Rio Grande do Sul: uma tragédia “planejada”

Sucessivos alertas de risco foram ignorados pelo governador Eduardo Leite e pelo prefeito de Porto Alegre Sebastião Melo, os quais, além disso, atuaram diretamente no desmonte privatista das já insuficientes estruturas de contenção e prevenção contra enchentes.

Rio Grande do Sul: uma tragédia “planejada”
Cidade de Encantado - RS / Imagem: Diego Vara/Reuters.

Por Redação

O Rio Grande do Sul vive as consequências de um sistema político que rifou todo o planejamento de contenção de enchentes no Estado. A estrutura pública sofreu com diminuições significativas a nível de patrimônio, como é o caso da concessão do Cais Mauá em Porto Alegre, além de corte no número de funcionários e da verba pública no sucateamento do DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgotos) em Porto Alegre e o orçamento estadual de pífios R$50 mil reais para a Defesa Civil deste ano. O desejo da classe burguesa e de seus representantes políticos pelo lucro, pelo privatismo e seu dogma de austeridade levaram o governo estadual a tomar todos os riscos e, em última instância, praticamente “planejar” essa tragédia. Hoje, os números da tragédia climática no Rio Grande do Sul somam 116 mortos, além de 756 feridos e 143 desaparecidos, cálculos que aumentam diariamente. Ao todo, 330 mil pessoas estão desalojadas de suas casas e ao menos 70 mil permanecem em abrigos.

O estado sulista sofre nos últimos anos com eventos extremos e que se alternam de chuvas intensas à secas severas. No caso das chuvas, apenas em 2023, dois casos chamaram a atenção de peritos e especialistas: em junho 16 pessoas morreram no litoral norte do Rio Grande do Sul e, logo em seguida, uma chuva torrencial banhou o estado nos primeiros cinco dias do mês de setembro com o equivalente ao volume de água que caiu no mesmo período há um ano. Esse evento fez com que a cota de inundação do rio Guaíba fosse ultrapassada em 3 metros, tomando a orla e invadindo as casas de moradores do entorno – neste segundo evento, apesar dos desalojados, não houve mortes registradas.

Apesar de avassaladores, os eventos que tomam o Rio Grande do Sul não são imprevisíveis. No entanto, o governo de Eduardo Leite (PSDB) negligenciou os alertas ambientais e diminuiu paulatinamente os recursos em prevenção e monitoramento para redução de impactos. Vale lembrar que a região apresenta períodos de cheias há décadas, como foi o caso da enchente de 1941, em que as águas de maio transbordaram a Lagoa dos Patos e invadiram a cidade. Hoje, porém, os acontecimentos são mais constantes e expressivamente mais calamitosos em razão do aquecimento global. Em 2017, o governo estadual encomendou um Plano de Prevenção de Desastre, que jamais foi finalizado.

O Adapta Brasil, plataforma ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia que avalia os riscos dos municípios brasileiros em relação às mudanças climáticas apresentou ainda em 2023 um número preocupante: 41% das cidades do Rio Grande do Sul, incluindo sua capital, apresentaram índice “baixo ou muito baixo” para capacidade de se ajustar e responder a possíveis tragédias geo-hidrológicas de inundações, enxurradas e alagamentos.

Se em 2022 a previsão orçamentária para aparelhamento da Defesa Civil do Rio Grande do Sul era de R$ 1 milhão, em 2023 houve queda de 81%, indo para R$ 100 mil apenas. Já em 2024, o número caiu pela metade: apenas R$ 50 mil foram apresentados enquanto previsão orçamentária. Houve redução ainda do valor de Gestão de Projetos e Respostas a Desastres Naturais, que passou de R$ 6,4 milhões em 2022 para R$ 5 milhões no ano seguinte. Além disso, a Agência Pública levantou que em 2023 o governo federal reconheceu 433 vezes o decreto de situação de emergência e de calamidade pública relacionadas à chuva apenas para o estado do Rio Grande do Sul. O número reflete praticamente metade de todos os decretos deste tipo em todo o país.

Os eventos climáticos estão notoriamente se alterando em razão do aquecimento global e, no Brasil, o Rio Grande do Sul é, em larga medida, o estado mais afetado. Entretanto, os recursos estaduais estão sempre aquém da real necessidade que se estabelece historicamente e, ainda mais grave, são também alvo de uma política de austeridade estrita. Com a diminuição dos recursos, as cidades do Rio Grande do Sul são levadas a solicitar tais decretos de calamidade pública para liberação de recursos federais para os diversos problemas derivados das chuvas, como granizo, enxurradas, inundações, vendavais, alagamentos, deslizamentos e tornados.

