de ação, todos versam de maneira muito irrisória sobre o que faz um dirigente.

Essa debilidade estrutural abre as portas para uma “versatilidade” organizativa que tende ao federalismo, onde regiões diferentes se baseiam em “jurisprudências”, isso é, aprendem a partir da interpretação dos militantes que vieram antes deles e que passaram suas percepções adiantes, do que deve ser a direção. E veja bem que isso tudo se faz, quase sempre, de maneira informal, oral, sem a síntese e transcrição por escrito desses acúmulos, e o subsequente compartilhamento dessas sínteses. Daí vem a tão referenciada cultura política ou tradição que tanto vem sendo citada pelos velhos burocratas cunhalistas do PCB-CC. Feita do jeito que é, essa jurisprudência jamais pode ser questionada pois, não sendo escrita, é muito difícil ser investigada e sumariamente “desmontada”.

Assim, a título de exemplo, me surpreendi quando, questionando sobre o porquê da célula Curitiba não enviar uma crítica específica a um núcleo de base no momento que o assunto foi levantado internamente, mas a enviou diretamente ao CR sem qualquer contato direto com o núcleo, a célula me respondeu “ora, por que não podemos centralizar o núcleo”.

De maneira geral, a centralização ocorre de três maneiras: a delegação ou o veto de tarefas ou encaminhamentos análogos, ou o balanço de atividades. A delegação vem de cima para baixo, o veto é uma resposta negativa a algo que vem de baixo para cima, e o balanço é uma crítica que presume a assertividade da instância que a faz. Em todas, o poder está na instância superior.

Retornando ao exemplo, a célula alegou que, sendo uma instância de base, não poderia centralizar outra instância de base. Logo o núcleo criticado pela célula não pôde melhorar sua ação e corrigir seu trabalho enquanto não recebesse uma devolutiva do CR, independente da gravidade ou urgência do assunto, e sem sequer saber que havia sido criticado. Por questões internas da CR, esse problema se prolongou por um ano, e o núcleo jamais foi contactado, o que só ampliou o desconforto da célula para com o núcleo. O errado na situação é apenas o CR (e o NB)?

Ora, camaradas, se partimos da premissa que dirigir é apenas centralizar, sim, afinal, em um exemplo paralelo, fora de tarefas nacionais como as eleições, as células só podem convidar os núcleos a certas atividades, não convocar. Mas essa visão pobre não dialoga sequer com a história do PCB, como podemos ver no texto de Jorge Vila, uma tribuna do Congresso de 1954, em período que a própria centralização do partido era consideravelmente maior que hoje, e que a comunicação de uma região para outra era bastante dificultada.

Vejam, camaradas, para Vila os dirigentes devem se empenhar: 1) nas tarefas de organização, isso é, em tomar medidas práticas pra transformar em ação o Programa do Partido; 2) no convencimento da importância política das tarefas para as bases; 3) no controle e acompanhamento do desenvolvimento das tarefas, como meio de descobrir e corrigir as falhas, de recolher e generalizar as experiências positivas; 4) na coletivização da direção; 5) na prática da crítica e autocrítica permanentes. Também os dirigentes devem ter cuidados com os desvios: burocratismo e formalismo, espontaneísmo, personalismo, e conformismo, e o autor expõe as estruturas que induzem a estes, que degeneram a direção coletiva. Não irei trazer citações para não tornar esse texto mais extenso, mas é uma leitura curta, façam-na com atenção!

Disso discorre o elemento que as tarefas de direção têm, obrigatoriamente, um caráter de orientação também. E sob essa ótica, é absurdo uma célula se recusar a orientar um núcleo. Ainda que não possa centralizá-lo, descendo um balanço, a célula poderia tranquilamente enviar um comunicado ao núcleo, seja uma crítica estruturada, seja uma carta pedindo esclarecimentos, ou coisa do gênero.

Há um elemento incontornável de “direcionamento” e “orientação” ligado aos deveres de um dirigente que, se escanteados em prol de uma direção que unicamente centraliza, empobrecem nossa análise. Na prática os dois pontos, centralização e orientação devem sempre andar de mãos dadas, em ligação dialética. A seguir, irei discorrer sobre os deveres mais próximos do “direcionamento” que creio que devemos buscar sistematizar e instigar em nossa militância. Quanto às atribuições específicas das células e do partido, irei me debruçar numa continuação a este escrito, em outra tribuna.

