'Da direção: paternalismo, camaradagem e centralismo democrático' (Lucas Zafalon Garcia)

Um outro bom termômetro para quadros dirigentes é também se perguntar se a lógica de funcionamento do organismo que dirigimos aponta para o horizonte social que queremos construir ou se parece mais com uma mera reprodução acinzentada das relações burguesas.

'Da direção: paternalismo, camaradagem e centralismo democrático' (Lucas Zafalon Garcia)
"Uma direção que promove o fomento de um vínculo camarada genuíno entre a militância está investindo na construção de um corpo coletivo propício para que mais e mais militantes se sintam inspirados e à vontade para aflorarem suas potencialidades e a tornarem-se quadros comunistas qualificados."

Por Lucas Zafalon Garcia* para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Introdução

Esta tribuna é a reescrita de um texto que escrevi como parte de uma formação estadual de dirigentes da União da Juventude Comunista (UJC) do estado do Rio Grande do Sul, refletindo sobre o desenvolvimento contraditório da função de direção no núcleo de base em que atuava (e ainda atuo), a UJC - Rio Grande, antes de ingressar nas fileiras do Partido. O texto antecede a crise deflagrada de nosso “complexo partidário”, mas vejo agora como muitas das questões que busquei esboçar neste texto tocam de várias formas os debates nacionais sobre centralismo democrático e a forma histórica de nossa direção - felizmente os militantes de nossa organização têm se engajado cada vez mais em fomentar este debate, como resposta às tendências burocratizantes e oportunistas da ala academicista que hoje hegemoniza o Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Por mais que eu não me proponha aqui a estender minhas reflexões iniciais escritas em outro contexto à crítica explícita da direção nacional ilegítima do PCB, espero que esta tribuna potencialize essa crítica de alguma forma, além de alimentar a renovação de nossa forma organizativa e a superação de velhos vícios de direção e de nossas relações organizativas que precisamos concretizar firmemente a partir da realização do decisivo XVII Congresso (extraordinário) do PCB.

O ciclo vicioso do “paternalismo” e suas limitações organizativas e políticas

Quando ingressei no núcleo Rio Grande da UJC, marcou-me especialmente durante os meus primeiros meses de atuação os debates internos sobre a dificuldade de superar uma relação nomeada “paternalista” entre o secretariado da época e o restante da militância do núcleo. Esse debate se apresentava menos como uma acusação crítica dos militantes contra uma postura burocratizante do secretariado e mais como um desabafo da própria direção diante da frustração de não conseguir com que os militantes do núcleo se engajassem de forma orgânica nas tarefas cotidianas e assim “desafogassem” os secretários da sobrecarga. Paternalista então no sentido de que os militantes do núcleo estariam paralisados diante da ideia de “autoridade” representada pela direção: da visão do secretariado, não teriam “iniciativa própria” e, portanto, a direção acabava em geral responsável não “apenas” por formular e dirigir sozinha as tarefas, mas também executá-las todas para “compensar” a falta de atuação da militância e, do ponto de vista do pleno, os militantes do núcleo, em geral, assumindo um papel passivo diante do secretariado, não deveriam se envolver na construção coletiva dos rumos de nosso trabalho político, mas simplesmente “aguardar maiores instruções” vindas “de cima”. De fato, do que pude observar no início de 2022, quando este cenário organizativo estava montado em meu organismo de base, tínhamos um núcleo com um engajamento da militância, um esforço de formulação geral e uma divisão de tarefas bastante problemáticos. Os quadros do secretariado concentravam grande parte do trabalho, os camaradas experientes das primeiras gerações do núcleo auxiliavam como podiam, quase como conselheiros, e o restante dos militantes respondiam e executavam as proposições do secretariado de forma bastante mecânica, ou seja, sem esforço real de pensar nosso núcleo e nossa atuação.