Não há uma preocupação orçamentária que defina como prioridade a qualidade e a mera possibilidade de vida dos moradores do Rio Grande do Sul. O Brasil, porém, detém ferramentas e políticas públicas de controle, manutenção e previsão destas tragédias. Ligada ao governo federal, a iniciativa Política por Inteiro faz acompanhamentos sobre as questões climáticas e confeccionou até mesmo um Monitor de Desastres atualizada a cada semana. Os resultados desse acompanhamento comprovaram a incidência de questões relativas às chuvas no estado do sul e apontou ainda mudanças no padrão climático da região. Se em 2019 as emergências climáticas se davam principalmente no primeiro trimestre do ano, aos poucos as incidências começaram a crescer também no segundo e quarto trimestres, principalmente a partir de 2022 – sem, no entanto, diminuir os desastres como inundações nos meses de janeiro a março.

Assim, os dados estatísticos apontavam na contramão da política orçamentária do governo estadual de Eduardo Leite, isto é, para um aumento consequente dos recursos para prevenção de tragédias climáticas. E se em 2023 já fora comprovado um aumento de questões climáticas na região, 2024 se iniciou com uma ocorrência atípica do El Niño – fenômeno sazonal que causa um aquecimento anormal nas águas do Pacífico e aumenta possibilidade de chuvas no sul do país, que se estendeu para o mês de maio. Desse modo, 6 a cada 10 municípios gaúchos tiveram ao menos uma emergência por chuva no ano passado.

No caso atual, o rio Guaíba, que margeia Porto Alegre, teve a maior cheia nos últimos 83 anos e colocou a capital toda embaixo d’água. O sistema de barreiras de prevenção a enchentes na capital gaúcha data da década de 1960 e já não suporta as frequentes chuvas torrenciais que castigam o sul do país. A barreira da usina hidrelétrica 14 de Julho se rompeu no dia 2 de maio e a comporta do Guaíba atingiu as marcas históricas logo no dia seguinte. A falta de manutenção já era apontada como um risco por especialistas da Associação Brasileira de Mecânica dos Solos e Engenharia Geotécnica. Para Luciano Machado, pesquisador e engenheiro civil da associação, há ainda 4 barragens na iminência de um colapso, localizadas nas cidades de Bento Gonçalves, Canela, Cotiporã e São Martinho da Serra. “É preciso refazer as barragens e estudar do ponto de vista hidrológico qual é o tipo de projeto mais adequado para recompor essas estruturas. Não tem outra opção, tem que modernizar e refazer”, afirmou em entrevista à Agência Pública.

A Associação não foi a única a alertar sobre os riscos. Desde março, a MetSul Meteorologia vem alertando sobre as chuvas intensas de abril e maio. Ao fim de abril algumas regiões sofreram impactos de chuvas e granizo e, no dia seguinte, a Defesa Civil contabilizou impactos climáticos em 15 municípios do Rio Grande do Sul. No dia 29 de abril a Inmet emitiu alerta vermelho em razão do nível de chuvas no estado, apontando riscos de alagamentos e transbordamentos de rios. Nos dias 2 e 3 de maio, frente à omissão flagrante do governo Eduardo Leite, o Rio Grande do Sul decretou calamidade pública, quando já eram registradas 39 mortes e o número de desaparecidos sequer era contabilizado de maneira precisa, dado o pânico e os desabrigados. A marca de 100 mortes foi registrada no dia 7 de maio e, atualmente, o número de afetados chega a 1,3 milhão de pessoas, com mais de 400 cidades sofrendo as consequências diretas da política neoliberal que rege o estado.

De tal modo, as cidades da região sul encontraram-se frente a uma emergência climática em ascensão no planeta, um El Niño que encontrou diante de si uma política negligente e austera que joga com as vidas dos milhões de habitantes do Rio Grande do Sul. Ainda que a topografia do Vale do Taquari proporcione uma facilidade para as enchentes, os alertas de eventos extremos estão sendo antecipados para até uma semana dos acontecimentos. Esse nível de tecnologia, para o climatologista Francisco Aquino, chefe do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é o suficiente para tomar medidas que minimizem consideravelmente o impacto das chuvas na região. Porém, somente se as precauções e as políticas de manutenção da rede de escoamento de água das cidades tiverem um orçamento no patamar das necessidades da região. Com os níveis atuais, no entanto, o governo estadual somente age de maneira reativa diante das calamidades. O Brasil todo vislumbra agora as consequências de uma política que desdenha dos impactos ambientais em nome do dogma da austeridade. O discurso do governador Eduardo Leite de “não vamos procurar por culpados”, neste momento, somente busca relativizar os danos das atitudes do seu atual governo, o real culpado pelas mortes, pelos desabrigados e pelos desaparecidos.