Da síntese de acúmulos e do dever formativo da direção

Um ponto fundamental que o próprio Vila traz, é o dever do dirigente descobrir e corrigir as falhas, de recolher e generalizar as experiências positivas, ou seja, fazer a síntese dos acúmulos. Este é um dos pontos que mais vem sendo criticado pela militância em geral durante a crise, em especial pelos militantes da UJC, e não acho que isso aconteça por um acaso: não sintetizar os acúmulos e distribuí-los é não profissionalizar a militância, e não fazendo isso, a formação de novos quadros é terrivelmente mais lenta, o que reforça (olhe só!) a dependência dos velhos quadros e o poder deste de ter a decisão em quaisquer momentos que o coletivo, o pleno, não sabe ou não chega a um consenso do que fazer.

Camaradas, a “jurisprudência” é natural e importante na militância, mas negando que ela seja feita de modo escrito, negamos o direito à história aos nossos militantes. O conhecimento da história pode ser e muitas vezes é definidor no tomar decisão de nossos militantes, e como valorizamos a direção coletiva, é essencial que esse direito a história seja para amplos militantes. É na mesma linha que transcrevemos relatorias contendo os pontos de discussão que levaram a decisão por tal ou tal caminho, e não apenas as sínteses e encaminhamentos.

Poder acessar essas discussões abre possibilidade para ser convencides pelos mesmos argumentos elencados anteriormente, ou pelo contrário, de respondê-los e contrargumentá-los de maneira mais qualificada. Não poder acessar nada disso, de maneira oposta, gera uma militância que constantemente tem que reinventar a roda e depender dos seus próprios acúmulos pessoais, fazendo com que a natural disparidade entre quem tem mais anos de experiência do que militantes de menos tempo se torne uma discrepância absurdamente grande.

Além dos prejuízos práticos, essa relação de dependência dos dirigentes perpetua a aceitação acrítica às formas de direção e desvios. Acontece por exemplo que só passamos a reconhecer e caracterizar problemas de métodos de direção quando eles são evidenciados por quadros nacionais, mas não conseguimos, antes, formulá-los de forma qualitativa, e apenas reconhecemos o amadorismo de forma fragmentada ("não sabemos vender jornal", "não temos calendário de formação decente", "não temos acúmulo de táticas de aliança/relação com outras forças", etc). Assim, o problema prático da nossa falta de avanço está imbricado com a falta de senso crítico efetivo, disfarçado de "é porque vocês não tem acúmulo ainda", como se cada militante tivesse responsabilidade isolada pelos próprios saberes (gerados no andamento da carroça!).

Este dever para com as sínteses têm óbvio caráter formativo, pois é imprescindível para uma boa síntese de informações dispersas, um direcionamento e classificação das informações sintetizadas, ou seja, uma sistematização desses acúmulos. A partir dessa sistematização podem-se criar, com muito mais facilidade, manuais e guias sobre assuntos específicos, módulos formativos a serem direcionados a uma base toda vez que se demonstrar necessário, guias estes que terão base na nossa própria experiência militante num contexto próximo e mais familiar, e não apenas em textos escritos por militantes históricos, em outras conjunturas e por vezes em outros países, pesando sobre o leitor a obrigação de fazer a mediação do que no texto é particular e não tem como ser trazido à nossa realidade atual, e o que é universal e deve ser buscado (e se o leitor tem dificuldade em fazer isso, boa sorte, abraço!).

Quantas vezes, camaradas, os textos das nossas apostilas nacionais de formação, pouco dialogavam com nossas necessidades mais imediatas? Isso não quer dizer, de maneira alguma, que essa busca por referências mais amplas, e não apenas ligadas a nossa imediaticidade, seja desnecessária. Na verdade, ela é extremamente necessária e deve constantemente servir de guia, afinal, as formações também devem nos preparar para o devir, para a luta do amanhã, não apenas para a luta do hoje. Por outro lado, isso não antagoniza com se formar para a luta do hoje. Abandonar uma pela outra, em qualquer ordem, nos enfraquece, camaradas, e estes desvios (academicismo e praticismo) são as faces opostas da mesma moeda, que precisam ser combatidos.