Rejeitando qualquer moralismo na análise desta situação, hoje, dado os avanços coletivos do núcleo UJC- Rio Grande, esse momento organizativo me faz pensar como qualquer apelo individual por mudança ou por mais “disciplina”, “proatividade” e “organicidade” por si só é insuficiente para mudar o funcionamento de um organismo de base, um organismo constituído por relações entre militantes, podendo ser inclusive uma falsa solução que por isso mantém a paralisia coletiva sob a crença de que esses apelos para mudança individual seriam “fazer algo” pela renovação do trabalho político de um organismo de base. Nesse caso específico, instaurou-se um ciclo vicioso em que o secretariado formulava, em geral, apartado do restante do núcleo, apelava para o comprometimento dos camaradas, frustrava-se com a imobilidade do restante da militância, assumia para si o papel de compensar o trabalho que deveria ser dividido e que não era devido problemas estruturais do funcionamento do núcleo e, pela suposta “falta de iniciativa”, realizava, a grande custo, o irrealizável, esgotando-se sem construir de fato a possibilidade de reformulação de nossas relações internas e mantendo portanto o secretariado e o restante da militância no mesmo tipo de relação inorgânica e exaustiva até a próxima reprodução viciosa do mesmo ciclo. O “paternalismo” então era na verdade a manutenção de uma forma de relação entre secretariado e restante da militância, em que ambos se mantinham em posições prejudiciais sem enxergar novas possibilidades de trabalho coletivo por estarem historicamente funcionando de forma estranha à lógica do centralismo democrático, resultado sem dúvida de tendências históricas de nossa organização nacionalmente e da falta de um entendimento não espontaneísta sobre direção e também sobre formação.

Penso que cada organismo de base tem uma historicidade própria e, portanto, um tempo próprio de amadurecimento de suas relações, de qual não temos completo controle, por mais que possamos e devemos analisar e intervir sobre nossas relações, para que possamos funcionar de forma mais orgânica e mais alinhada possível com a lógica de funcionamento do centralismo-democrático que potencializa nossa ação política. Como uma hipótese de análise para este caso específico, chamaria atenção para o grande crescimento do núcleo UJC-Rio Grande em um curto período de tempo durante a pandemia (contexto adverso para a formação teórica e prática adequada de militantes) que cristalizou essa forma de relação paternalista visto a discrepância formativa entre secretariado e militantes recém chegados. Vejo hoje que para romper com essa relação viciosa era necessário que nossos quadros assumissem o seu papel de direção e verdadeiramente delegassem tarefas mesmo sob o risco de que o militante encarregado e menos experimente não cumprisse em um primeiro momento suas tarefas da forma ideal pressuposta pelo secretariado, assim como era necessário criar mais mecanismos de democratização interna (e portanto de estímulo) da formulação política coletiva.

Entendo que esse cenário era/é difícil de ser rompido exatamente pelas boas intenções dos camaradas em função de direção em tentar garantir um trabalho militante constante e positivo diante do que surge na conjuntura. No entanto, por mais contraintuitivo que isso pode parecer, penso também que precisamos aprender, coletivamente, e com um protagonismo importante e necessário das direções, o quão ineficiente é “tapar o buraco” provisoriamente de problemáticas estruturais de nosso organismo de atuação com a justificativa de que há sempre algo mais urgente e importante a se lidar na conjuntura. Abrir mão da continuidade de nosso esforço de organização interna e de formação diante das reviravoltas da conjuntura é a receita anti-dialética para nos mantermos constantemente incapazes de formar quadros comunistas qualificados e ao mesmo tempo de atuar de forma efetiva enquanto vanguarda. Como diz o camarada Mao Zedong: “Não se deve esperar que os problemas se acumulem e deem lugar a múltiplas complicações, para só então tentar resolvê-los. Os dirigentes devem tomar o comando do movimento e não se deixar levar a reboque.”¹

Honestamente, penso que estamos continuamente a reboque de nossas contradições enquanto organização política sem, por isso, conseguir alcançar o patamar de um trabalho político continuado de vanguarda. Há uma frustração muito grande em perceber que nossa atuação está, via de regra, refém das mudanças abruptas da conjuntura por nossas faltas organizativas, o que nos impõe um ritmo caótico e desorganizado de atuação, em que, de repente, pegamo-nos em uma situação de responder bruscamente ao que surge de mais impactante nas disputas sociais e políticas, fazendo com que paremos quase todo o restante de nossa vida interna e com que nos cansemos até o limite para dar conta de não deixarmos de atuar diante do que acontece de mais urgente. Sei que vivíamos e vivemos em um momento de luta de classes acirrada e que não podemos simplesmente abrir mão de agir diante de situações tão importantes nas disputas nacionais e locais. Porém, o que mais me inquieta é o pensamento de que talvez somos engolidos pelo mar bravo da conjuntura exatamente porque nunca conseguimos estruturar adequadamente os fundamentos organizativos e políticos para navegar os tempos mais difíceis e não simplesmente ser levados por eles. Em um ciclo vicioso, vamos de exaustão à exaustão sem conseguir sair da posição reativa em relação à conjuntura para uma posição ativa de vanguarda.

