Padre Júlio Lancellotti e a CPI: o que está por trás dos ataques de Rubinho Nunes?

Ameaças ao padre, conhecido por suas ações de solidariedade às pessoas em situação de rua, miram não só nas eleições municipais, como favorecem os interesses da especulação imobiliária na região da Cracolândia.

Padre Júlio Lancellotti e a CPI: o que está por trás dos ataques de Rubinho Nunes?
O vereador de extrema-direita bradou em suas redes sociais que usaria a CPI para “fazer um raio-X, um exame nas entranhas desse sujeito”, referindo-se ao religioso, e que iria “arrastar ele pra cá em coercitiva, nem que seja algemado”.

Por Redação

Conhecido por sua atuação de décadas junto às pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo, o Padre Júlio Lancellotti se tornou o principal alvo de uma movimentação da extrema-direita que, através do vereador Rubinho Nunes (União Brasil), visa abrir uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para “investigar” as organizações não governamentais que atuam na Cracolândia. A perseguição ao padre ocorre na véspera das eleições municipais da capital paulista, e tem atraído atenções de todos os lados — desde aqueles que se solidarizam com Padre Júlio, até aqueles que disfarçam seu ódio aos pobres com ataques ao religioso.

As ações do ex-integrante do Movimento Brasil Livre (MBL) seguem a mesma lógica utilizada pelos movimentos fascistas contemporâneos: criar “fatos políticos” alarmistas visando inflamar seus eleitores, ao mesmo tempo que servem aos interesses econômicos de grandes grupos privados — neste caso, à especulação imobiliária na região do Belém e Mooca. Não é em vão o direcionamento dos ataques ao clérigo: suas ações assistenciais não estão separadas de firmes posições políticas críticas às mazelas do capitalismo e contrárias à criminalização e repressão dos moradores de rua e usuários de drogas.

De acordo ao vereador, a finalidade da CPI é investigar “organizações não governamentais (ONGs) que fornecem alimentos, utensílios para uso de substâncias ilícitas e tratamento aos grupos de usuários que frequentam a região da Cracolândia”. A política assistencial, segundo o mesmo, seria um estímulo para pessoas se manterem nas ruas.

Apesar do Padre Júlio Lancelloti declarar que não pertence a nenhuma ONG, e que a atividade da Pastoral de Rua é uma ação pastoral da Arquidiocese de São Paulo na Cracolândia, Nunes bradou em suas redes sociais que usaria a CPI para “fazer um raio-X, um exame nas entranhas desse sujeito” e que iria “arrastar ele pra cá em coercitiva, nem que seja algemado”.

Cracolândia

Realidade presente no centro da capital paulista, a "Cracolândia" permeia o imaginário popular pelo país afora. Programas policiais que fazem parte do cotidiano das famílias brasileiras destacam a região como reduto de sujeira, insegurança, criminalidade e demais terrores que assolam a cidade de São Paulo. Nos minutos limitados da programação em horário nobre, cabe espaço para uma solução totalmente ineficaz: investidas policiais violentas e higienização da região.

Nas demais capitais brasileiras, "Cracolândia" se tornou adjetivo, aplicado para aglomerações de pessoas em situação de rua, que fazem uso do crack e outros entorpecentes. O esforço midiático para a construção desse fantasma é intenso e se reforça no posicionamento público das próprias figuras políticas. Em entrevista à Rádio Bandeirantes na última quinta-feira (4/1), o vereador da cidade de São Paulo, Rubinho Nunes, do União Brasil, afirmou "com o simples fato de você alimentar ou emprestar um sabonete, pra uma pessoa em situação de rua, você não está praticando o bem, você está fazendo disso uma necessidade imediata para [aquela pessoa] viver".

O padre e a cidade

O “padre dos black blocks”, Júlio Lancelotti é um presbítero e pedagogo brasileiro, nascido na cidade de São Paulo no final da década de 40. Com seus 75 anos de vida, o padre carrega uma bagagem de mais de 40 anos de uma militância sem vínculos partidários, mas que atua em defesa da população em situação de vulnerabilidade social. O trabalho pastoral teve início em 1986, quando começou a atuar junto a pessoas em situação de rua, crianças e portadores de HIV.

Sua atuação, reconhecida por entidades, organizações, movimentos sociais e partidos de todo o Brasil, lhe rendeu inclusive uma lei que leva o seu nome. A lei Padre Júlio Lancellotti (nº 14.489/2022) proíbe a presença da chamada arquitetura hostil em todo território nacional, um modelo de construção civil que tem como objetivo restringir o acesso da população em situação de rua às cidades.

Mais de 103 mil pessoas estão em situação de rua no estado de São Paulo, conforme apontam dados de novembro de 2023 do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), plataforma do governo federal que concentra informações sobre pessoas de baixa renda e em vulnerabilidade.

Muda-se a gestão, troca-se a solução

A região hoje conhecida como Cracolândia, que compreende os bairros da Luz, Santa Cecília e República, foi polo para uma intensa produção cinematográfica antes e durante a ditadura militar. A “Boca do Lixo”, como era chamada, recebeu financiamento de empresas estrangeiras, como Fox, Paramount e MGM, além de ter sido o berço para as produções culturais independentes da cidade. A partir dos anos 90, essas empresas foram se retirando do local, o que coincidiu com o início da circulação do crack no Brasil.  Em pouco tempo, o fluxo de usuários  que havia surgido na Zona Leste, passou a ocupar a região central da cidade, na região da Boca do Lixo, que passou então a ser chamada de Cracolândia.

Denominar esse local como Cracolândia tem a função de estigmatizar e justificar ações violentas, demolições e remoções extra legais que acontecem na região. As gestões de José Serra e Kassab estabeleceram convênios com Comunidades Terapêuticas, mecanismos privados que utilizam a total da abstinência, reclusão social e punições no “tratamento” da dependência química.

A exceção dessas políticas foi o programa “Braços Abertos”, implantado na gestão de Fernando Haddad na prefeitura, que aliava a promoção de trabalho remunerado, moradia em hotéis, alimentação e assistência à saúde, utilizando como princípio a redução gradativa do uso de drogas, através do método de redução de danos, reivindicado historicamente pelos militantes da Luta Antimanicomial. Esta iniciativa foi uma exceção até mesmo em relação às políticas do PT a nível nacional, que aprovaram durante o primeiro governo Dilma o financiamento público às comunidades terapêuticas, indo na contra-mão das leis que regulamentaram a Reforma Psiquiátrica e o cuidado à saúde mental. Durante a gestão de João Dória, retomando as medidas anteriores, o programa foi substituído pelo “Redenção”, que utilizava as forças policiais para prender e expulsar a população na região da Cracolândia e as tentativas de internações forçadas.

A CPI das ONGs de Rubinho se propõe justamente a reforçar a lógica de limpeza social e descarte dos “indesejados”, além de agitar sua base social antes das eleições municipais, através da midiatização do combate repressivo à miséria. A escolha do Padre Júlio, com grande respaldo social nacionalmente, foi o ideal para movimentar suas redes de influência e criar um novo fato político.