Mediações Particular-Universal: o local e o geral

É importante discorrer sobre a mediação da realidade local com o desenvolvimento geral das contradições; seja na formação teórica seja nos direcionamentos estratégicos e mais amplos, camaradas, devemos constantemente reforçar a necessidade de uma análise “de conjuntura” completa, ampla e sistemática, que muito pode se beneficiar do conhecimento e do papel ativo das direções. De maneira geral, mediar o universal e o particular é parte essencial da investigação científica no marxismo leninismo, e deve ser constantemente praticada e estimulada.

É natural que, em um país como o nosso, não apenas continental mas com desenvolvimentos históricos locais tão diversos e por vezes tão desconexos, com contrastes regionais tão mas tão grandes, haja necessidade gigantesca de acúmulos sobre as especificidades locais e de consequente grande mediação do universal com o particular nos mais diversos âmbitos. Combatendo o particularismo, isto é, ver as árvores e não ver a floresta, tem enorme importância generalizar-se os acúmulos, claro, tendo o devido cuidado de não se esquecer das árvores ao observar a floresta, ou seja, incorrer em generalismos.

Para além da leitura, alguns outros exemplos de como a mediação universal-particular é importante e pode ser facilitada com algum direcionamento:

Os acúmulos sobre uma frente de lutas específica e que tenha dificuldade de se ligar a outros núcleos por conta dessa diferença (ex: haverem muitos núcleos de ME, e apenas um núcleo de cultura e um núcleo de JT na mesma cidade, com relativo isolamento dos dois últimos), requerem maior esforço para a integração com as lutas de todo o complexo, isso passa por mediar o geral com o específico. O trabalho no movimento de cultura é provavelmente aquele que mais tem que lidar com especificidades locais difíceis de serem generalizadas, exigindo uma complexa mediação e articulação dos mais diversos acúmulos, uma ousadia de luta bastante grande. Os apontamentos de Camarada Naga em sua excelente tribuna 'A inserção dos comunistas nos movimentos culturais de bairro' podem ser levados para muitas cidades, e convergiu muito com o trabalho de bairros e cultura realizado pelo núcleo Maria Olímpia de Curitiba.

Internamente também, a superação de desvios, através da análise científica de suas causas e intervenção nelas, demanda fortes mediações do universal com o particular. O camarada Lucas Zafalon Garcia discorre magistralmente, em sua tribuna 'Da direção: paternalismo, camaradagem e centralismo democrático', sobre como o paternalismo se manifestou em seu núcleo. Podemos aprender muito com o camarada, mantendo atenção que o paternalismo pode surgir por caminhos análogos, mas também diferentes, em outros núcleos. Suas contribuições sobre o trabalho de direção são primorosas, e recomendo fortemente essa leitura, que tive o prazer de fazer enquanto tinha metade dessas linhas escritas, e me permitiu expandir várias reflexões.

Um exemplo ao qual estamos mais acostumados é o trato com outras forças políticas: ele também exige considerações do que é universal e o que é particular, já que com frequência a nossa relação com a mesma força em regiões diferentes se dá de maneiras diametralmente opostas, que devem ser levadas em conta e compreendidas como elementos dentro de uma avaliação política sobre as forças, seus programas, sua história e, especialmente, a que classe servem e como servem a essa classe. A título de exemplo, nossa relação com o Ecoar, em Curitiba, se deu de maneira excelente quando compomos um DCE juntos, e os militantes deles frequentemente participavam de nossas formações sobre o MUP. Enquanto isso, nossa assistência de núcleo contou que a relação do Ecoar com a UJC no RJ (não lembro especificamente onde) era de pura aversão e desprezo pelo MUP.

Todos os exemplos aqui trazidos, e muitos mais que poderiam ser elencados, apontam para a necessidade de investigação ativa nessa mediação, usando dos acúmulos locais e gerando ainda mais deles, enquanto se articula com experiências de todo o país que devem ser socializadas com as bases. Esse também é um dever da direção!

Ao mesmo tempo, vejam, camaradas, como a dificuldade ou falta de se realizar essas mediações e entender as particularidades locais, nos seus mais diversos níveis, deixam as portas abertas para frutificar o reboquismo, hábito político que devemos dedicar todas as nossas forças para superar. Quando não se tem uma direção que realmente dirija, seja por não ter uma leitura tão completa da realidade, seja por não ligar essa leitura ao que fazer, isto é, à nossa estratégia e tática, ou seja ainda por copiar mecanicamente a estratégia e tática nacionais no âmbito local, sem fazer qualquer tipo de mediação com a realidade local (e adaptar, se necessário, as prioridades), quando isso não acontece nossa militância fica sem norte, e isso se manifesta tanto nos balanços do que já aconteceu, quanto nos encaminhamentos do que fazer daqui pra frente.