É trabalho fundamental dos quadros de direção diante disso encontrar maneiras de organizar, orientar e potencializar nossa ação coletiva diante da conjuntura dentro de nossas limitações reais sem perder de vista como podemos usar da conjuntura ao nosso favor inclusive para orientar e fomentar a construção constante de novos quadros políticos em nossa organização, para romper a dependência das amplas bases militantes de um pequeno grupo de quadros de direção. Espero que seja claro que entendo que o caso do núcleo UJC - Rio Grande é relevante aqui, pois pode servir para pensarmos nosso trabalho militante em todos país. Isso que os militantes do núcleo UJC - Rio Grande nomearam como uma relação “paternalista” entre direção e base é uma contradição que rasga de ponta a ponta nossa organização e, como não poderia deixar de ser, impacta a qualidade de nosso trabalho político.

Caminhos possíveis para uma nova forma de direção: trabalho coletivo e camaradagem

Além de formular e pensar medidas estritamente formativas para um organismo de base, o trabalho de delegação e orientação de tarefas por parte da direção é também uma forma de aumentar o conhecimento teórico e prático geral das bases e de qualificar os militantes de um organismo para garantir que a militância não tenha uma relação paralisante de dependência com os quadros dirigentes. Mao, reforçando o princípio materialista do primado da prática, ajuda-nos a refletir sobre isso: “Todo aquele que quiser conhecer uma coisa ou fenômeno não poderá consegui-lo sem pôr-se em contato com essa coisa ou fenômeno, isto é, sem viver (entregar-se à prática) no seu próprio seio. Se se deseja adquirir conhecimentos há que tomar parte na prática que transforma a realidade.”²

Não há como, portanto, formar-se enquanto militante sem militar propriamente, lidando com diferentes situações concretas que envolvem o todo de nosso trabalho político. Em outros termos, uma relação dialética e produtiva entre quadros dirigentes e militância de base somente se dá com uma divisão apropriada de tarefas que supere a separação burguesa e artificial do trabalho intelectual e manual, projetando toda a militância em uma atuação concreta, inclusive no trabalho concreto de pensar (projetar, analisar e refletir sobre) nossa atuação. Todos camaradas, de formas diferentes, devem estar comprometidos com a prática revolucionária e isso, no meu entender, apenas se realiza quando se proporciona dispositivos de formulação e de execução coletivos de tarefas, projetados e orientados pela visão de todo da direção que não pode, por isso, nunca fechar os espaços para que a militância realize também uma reflexão crítica sobre sua atuação, proponha novas possibilidades de ação e tome os rumos, mesmo que dirigido, das tarefas que precisam ser realizadas.

Outra vez Mao:

“É preciso saber cuidar dos quadros. Há várias maneiras de fazê-lo. Primeiro, dar-lhes uma orientação. Isso significa deixá-los trabalhar com liberdade para que eles tenham a coragem de assumir as suas responsabilidades e, ao mesmo tempo, dar-lhes oportunamente instruções, de modo que, guiados pela linha política do Partido, sejam capazes de pôr plenamente em jogo o seu espírito criador. Segundo elevar-lhes o nível. Isso significa educa-los, dar-lhes uma oportunidade para estudarem, a fim de que possam ampliar os seus conhecimentos teóricos e aumentar a sua capacidade de trabalho. Terceiro, verificar o seu trabalho e ajuda-los a fazer o balanço das suas experiências, multiplicar os seus êxitos e corrigir seus erros. [...] Quarto, relativamente aos quadros que cometeram erros, devemos usar em geral o método da persuasão e ajuda-los a corrigir esses erros. [...] A paciência é, portanto, essencial.”³