O CAIS MAUÁ

Localizado no centro de Porto Alegre e fronteiriço a cerca de 3km das águas do rio Guaíba, o Cais Mauá é alvo de um sucateamento histórico há décadas e, por esta razão, a Defesa do Civil do Rio Grande do Sul emitiu alerta de “inundação extrema” do seu sistema contra inundações, informando o rompimento do portão 14. Patrimônio histórico da capital gaúcha, o Cais Mauá é um reconhecido cartão postal do estado do Rio Grande do Sul. Tombado como patrimônio histórico nacional e municipal, o local completou 100 anos em 2021. Desativado para atividades portuárias desde 2005, o Cais conta com 3.240m de extensão e cerca de 187 mil m² e a responsabilidade sobre sua gestão, utilização e preservação é do governo do estado.

Desde 2010, porém, o Cais foi alvo de uma das medidas privativas mais recorrentes do neoliberalismo, a “parceira público-privada”, por meio de concessão para uma empresa que, em teoria, investiria R$ 500 milhões para nos próximos 4 anos implementar um polo empresarial e comercial na área do antigo porto da Capital. Após anos sem obras e diversas infrações cometidas pela empresa, o contrato foi rescindido. Atualmente, o projeto de revitalização está em fase de estudos para uma nova modelagem. Este processo, porém, é encaminhado centralmente pela lógica privatista que tem permeado o desenvolvimento da região que margeia o rio Guaíba.

O local tem sido entregue a uma dinâmica que favorece a degradação inicial para depois oferecer soluções lideradas pela iniciativa privada, o que restringe o acesso a um espaço que deveria ser público e acessível a todos. Além disso, há uma transformação do espaço cultural e de lazer do Cais em um ambiente cada vez mais comercial. O presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil – RS, Rafael Pavan dos Passos, menciona que o Cais, apesar de ter sido palco de eventos culturais importantes, está sendo direcionado para um modelo de grande shopping a céu aberto, reduzindo seu potencial cultural da região, tendo como foco principal somente as atividades comerciais e praticamente nenhuma manutenção de suas barragens.

O SUCATEAMENTO DO DMAE EM PORTO ALEGRE

O Ministério Público de Contas (MPC) emitiu um parecer que propõe a aplicação de multa ao ex-prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior (PSDB), devido a irregularidades encontradas na gestão do Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE). O MPC apontou, dentre diversos problemas, o déficit de pessoal que atingiu significativamente o funcionamento do departamento, sendo que em novembro de 2020 mais de 60% dos cargos criados estavam vagos.

O parecer ressaltou a “ingerência do Executivo” na gestão do DMAE, mencionando atos administrativos e de gestão que foram contrários às normas de administração financeira e orçamentária. Isso resultou em falhas no abastecimento de água, principalmente na região sul da cidade, e causou prejuízos financeiros extremos ao DMAE. A manifestação do procurador-geral Geraldo da Camino também enfatizou a importância de instaurar um processo para acompanhar os procedimentos relacionados à desestatização do DMAE. A ação do MPC está inserida em uma inspeção especial que aborda a crise no abastecimento de água em Porto Alegre. Há, para além do sucateamento do Cais Mauá e o corte sistemático do orçamento para Defesa Civil do Estado, um processo de sucateamento geral dos serviços públicos estaduais.

A CRISE DO DESABASTECIMENTO EM PORTO ALEGRE

Os moradores do Rio Grande do Sul enfrentam, para além de todo o número de desabrigados, desaparecidos e óbitos, com o desabastecimento em meio à calamidade, correndo aos supermercados para adquirir itens essenciais como papel higiênico, água e alimentos. Embora algumas regiões tenham dificuldades em repor produtos, entidades como a Associação Gaúcha de Supermercados (Agas) e a rede Zaffari negam a existência de desabastecimento, apontando problemas pontuais de reposição devido a questões logísticas. Por outro lado, há relatos e cenas de mercados devastados, visto que a população famélica teve de buscar seus alimentos sem, entretanto, portar qualquer dinheiro para seus bens essenciais.