Essa falta de norte é um prato cheio para o reboquismo, ou seja, copiar as análises e práticas subsequentes que outras forças políticas fazem, “tentando aprender com elas”, mas falhando em exprimir o nosso próprio caráter, leninista, àquelas ações. A prática é reflexo da tática, que reflete a estratégia, que reflete a análise da realidade, a compreensão da formação social e econômica onde queremos intervir, de modo que invariavelmente uma força política consequente exprime sua teoria na sua prática. Se não houver uma correta “separação do joio e do trigo” ao se observar o trabalho alheio, importamos vícios de outras linhas políticas, minando nosso trabalho.

Esprit de Corps, unidade e alienação

Outro aspecto importantíssimo que deve ser objeto de atenção de qualquer dirigente é manter o “espírito de corpo”. Este termo é muito usado e discutido no meio militar, frequentemente como sinônimo de moral das tropas. Porém, da maneira como eu o encaro, é importante distinguir que o espírito de corpo é a moral no caso específico dum sentimento de pertencimento, e que, especialmente no meio marxista-leninista, esse sentimento deve ser inimigo absoluto da alienação.

Falar disso é ter clareza que em um capitalismo tardio, profundamente adoecedor para qualquer proletário, agudizado ainda por todas as opressões estruturais e pela superexploração precarizada que o caráter periférico dependente de nosso capital imprime, não basta apenas ter convicção na luta. Mesmo militantes muito experimentades, disciplinades e profundamente conscientes da luta se desgastam e desanimam. Seja por uma exaustão agravada pelas tarefas, seja pelo insucesso em superar certas relações ou certos desvios, seja por atritos pessoais com outros militantes ou mesmo gente de fora da organização com quem devemos constantemente lidar, por quaisquer motivos que sejam, militantes desanimam.

Nesse ínterim há de se pesar tanto as questões estruturais quanto as superestruturação: as tarefas que se toca da maneira que se toca, assim como o ambiente em que se milita, ambos são definidores enquanto agravantes ou aliviadores desse desânimo. Um bom dirigente não deve negligenciar um pelo outro, mas atacar os problemas onde eles estiverem, e se necessário for, em duas frentes.

Ouvir atentamente o militante é um passo importante, pois parafraseando Vygotsky, falar nos permite concatenar melhor as nossas próprias ideias e aprofundar as análises que fazemos. Tratar as chagas estruturais é necessidade constante na nossa organização. Combater a divisão dos trabalhos que seja intelectual, sexual, racial ou de gênero, e não revolucionária, a sobrecarga com muitas tarefas e sem ordem de prioridade estabelecida, as reuniões extremamente longas e não encaminhativas, o esvaziamento da crítica e da autocrítica, o desestímulo à formulação política e à democracia interna tudo isso e ainda outras questões devem ser tratadas atentamente. As resoluções da I Conferência Nacional do CFCAM apresentam pontos avançadíssimos sobre essa ligação estrutura-superestrutura na militância:

18. Acerca das possibilidades de avanço que se traduzem em tarefas pelas quais podemos lutar de forma imediata, entendemos que se faz essencial a construção de uma moral proletária. A moral proletária é constitutiva dos processos de avanço na consciência da classe trabalhadora, que, junto às condições objetivas, possibilitam a transformação radical da sociedade e se faz presente enquanto aspecto subjetivo que é parte de um processo total de organização dessa mesma classe. Entendemos que a completa construção da moral proletária se dá com a mudança radical e concreta da sociedade capitalista, sendo necessária e ganhando espaço no processo de transição socialista e realmente efetivada na sociedade comunista. Dialeticamente, também entendemos que é preciso iniciar essa construção imediata, já que, no que concerne às mulheres trabalhadoras, ela é imprescindível para que haja relações de camaradagem que tornem sua militância possível, como contraponto à forma das relações da moral burguesa, determinada pela estrutura familiar monogâmica.
19. Sabendo disso, é fundamental que o Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro leve sempre em questão em sua organização, estrutura e debates que as militantes se dividem entre jomadas de trabalho remunerado e trabalho doméstico e de cuidado não remunerado. As militantes do CFCAM são também mães e cuidadoras e os espaços, horários e tarefas da militância devem levar isso em consideração. Além de sempre pautar nas formações e discussões o tema do trabalho doméstico e de cuidado na sua articulação com o capitalismo.