A citação é longa, mas necessária, porque condensa perfeitamente a relação entre direção, formação, qualidade e divisão do trabalho revolucionário. Os quadros que assumem a tarefa de direção, via de regra, por determinações diferentes, são aqueles quadros que estão melhor preparados para analisar situações concretas e formular formas de ação coletiva nos moldes de nossa organização. Mas isso de nada serve se essas mesmas capacidades não forem canalizadas igualmente no sentido de elevar o nível geral de atuação da militância como um todo. Eu diria que um trabalho fundamental de um quadro dirigente é projetar novos quadros dirigentes, ou ao menos direcionar os militantes no sentido do maior despertar possível de seus potenciais dentro de suas limitações materiais. Afinal, não há trabalho revolucionário qualificado possível em uma frente ou local de atuação se todo o trabalho estiver concentrado nas mãos de pouquíssimos camaradas, o que gera, inclusive, problemas óbvios de exaustão e potencialmente de afastamento ou desligamento de quadros dirigentes – como sabemos bem, o que é frequente em nossa organização.

Para que isso possa se realizar, é papel então da direção pensar concretamente, ou seja, com profundidade e com especificidade baseada na realidade da militância que dirige, como criar mecanismos coletivos para romper com a relação paternalista e viciosa entre direção e militância de base. No caso particular do núcleo UJC - Rio Grande, com uma reformulação gradual e muito saudável do secretariado na metade do ano de 2022, investiu-se cada vez mais em romper com essa forma paternalista de relação entre direção e base ao investir na transformação da lógica interna de funcionamento do núcleo, através da criação e a organização de comissões, do estudo mais aprofundado da realidade de cada militante e do direcionamento desses para diferentes frentes e pastas de atuação a partir desse estudo, de uma cultura mais constante de repasses, de escrita de balanços e de polêmicas por parte do secretariado, da consulta mais constante e propositiva dos militantes do núcleo, do investimento mais constante em formações, espaços de debate e mesmo de “desabafo” das dificuldades pessoais e coletivas da militância, do entendimento gradual da importância do secretariado não aguardar por iniciativas individuais de militantes, mas delegar e orientar tarefas, etc. Investimentos organizativos e formativos como esses foram cruciais para fazer avançar nosso trabalho político.

Sem dúvida, ainda o fantasma do paternalismo e as dificuldades na relação entre direção e base militante persistem nesse organismo de base. Do meu ponto de vista, estamos recém começando a dar-nos conta de como deve funcionar essa relação autêntica entre direção e base e a elaborar meios de colocá-la em prática. Ainda caímos em descontentamentos morais, justificáveis de um ponto de vista subjetivo, mas inapropriados no sentido de transformação da nossa própria atuação, com a falta de iniciativa e comunicação, o desinteresse formativo, o silêncio e a inorganicidade dos militantes. Resta-nos tomar esse descontentamento como motor criativo constante de reformulação das nossas relações, da nossa lógica de funcionamento e de combate de nosso desconhecimento de como deve funcionar um trabalho político de vanguarda para poder criar um terreno objetivamente propício para o aflorar dos quadros comunistas que desejamos. Lamentações, por mais bem intencionados ou subjetivamente justificáveis em um momento específico que sejam, são inúteis. O trabalho dirigente é também, na minha visão, ser a vanguarda da vanguarda. Não digo isso sentido de qualquer iluminação especial atribuída à direção, mas no sentido de que os militantes da direção devem estar à frente do compromisso de realizar a luta ideológica interna e de com isso promover educação política no interior do seu próprio organismo de atuação.

Para isso, precisam, dentro do possível, ser “bons modelos”, precisam ser acessíveis, precisam criar vínculo real com o restante da militância, ou seja, aprender a escutar, debater, construir, fomentar, formular e trabalhar com a camaradagem; enfim, tudo que queremos projetar para o exterior, nas relações sociais em que agimos politicamente, através de nossa organização, deve ser espelhado em um investimento na nossa própria vida interna e em nossas próprias relações, tomando a direção como aqueles quadros que melhor encarnam essa postura e conseguem produzir identificação e entusiasmo no restante da militância. O que se soma claro a uma relação afetiva real com o estudo que também possa fazer ecoar o mesmo entusiasmo pela formação nos outros militantes.

