Punição à Vai-Vai após desfile homenageando 50 anos do Hip-Hop é tentativa de censura contra denúncias da violência policial em São Paulo
A escola de samba incomodou forças reacionárias ao representar assassinos responsáveis pelo massacre do Carandiru como demônios e homenagear ação que ateou fogo à estátua de Borba Gato em 2021.
Com o samba enredo “Capítulo 4. Versículo 3 - Da Rua e do Povo, o Hip Hop: Um Manifesto Paulistano”, a tradicional escola de samba paulistana Vai-Vai aproveitou sua homenagem aos 50 anos do Hip-Hop para denunciar o genocídio da população negra no desfile do último sábado (10) - provocando a ira das forças policiais reacionárias e da direita, que agora pedem a sua punição.
O deputado federal Capitão Augusto e o deputado estadual Dani Alonso, ambos do Partido Liberal (PL), abriram ofícios solicitando a punição da escola de samba ao governador do estado, Tarcísio de Freitas, e ao prefeito da capital, Ricardo Nunes, o que a impediria de receber recursos públicos para o desfile do ano que vem.
A escola de samba incomodou as forças reacionárias do estado ao representar assassinos responsáveis pelo massacre do Carandiru como demônios e homenagear ação que ateou fogo à estátua de Borba Gato em 2021. Além disso, a escola levou em seu desfile figuras importantes do movimento negro e periférico da cidade como Mano Brown e Racionais MC’s, Negra Li, Os Gêmeos, Emicida e Paulo Galo.
Além da homenagem aos 35 anos da formação do Racionais MC’s, maior grupo de rap do Brasil, a escola dedicou uma ala exclusiva dedicada ao disco “Sobrevivendo no Inferno”, de 1997. Além de conter a música “Capítulo 4, Versículo 3”, parte do enredo da escola, o álbum também é composto pela música “Diário de um Detento”, que retrata a vida de um detento do Complexo Penitenciário do Carandiru durante o massacre realizado pela Polícia Militar do Estado de São Paulo (PM-SP) no Pavilhão 9 da prisão, em 1992.
Em consonância com a letra da música, quando diz que “quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio”, a Vai-Vai representou a PM-SP como demônios com asas e chifres vermelhos, carregando escudos da tropa de choque para representar os responsáveis pelos 111 assassinatos daquele 2 de outubro.
Em pouco tempo após o desfile, o Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp) emitiu uma nota de repúdio alegando que a escola de samba “afronta as forças de segurança pública, desrespeita e trata, de forma vil e covarde, profissionais abnegados que se dedicam, dia e noite, à proteção da sociedade e ao combate ao crime, muitas vezes, sob condições precárias e adversas, ao custo de suas próprias vidas e família”.
O sindicato ignora que o desrespeito com as forças de segurança parte dela própria quando defende que os 74 policiais condenados por 77 dos assassinatos do massacre do Carandiru são “profissionais”; quando ignora que, apesar de condenados, nenhum desses 77 “profissionais” está preso; ou quando esquece que o tenente-coronel Ubiratan Guimarães, comandante responsável pelo massacre e condenado a 632 anos de prisão, foi absolvido pelo Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo após eleger-se como deputado estadual, em 2006 - com o número 14111, fazendo alusão ao número de pessoas que vitimou.
A Vai-Vai respondeu tal nota justificando que no recorte histórico utilizado no enredo “na década de 90 a segurança pública no estado de São Paulo era uma questão importante e latente, com índices altíssimos de mortalidade da população preta e periférica”.
Não é difícil conhecer os dados da época. A música “Capítulo 4, Versículo 3” começa com alguns deles, apontando que, na década de 1990, 60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já haviam sofrido violência policial, 75% das pessoas mortas pela polícia eram negras e um jovem negro era assassinado violentamente pela polícia a cada 4 horas. Esses índices não só não diminuíram nas últimas décadas, como um deles piorou: em 2022, em um estudo realizado pela Rede de Observatórios da Segurança, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), foi levantado que 87% das pessoas assassinadas pela polícia eram negras.
Ao condenar o desfile e samba-enredo da Vai-Vai, o Sindicato dos Delegados condenam, na verdade, as denúncias que evidenciam a política de genocídio da população negra brasileira através das forças policiais de nosso país. Sua nota de repúdio nada mais é do que uma tentativa de censurar qualquer crítica a essa política. Não é à toa que, na primeira oportunidade, a PM encerra os shows do grupo Racionais MC’s, como foi o show da Virada Cultural de São Paulo em 2007 e o show organizado em comemoração aos 94 anos da Vai-Vai em janeiro deste ano que contava também com a presença de Thaíde, Negra Li, Dexter, Djonga e outros grupos de rap.
O ofício dos deputados para acabar com o financiamento público à Vai-Vai busca rebaixar, novamente, em 2025, a maior campeã do carnaval paulista, como um recado a todas as escolas de samba que ousem criticar a política racista e genocida do estado.
Além da ala homenageando o disco “Sobrevivendo no Inferno”, a escola encerrou seu desfile com um carro alegórico que prestava homenagem ao incêndio da estátua de Borba Gato, situada no sul da capital paulista, realizado pelo grupo Revolução Periférica, em julho de 2021, com Paulo Galo, uma das lideranças da ação, desfilando em cima dele.
O objetivo da ação direta que ateou fogo à estátua era abrir a discussão com a população sobre a existência de homenagens a assassinos e genocidas, como ocorre em tantas de nossas cidades através de estátuas, nome de pontes, viadutos, avenidas e rodovias. Ao colocar um de seus carros alegóricos homenageando o incêndio, a quase centenária escola de samba, reabriu a discussão para todo o Brasil, colocando os executores da ação - entre eles, Paulo Galo - como heróis do povo, na contramão do que o poder público deseja. Paulo Galo não só já foi condenado e preso pela ação, como também já foi torturado, tendo seu braço queimado após ter sido parado por policiais militares enquanto voltava para casa de motocicleta.
Com o samba-enredo homenageando os 50 anos do Hip-Hop e denunciando o genocídio da população negra, a Vai-Vai demonstrou, neste ano, no Sambódromo do Anhembi, porque é conhecida como a “escola do povo”. Apesar de todos os ataques, a escola conseguiu 269,4 pontos, alcançando o 8º lugar do Grupo Especial do Carnaval de São Paulo, o que a manterá no grupo em 2025. A intenção dos deputados liberais é evidente: caso o ofício seja acatado, os recursos para a escola terão uma queda considerável, o que poderá significar seu rebaixamento para o Grupo de Acesso 1, com uma cobertura midiática muito menor. O objetivo é atacar qualquer manifestação crítica, que evidencie claramente o extermínio praticado pelas forças repressoras do Estado.