'O leninismo encontra a TRS: diálogo com Jaqueline Tavares' (Leonardo Vinhó)
Para decidir pelo descarte de uma teoria, importa menos saber os limites e deficiências das teorias, e mais se essas limitações são apenas ausências transponíveis ou se são fundamentalmente equivocadas.
Por Leonardo Vinhó para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
“Uma trabalhadora chega em casa após um dia de trabalho de oito horas, janta em oito ou dez minutos e mais uma vez enfrenta uma carga de esforço físico: lavar as roupas, limpar etc.
Não existem limites para o trabalho doméstico… [a mulher é] diarista, cozinheira, costureira, lavadeira, enfermeira, mãe afetuosa e esposa atenciosa. E quanto tempo leva ir ao mercado e arrastar o jantar para casa!”
—Testemunhos de operárias em Moscou, 1926. Disponível em “Mulher, Estado e revolução”, de Wendy Goldman
Essa tribuna busca dialogar com o texto “Destaque às resoluções de Movimento Feminista do XVII Congresso”, de Jaqueline Tavares [1], que, entre concordâncias e discordâncias, podem nos fazer avançar e despertar o interesse de mais militantes.
A princípio, subscrevo à crítica apresentada na primeira parte do texto, e agradeço à camarada por nos brindar com mais uma análise muito lúcida e bastante original dos problemas que enfrentamos, muitas vezes abordando-os a partir de um aspecto pouco explorado. Infelizmente ainda são poucas as militantes que, por uma série de problemas sistêmicos, formulam e/ou escrevem para as nossas tribunas, e boas análises merecem o devido reconhecimento.
Comecemos então por um entendimento sobre o feminismo marxista e a Teoria da Reprodução Social (TRS) que só surge com maior nitidez ao final do texto, mas que informa todo o debate. Vários pontos da tribuna são marcados pelo não reconhecimento de divergências e clivagens entre dois grupos diferentes que partem do mesmo debate sobre trabalho doméstico: as autonomistas e as marxistas. O texto confunde, assim, a TRS formulada pelas marxistas como sendo igual às proposições teóricas e táticas das autonomistas. Isto aparece quando diz do feminismo marxista como um marxismo “de influência anarquista pelo seu caráter anti-partidário, autonomista”, que “defende pautas absurdas e reacionárias como o salário para trabalho doméstico” e coloca de forma indistinta “intelectuais referência ligadas a esse movimento, como Silvia Federici e Nancy Fraser”. É um debate novo para a maioria do complexo partidário, inclusive para mim, e é natural que as diferenças estejam borradas ou desconhecidas. Aproveito, então, para compartilhar o pouco mais que já compreendi dessas discordâncias.
As teóricas autonomistas (ou operaístas), entre elas Silvia Federici, Mariarosa Dalla Costa e Selma James, foram as pioneiras em trazer novamente ao primeiro plano, em alguns países da Europa e da América do Norte durante os anos 1970, a centralidade do trabalho doméstico. É delas a autoria dos primeiros escritos sobre o assunto (“The Power of Women & the Subversion of the Community” [O poder da mulher e a subversão da comunidade], 1972, de Dalla Costa e James; e “Wages Against Housework” [Salários contra o trabalho doméstico], 1975, de Federici) e é também delas o protagonismo da campanha “Wages For Housework” (salário para o trabalho doméstico, em tradução livre) a partir do Coletivo Feminista Internacional. Com todas as divergências que existem e possam existir, todas as limitações e problemas, é inegável que essa campanha ganhou corpo e passou a ser a principal referência sobre trabalho doméstico nos movimentos sociais de países como Estados Unidos, Inglaterra, Canadá e Itália. A exemplo disso, algumas organizações autônomas bastante diversas surgiram a partir dessa campanha, como o coletivo canadense Wages Due Lesbians [Salários às Lésbicas], o britânico English Collective of Prostitutes [Coletivo Inglês de Prostitutas] e o estadunidense Black Women for Wages for Housework [Mulheres Negras por Salário para o Trabalho Doméstico] — que se preocupava em conquistar reparações para trabalhos não-pagos de mulheres racializadas e/ou do terceiro mundo nos períodos da “escravidão, imperialismo e neo-colonialismo”. [2]
Já o feminismo marxista enquanto corrente teórica não surge antes do início da década de 1980, em outro contexto e com outras referências, embora ainda debatendo o mesmo objeto. Alguns dos nomes pioneiros incluem Meg Luxton, Johanna Brenner, Martha Gimenez e Lise Vogel, cuja obra “Marxismo e a opressão às mulheres: rumo a uma teoria unitária”, de 1983, representou a primeira grande contribuição de análise sistemática da questão, inaugurando o que conhecemos hoje como Teoria da Reprodução Social. Essa corrente teórica e esta teoria específica são hoje herdadas por nomes como Susan Ferguson e David McNally, no que poderíamos interpretar como uma segunda geração, e (mas não só) Cinzia Arruzza, Nancy Fraser e Tithi Bhattacharya como uma terceira geração.