O trabalho através de comissões de pasta tem sido uma ferramenta excelente para isso. No lugar de pensar uma comissão como um mero executor dos mandos do secretariado, temos aprendido a se utilizar das comissões como espaços coletivos de formulação e organização das tarefas referentes a uma pasta; assim cada representante do secretariado no núcleo UJC - Rio Grande compartilha as funções de direção de determinada pasta com um grupo destacado de camaradas que se formam concomitantemente à prática cotidiana para assumir no futuro a tarefa de direção. No lugar de trazer propostas fechadas ao pleno do núcleo e artificialmente querer convencer a base militante da importância de realizar essas propostas, a direção expande os ciclos de formulação do organismo de base através das comissões e engaja o restante da militância ao conectar os trabalhos, já coletivos desde o início, de cada grupo de trabalho do organismo de base. Algo que somente pode funcionar, é claro, se o quadro destacado do secretariado consiga estabelecer uma relação orgânica com aqueles militantes da comissão, incentivando que esses assumam também o papel de direção, rejeitando manter-se na posição paternalista antes criticada.

Acrescento brevemente a esse debate a importância gradual que o núcleo UJC - Rio Grande tem dado às discussões sobre camaradagem, que me parece também uma grande lição para todo nosso complexo partidário nacionalmente. Os quadros dirigentes devem ser exemplares no entendimento e na prática da camaradagem para que possam assim reverberar nas relações da base. Não há organicidade coletiva e, portanto, trabalho político qualificado sem um vínculo real (não formal) de camaradagem. Os quadros dirigentes precisam também ser os mais conscientes e entusiastas disso. É a partir de um vínculo e uma identificação orgânicos entre os sujeitos compromissados com a transformação da sociedade que se encontrará mais disposição para continuar nossa luta árdua pela revolução e uma abertura para a construção de um corpo coletivo que sustente essa luta, o que passa pelo enfrentamento constante ao individualismo que reverbera em nós e a todo tipo de amiguismo, que é reflexo dessa lógica egocêntrica e narcísica do individualismo, de querer apenas próximo de nós aqueles que são como nós. Reconhecer, apesar de nossas diferenças, que nossa união por um objetivo revolucionário comum deve ser motor para uma relação afetiva, solidária e organizativa que antecipa a sociedade por vir é basilar para construir quadros militantes engajados no trabalho político de um organismo e por isso para romper com a lógica paternalista entre direção e base. No entanto, outra vez, não é suficiente reconhecer essa necessidade e esperar efetivá-la com apelos esporádicos e artificiais; é preciso gestar essas relações de camaradagem. Para isso, deve fazer parte do investimento de uma organização política contemplar em sua vida interna e em sua forma organizativa espaços propícios para criação do vínculo de camaradagem, como ambientes festivos, culturais, de troca e de diálogo, etc.

Não é uma saída suficiente afirmar que a camaradagem é um vínculo político que nada tem a ver com nossa vida pessoal, ou enfatizar que a camaradagem não é amizade, mesmo quando esses enunciados vêm com a boa intenção de querer combater os vícios pessoalistas ou sectários. A questão é que o pessoal é político em algum nível e, como marxistas, deveríamos saber que não há nada de “natural” e “inocente” em nossas preferências por certas pessoas e em nosso desprezo por outras. A classe trabalhadora é um todo que, apesar de estruturalmente determinada por uma gênese social comum, guarda uma ampla diversidade que se manifesta na forma como cada um de nós desenvolve sua subjetividade e, se não aprendermos a abrir-nos para essa diversidade e a melhor operar com ela, seremos incapazes inclusive de nos inserir nas amplas massas do país pelos mesmos motivos. Isso não é sobre afirmar que devemos “gostar” de todos que militam conosco a priori, ou que devemos negar nossas particularidades diante de outros camaradas, mas é sobre defender a necessidade de nos educarmos subjetiva e afetivamente, de forma coletiva, para lidar com nossas diferenças e torná-las produtivas. Afinal, não é raro perdermos camaradas valiosos ou fragilizarmos nosso trabalho político exatamente porque não temos capacidade de lidar de forma saudável com nossa diversidade e com nossos conflitos. Não ter espaços propícios e pensados para elaborar nossas diferenças e para buscar nos aproximar a partir delas irá desembocar, sem dúvida, em revanchismos bobos, em adoecimento mental e em entraves para uma ação política unificada e firme.