Assim, camaradas, quaisquer ilusões moralistas devem cair por terra: a moral que os comunistas devem construir é firmemente materialista e deve necessariamente se apoiar nas condições materiais dentro e fora das nossas fileiras para gerar sim relações sociais radicalmente mais humanas. Uma saudação às camaradas que escreveram as linhas acima!

Mas é claro que um materialismo frio e sem vida não resolve, de imediato, a situação de desânimo que por vezes abate nossos militantes; no curtíssimo prazo, muitas vezes mais bem faz uma escuta ativa com os militantes do que, sem isso, elencar nas pautas de reunião a redivisão de tarefas ou dar balanço para terceiros sobre não repetir estruturas opressivas na nossa militância.

É importante ouvir e dialogar com os militantes e cultivar, das mais diversas formas, tanto o tão falado sentimento da camaradagem, como o sentimento de pertencimento (o espírito de corpo) à esta organização que se esforça em ser o partido da vanguarda da classe trabalhadora na luta por um futuro emancipado.

Ainda que possa ser enquadrado dentro da camaradagem, esse sentimento tem manifestações específicas que não podem ser diluídas: ele demonstra que os militantes confiam uns nos outros, que acreditam que podem contar com seus camaradas em situações difíceis, e o reconhecimento que esse fator é essencial para o sucesso da luta do partido. Isso se cultiva, camaradas, não pode ser simplesmente falado da boca para fora se o terreno para ele crescer é infértil, se as relações entre os camaradas não são saudáveis e se não há divisão revolucionária do trabalho.

Sentir-se parte de algo maior, camaradas, é importantíssimo para não sentirmos que nosso trabalho é em vão, por mais difícil que esteja sendo, ou desconexo (na aparência) do todo que possa parecer. E camaradas, não podemos de maneira alguma incorrer na alienação. Se um militante sente que está realizando apenas uma tarefa mecânica, que é uma peça minúscula em meio a uma engrenagem partidária tão grande que se perde de vista, qual a diferença de nossas fileiras para o capitalismo? Nisso dou especial atenção às tarefas de finanças, organização e agitprop, que com muita frequência são tocadas de forma profundamente alienante e até despolitizante para com toda a luta. Estou convencido que o reproduzir da alienação capitalista dentro de nossas fileiras é uma das coisas mais nefastas que podemos fazer, e uma das que mais quebram militantes.

Um espírito de unidade e de pertencimento a uma luta maior jamais, camaradas, jamais pode incorrer na alienação de nossos horizontes políticos de curto, médio e longo prazo, os mais distantes objetivos nacionais e os mais próximos objetivos locais. Para isso, é fundamental a promoção da discussão e formulação política em nossas tarefas; a análise científica e sistemática dos nossos planos e métodos de ação em sua articulação com os demais movimentos do partido; a maior abertura para crítica e autocrítica internas em quaisquer espaços; a direção verdadeiramente coletiva.

No geral, pode-se estar com a “moral elevada” pelos mais diversos motivos, inclusive, por motivos mais ou menos externos à militância, com ou sem o espírito de corpo. Por isso, reforço a importância de cultivá-lo, combatendo ferrenhamente a alienação. Militantes sem esse espírito, mas com a moral elevada, podem incorrer em falsas análises de que o seu trabalho é mais importante que o dos demais, ou que o espaço específico (instância, tarefa, secretaria, etc.) que se está tocando tem maior valor do que os demais espaços, e isso só pode frutificar em personalismo e carreirismo, camaradas. O contrário, um “espírito de corpo” presente mas com moral lá embaixo é quase sempre sinônimo de alienação do trabalho. Ambos corroem nossa organização, quebrando militantes, despolitizando e personalizando nossa luta coletiva, e desvirtuando o centralismo democrático.