Gabriel Maia, um morador de Porto Alegre, relatou à CNN a surpresa ao se deparar com filas extensas e prateleiras vazias de itens como pães, arroz e macarrão. A rede de supermercados Zaffari e o Sindicato Intermunicipal do Comércio Varejista de Combustíveis e Lubrificantes do Estado (Sulpetro) asseguram a regularidade no abastecimento, apesar de eventuais rupturas que são prontamente solucionadas. A situação é mais crítica no fornecimento de água e energia elétrica, com centenas de milhares de pontos sem energia e imóveis sem água potável.

Frente ao sucateamento do DMAE e a tragédia anunciada que resultou nas enchentes, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), ao invés de propor soluções a uma população duramente agredida pela má gestão do poder público, anunciou o racionamento de água na cidade devido ao desligamento de cinco das seis estações de tratamento pelo Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae). Hoje, 85% população de Porto Alegre está desabastecida. As estações de tratamento afetadas pelas enchentes, como ETA Menino Deus, ETA Moinhos de Vento, ETA Tristeza e ETA São João, impactaram diversos bairros da cidade, deixando-os sem água. A ETA Belém Novo é a única em funcionamento.

O ORÇAMENTO DE GUERRA PARA O RIO GRANDE DO SUL

A deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS) apresentou na Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que visa instituir um Regime Extraordinário Fiscal, Financeiro e de Contratações para o Rio Grande do Sul durante o atual estado de calamidade pública. A PEC busca agilizar e desburocratizar o acesso do estado a recursos essenciais, simplificando processos de contratação emergencial de pessoal e aquisição de bens e serviços.

Os principais pontos da PEC incluem a suspensão das limitações orçamentárias para permitir ações governamentais que demandem aumento de despesa, a suspensão temporária dos pagamentos da dívida estadual com a União para direcionar recursos ao combate e reconstrução, e a garantia de transparência e controle por meio de relatórios mensais sobre operações de crédito e gastos emergenciais pelo Ministério da Fazenda. A PEC enfatiza a necessidade urgente de medidas extraordinárias diante do cenário catastrófico enfrentado pelo Rio Grande do Sul, visando facilitar o acesso do estado a recursos e ações que visem mitigar os estragos causados pela calamidade. A PEC aguarda a assinatura de 171 deputados e deputadas para avançar na Casa e ser discutida em Congresso.


REFERÊNCIAS

https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/05/07/porto-alegre-nao-investiu-um-centavo-em-prevencao-contra-enchentes-em-2023.htm?utm_source=twitter&utm_medium=social-media&utm_campaign=noticias&utm_content=geral

https://apublica.org/2023/09/governo-do-rio-grande-do-sul-engavetou-planos-para-lidar-com-mudancas-climaticas/

https://apublica.org/2024/03/rs-teve-40-dos-decretos-de-situacao-de-emergencia-relacionados-a-chuva-em-2023-no-pais/

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https://sul21.com.br/noticias/geral/2023/09/em-nota-oficial-metsul-contesta-declaracoes-de-eduardo-leite-sobre-volume-de-chuvas/

https://www.brasildefators.com.br/2021/08/20/cais-maua-patrimonio-historico-de-porto-alegre-completa-100-anos-fechado-e-em-maos-privadas

https://www.brasildefators.com.br/2021/11/26/revitalizacao-do-cais-preve-construcao-de-9-torres-e-derrubada-parcial-do-muro-da-maua

 https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/mpc-pede-multa-contra-ex-prefeito-de-porto-alegre-por-gest%C3%A3o-do-dmae-1.1068208

https://simpa.org.br/ministerio-publico-de-contas-emite-parecer-sobre-o-dmae/

https://www.assufrgs.org.br/2019/02/05/ministerio-publico-de-contas-aponta-que-falta-de-servidores-prejudica-os-servicos-do-dmae/

https://www.cartacapital.com.br/politica/o-que-e-o-orcamento-de-guerra-que-o-congresso-quer-aprovar-apos-a-tragedia-no-rio-grande-do-sul/

https://fernandapsol.com.br/2024/05/06/catastrofe-no-rs-fernanda-melchionna-propoe-pec-da-calamidade-com-objetivo-de-facilitar-o-acesso-do-rs-a-recursos-para-a-reconstrucao-do-estado/

https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/corrida-por-produtos-gera-filas-em-supermercados-no-rs-empresas-negam-desabastecimento/

https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/06/com-parte-de-porto-alegre-sem-acesso-a-agua-das-torneiras-prefeitura-decreta-racionamento.ghtml