O debate sobre a direção se entrelaça com o debate sobre a camaradagem em dois sentidos cruciais. Em primeiro lugar, no sentido óbvio de que o destaque de camaradas para tarefa de direção não pode servir à lógica amiguista de “promover” os próximos e formar um grupo seleto apartado das bases, impossibilitando a ampla formação de nossos quadros e um trabalho coletivo orgânico. E, em segundo lugar, no entendimento de que, se a direção de um organismo não consegue manter esse tipo de vínculo e relação de camaradagem entre si, será muito difícil pressupor que esses mesmos quadros dirigentes poderão estender esse tipo de postura e promover esse tipo de relação para com o restante da camaradagem de forma integral. Uma direção que promove o fomento de um vínculo camarada genuíno entre a militância está investindo na construção de um corpo coletivo propício para que mais e mais militantes se sintam inspirados e à vontade para aflorarem suas potencialidades e a tornarem-se quadros comunistas qualificados.

Direção, centralismo democrático e a sociedade por vir

Retornando mais firmemente ao debate sobre as limitações da forma dominante de direção de nossa organização, eu defenderia que os vícios paternalistas nas instâncias diretivas se dão, entre outros determinantes, porque temos ainda uma relação muito espontânea com a ideia de direção e tudo que ela implica – capacidade de analisar, formular, delegar e orientar; capacidade de criar o terreno propício para elaboração, reflexão e formação coletivas; capacidade de articular as diferentes esferas de nossa atuação em suas relações reais; capacidade de realizar a luta ideológica externa e interna; capacidade de ser um polo irradiador de uma nova forma possível de sociabilidade dentro do deserto afetivo do capital inspirado pelos princípios da camaradagem, etc. Afinal, para assumir esse papel adequadamente é necessário pesquisa, experiência prática, o compartilhar de acúmulos e formação voltados para pensar cientificamente o que é a tarefa de direção, o que basicamente inexiste ou se dá de forma muito artesanal em nossa realidade. Muitos camaradas assumem tarefas de direção muitas vezes sem mediações formativas além da boa vontade de antigos quadros que repassam algumas ideias vagas (às vezes possivelmente equivocadas) sobre o trabalho de direção para que depois esse “processo formativo” siga na busca de descobrir espontaneamente como “tapar o buraco” de nossos problemas estruturais.

Tudo isso é fundamental, pois devemos ter um entendimento claro de que, antes mesmo de sermos comunistas, somos todos, como não poderia ser diferente, sujeitos à ideologia dominante (a ideologia da classe dominante) que nos formou e significou o “mundo” para nós. Dessa forma, todo trabalho artesanal ou espontâneo é um trabalho inconscientemente orientado pela ideologia burguesa. Parte do trabalho de se tornar um quadro comunista, e os camaradas dirigentes, a meu ver, devem ser aqueles mais avançados nesse processo complexo de educação teórica e prática, é exatamente colocar em xeque as evidências da ideologia dominante em nosso próprio fazer e pensar novas formas de se relacionar e de significar a partir de nosso projeto político, social e ideológico orientado pela revolução socialista. Isso nunca pode ser resumido à “iniciativa individual” do militante. Do meu ponto de vista, se mantivermos uma lógica simplista em que depende de cada um pura e simplesmente “assumir suas responsabilidades” e se tornar um militante disciplinado sozinho avançaremos muito pouco e iremos operar por uma lógica excludente e meritocrática em que aqueles sujeitos em nossas fileiras com um terreno social mais propício para tal, por motivos vários e muitas vezes resultantes das desigualdades em nossa sociedade, serão sempre aqueles mesmos que assumirão o papel de direção, mantendo insuficientemente a elevação formativa e política da base da militância. Por isso, volto a insistir na ideia de que todo quadro dirigente deve tomar como tarefa investir no avanço formativo coletivo, do todo de seu organismo, mas também de todos os quadros militantes individualmente que estão sob sua visada.