Consequência e incongruência na luta de classes e de linhas

Outro ponto importante, camaradas, é a análise consequente das disputas políticas do momento, sejam externas ao partido, sejam internas. Lenin incessantemente fala de sermos consequentes em nossas ações (gostaria de fazer um estudo estatístico de quantas vezes ele usa essa palavra em seus textos, mas tá difícil), ao mesmo tempo que (de)bate em militantes de linhas incoerentes e vacilantes. Aqui é importante discorrer sobre este ponto.

Camaradas, as posições incongruentes são normais na luta de classes e na luta de linhas, não devemos nos surpreender com elas; precisamos, sim, derrotá-las. O enfrentamento de Lenin às posições mencheviques e socialistas-revolucionárias ao longo das revoluções russas, que não tinham a capacidade de dar cabo das tarefas da revolução nem para os operários nem para os camponeses (e não entrando em seu enfrentamento às mais diversas tendências políticas do POSDR antes das revoluções!); o combate de Marx e Engels às vacilações pequeno-burguesas nas revoluções que viram e viveram na Alemanha e na França, ou mesmo suas lutas contra o Proudhonismo e o Lassaleanismo que não poderiam concretizar mudanças efetivas e estruturais para a classe trabalhadora; esses e dezenas de outros exemplos insistem no seguinte ponto: precisamos analisar de maneira consequente quais serão os resultados, o desencadeamento das análises, das estratégias e das táticas colocadas em jogo.

Enquanto travam seus combates, Marx, Engels e Lenin, e quaisquer outros bons marxistas-leninistas que quiserem se colocar de exemplo, trazem à toda luz e não deixam dúvidas sobre quais os interesses de classe estão em jogo, e o que cada lado tem a perder e a ganhar com a implementação de tais propostas (analíticas, estratégicas ou táticas). Essa demonstração materialista é essencial para se esclarecer a diferença entre deficiências e desvios.

Em termos simplistas, camaradas, falar de deficiência implica em se ter um caminho traçado de maneira correta, mas que houveram percalços e problemas que impedem de colher os frutos máximos que poderiam ser colhidos naquele caminho. Deficiência se corrige no dia a dia, com análises “curtas” sobre como se operar as coisas, qual técnica usar. Já um desvio é quando se foge completamente à tão falada “linha correta”, e se colhe frutos avessos ao que estava colocado. Esse “colher frutos avessos” não nos beneficia, mas beneficia a outros! Quem são esses outros? Como e por que se beneficiam às nossas custas? Isso precisa ser trazido à luz!

Quanto à aplicação geral “da linha correta”, devemos dissertar também sobre o vanguardismo e o reboquismo. Vasta literatura marxista-leninista, tratando da relação partido-massas, aponta que a atuação vanguardista, isso é, descolada das massas por estar muito à frente delas, longe das suas demandas materiais do hoje, retarda nosso trabalho de base. Frequentemente criticamos, por exemplo, os grupos maoístas do movimento estudantil por preconizar greves de ocupação, sem construir as condições na consciência geral dos estudantes para haver apoio real, efetividade, enraizamento e aprofundamento na luta de amplas massas estudantis, buscando ocupar a qualquer custo, mesmo que seja por meia dúzia de pessoas (a maioria seus militantes, com poucos estudantes não organizados), e dure poucos dias. Essa atuação que criticamos é inconsequente, descolada da maior parte das bases, e não surte tantos frutos quanto uma ocupação feita por amplas massas. Às vezes surte até frutos contrários, facilitando uma “difamação” contra os ocupantes feita pela reitoria ou outro aparelho, já que não há amplo apelo a favor da ocupação.

Por outro lado, o reboquismo, isto é, comportar-se como aquele que deve apagar a luz e fechar a porta, também é inconsequente, e quebra a relação partido-massas, levando muitas vezes a rachas. Quando em 2013 a classe trabalhadora foi às ruas demandando melhores condições de vida e trabalho, a posição média do PT foi completamente atrasada e avessa aos levantes, com a famosa postura de Haddad de condenar os insurgentes e chamá-los de “ingratos” pois a passagem poderia ser muito mais cara que o aumento dos 20 centavos. Sabemos bem, camaradas, que esse foi um momento de importante descolamento das massas com relação à direção hegemônica petista (ainda que, na falta de uma crítica potente à esquerda, esse descolamento tenha sido aproveitado justamente pelo pior da direita). O reboquismo gera rachas por sua infertilidade, camaradas.

Quantos outros exemplos podemos citar de descolamentos e rachas devido às bases estarem muito mais avançadas que as direções? Camaradas, o que se pode falar da relação partido-massas também pode facilmente ser falado da relação dirigentes-bases dentro de um partido, e o presente racha é um dos exemplos mais vivos disso. Quanto mais à frente da velha direção partidária não estão as bases de nossa militância, com provas disso empilhando às dezenas todos os dias através de cartas públicas, denúncias, tribunas e afins!

Agora, camaradas, não apenas as “alas direitas”, suas tendências liberais e portanto não-operárias combateram os grandes marxistas, mas também especialmente o “centrão”, o pântano. A marca distintiva do pântano é a vacilação, isto é, tender hora a um lado, hora ao outro. Para sermos científicos em nossa análise, a vacilação surge quando se tenta negar o caráter inconciliável entre duas propostas opostas, sejam analíticas, estratégicas ou táticas. Não fazendo a análise materialista e consequente dos fins que se busca com tal ou qual meio, é fácil vacilar como um pêndulo ou até mesmo cair em um “dois-ladismos” que critica todos mas não apresenta nada concreto, factível, no lugar deles. Eventualmente, esse “contra todos!” cede e se deixa dobrar para um lado da disputa que seja, sim, factível. Quantas provas disso não tivemos com a terceira via natimorta do presente racha, não é mesmo?

Camaradas, tenhamos aversão ao pântano! Dirigente não deve ser como um volante, jogando na defensiva no meio de campo!

Creio estar cristalino para nós que precisamos superar o reboquismo, e também acho estar de entendimento geral que se deve evitar o vanguardismo descolado das bases… mas um dirigente deve sim, estar na vanguarda! Vanguarda enquanto conquista coerente e consequente e em diálogo constante com suas bases. Já dizia Maquiavel “fala-se de capitães sem exército, mas, na realidade, é mais fácil formar um exército do que formar capitães. Tanto isto é verdade que um exército já existente é destruído se faltam capitães, ao passo que a existência de um grupo de capitães, harmonizados, de acordo entre si, com objetivos comuns, não demora a formar um exército até mesmo onde ele não existe”.

Quanto de nossa militância não foi “destruída” na presente crise pela falta de quem assumisse, localmente, o papel de capitão, o papel de vanguarda, o papel de mostrar e demonstrar os caminhos a se seguir, criticando e expondo tanto os vacilantes como os interesses escusos (porém consequentes!) do outro lado de nossas trincheiras? Esse deve ser o papel central de um dirigente em tempos de névoas, de combate e de dificuldade! Como muito acertadamente falou o camarada Euclides, direção dirige.

Conclusão

Fazendo muito coro com Maquiavel, precisamos de capitães, ou seja, precisamos de dirigentes. Espero ter, com essas linhas, demonstrado que mais que mandar, um dirigente também deve ouvir, aconselhar, e reavaliar sua própria atuação. Afinal, vanguarda se forja; se está, não se é. Esses são alguns dos vários pontos que os dirigentes devem se atentar para tornar os espaços de nossa militância, os caminhos de nossa atuação, mais frutíferos, capacitando mais e mais militantes a se tornarem quadros, e a avançarem os trabalhos de nossa organização e a luta de classes. Uma visão reducionista, de que direção é centralização, é incorrer no mais rebaixado mandonismo, que só pode desabrochar na fina flor do controlismo demagógico: A chave de tudo - “o Partido não é uma arena da luta de classes!” Tudo o que existe no universo move-se pelas suas contradições internas. Exceto o Partido, que se move pela sabedoria da sua direcção. Amém.

Sobre a continuação deste texto

Camaradas, me nego resolutamente a, tendo discorrido com um pouquinho de profundidade sobre alguns de nossos latentes problemas e suas origens estruturais, falar “todo militante deve lembrar disso e manter essa chama acesa em seus corações, aplicando esses conhecimentos na prática em seus locais de atuação, pelo futuro de nosso partido!”. Porra nenhuma. Se de algo servirem os apontamentos que trouxe neste texto, devemos lembrar que é a estrutura quem prioritariamente molda a superestrutura, e não o contrário, e, portanto, tornar estes pontos a obrigação de alguém. Estou escrevendo junto à camarada Dora uma segunda parte do texto, onde iremos discorrer sobre quem. Em breve continuamos essa discussão, falando da estrutura do partido e sua formação de militantes!