Em uma última ponderação sobre os efeitos da relação espontânea com a ideia de direção que, a meu entender, opera muitas vezes em nossa organização através dos efeitos da lógica de funcionamento da democracia burguesa é uma compreensão formal de representação. Desde que ingressei na militância política em nosso complexo partidário, observei algumas vezes duas posturas que, a meu ver, são efeitos articulados disso: 1) por um lado, da parte de militantes em tarefas de direção, um pressuposto de que a direção deve “dar conta de tudo” e assim uma hesitação em instigar organizadamente o debate da base militante por pensar que precisa sempre ter uma proposta ou uma análise realizada plenamente de antemão e independentemente do pleno e 2) por outro lado, da parte das bases militantes, uma postura por vezes idealizante dos camaradas em tarefa de direção que paralisa a atuação do restante da militância e que desestimula a polêmica constante e aberta, assim como um curioso “medo” de assumir responsabilidades e de se posicionar. Isso, na minha análise, é correlato à relação existente entre a política liberal representativa e a chamada “população” ou “sociedade civil”. Operamos, mesmo inconscientemente, muitas vezes como se a eleição de uma direção devesse limitar o fluxo de formulações e de ação quando o papel de direção deve ser exatamente o contrário: uma organização leninista, pensada a partir do centralismo democrático, deve ser um organismo coletivo coeso, mas fervilhante, em constante movimento teórico e prático em todos os sentidos. A divisão revolucionária do trabalho e da reflexão pressupõe a militância trabalhando em diálogo constante em diferentes esferas articuladas.

O Poder Popular pressupõe a classe trabalhadora em toda sua diversidade como um todo devidamente organizada, pensando e agindo, em relação à organização de vanguarda e não imobilizada no aguardo da iluminação dos quadros comunistas – se não for assim, não estaremos construindo uma forma de poder paralelo ao Estado burguês. O mesmo vale para como deve funcionar a lógica interna de nossa organização que, como já disse, deve servir de antecipação de uma nova forma de organização social. Um organismo de base para ser vivo, ativo e pulsante precisa de militantes em constante ação, analisando, formulando e realizando tarefas. Para mim, a direção deve ser sempre incentivadora disso e propiciar o melhor terreno organizativo possível para que isso aconteça. O que chamamos de “proatividade” e de “organicidade” deve ser um efeito da capacidade da direção de projetar e orientar o funcionamento coletivo de nosso organismo político no sentido de produzir militantes ativos, e não ser justificativas mascaradas para reprodução da ideologia psicologizante burguesa das limitações da “personalidade de cada indivíduo”.

Penso que um bom termômetro para a direção deve ser o nível de engajamento contínuo da militância e a capacidade, é claro, de canalizar esse engajamento nas formulações mais competentes e na ação séria e comprometida com a posterior autocrítica e reflexão. Isso está intimamente ligado com um bom vínculo de camaradagem que sirva de apoio para as mazelas da vida capitalista e para a produção criativa de mecanismos coletivos de estudo, de reflexão crítica, de deliberação e formulação coletivas, de planejamento e preparação para tarefas e de ação. A direção pode e deve ser o estopim e a manutenção constante desse funcionamento, mas não pode nunca recair no pressuposto burguês de que é capaz de esgotar tudo em si mesma por ser uma suposta representação eleita ideal e então independente e suficiente em sua ação até uma próxima consulta artificial do restante da militância.

Um outro bom termômetro para quadros dirigentes é também se perguntar se a lógica de funcionamento do organismo que dirigimos aponta para o horizonte social que queremos construir ou se parece mais com uma mera reprodução acinzentada das relações burguesas. Caso sejamos internamente uma repetição da mesmice de nossa formação social é bem possível que não estamos agindo plenamente para a produção do novo no local em que atuamos. Em uma formação social que constrói sua reprodução às custas do apassivamento e do silenciamento constantes das massas, deveríamos repudiar, enquanto comunistas, qualquer forma de direção que não tem como princípio não somente “permitir”, mas alimentar a mais ampla e contínua liberdade de crítica para produção de uma nova forma de subjetividade inconformada com as nossas condições presentes e sempre disposta a querer mais quando se trata da reconstrução de nossas relações sociais. Como estamos aprendendo com a crise deflagrada de nosso Partido, pensar que nossas contradições “internas” estão apartadas de nossas limitações políticas é um prato cheio para o oportunismo. Liberdade de crítica e unidade de ação andam juntas, uma potencializando a outra, e uma direção que suprime a crítica serve aos propósitos burgueses em nossa vida interna por enfraquecer a construção orgânica de uma ação firme, radicalizada e coletivamente legitimada.

*Militante do PCB RR Rio Grande/RS

¹Citações do presidente Mao Zedong. XXII. Métodos de pensamento e de trabalho. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/mao/1966/citas/cap22.htm

²Citações do presidente Mao Zedong. XXII. Métodos de pensamento e de trabalho. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/mao/1966/citas/cap22.htm

³Citações do presidente Mao Zedong. XXIX. Os quadros. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/mao/1966/citas/cap29.htm