Em determinado momento da tribuna, a camarada questiona as teses por fazer uma
“(...) leitura equivocada do feminismo marxista meramente como sinônimo da corrente nascida nos anos 1970, hipervalorizado-a e apagando todo o movimento feminista sob a influência marxista e de recorte classista que ocorreu antes desse período.”
Aqui concordamos em parte. Admitidamente, ainda não tive tempo de ler o livro de Lise Vogel para poder fazer uma análise desse mérito, isto é, quais e quantas das referências consideradas “clássicas” aparecem enquanto continuidade. Contudo, um outro artigo da autora, bem como as formulações de Bhattacharya, nos informam que, embora tenha recebido pouca atenção à época do lançamento, já um momento de refluxo da chamada “segunda onda feminista” e dos movimentos sociais, o livro representou sim uma inflexão teórica importante frente ao “estado da arte” das formulações de sua época.
Segundo Vogel, até aquele momento tanto as feministas radicais quanto as socialistas partiam do mesmo livro, “A origem da família, da propriedade privada e do Estado” de Engels, embora saíssem dele com interpretações bastante diferentes. Relendo-o, bem como acessando as contribuições de ambas as correntes teóricas feministas, Vogel considerou que o livro é “um trabalho montado às pressas e contraditório”, fornecendo um ponto de partida “instável” que prejudicou todas as tradições intelectuais que dele se valeram por tornar suas contribuições “confundidas pelas ambiguidades” da obra. [3]
O ponto de inflexão de sua obra, portanto, é buscar superar as teorias de sistemas duplos (que entendem patriarcado e capitalismo como dois sistemas distintos com algumas intersecções e influências, teorizado principalmente a partir do artigo de Heidi Hartmann “The unhappy marriage of Marxism and Feminism” [O casamento infeliz entre marxismo e feminismo], de 1979) a partir de outra obra, “O capital” de Marx. Aqui inserem-se as principais reflexões teóricas que decorrem dessa apropriação d’O capital, que busquei apresentar na minha tribuna [4] e podem ser sintetizadas como: 1) a retomada do entendimento da força de trabalho como mercadoria, a única produzida e reproduzida fora do espaço capitalista de produção de mercadorias, num espaço “baseado em relações de parentesco chamado família”; 2) que esta mercadoria é reproduzida cotidianamente por outro tipo de trabalho; 3) que a força de trabalho é indispensável para o funcionamento do capitalismo pela sua geração de mais-valor e que, portanto, também o é a sua reprodução; 4) que estes espaços tanto de produção de mercadorias quanto de reprodução da força de trabalho não significam sistemas separados na essência, mas sim um sistema único e interdependente, integrados no circuito do capital, embora este ainda não tenha controle absoluto da esfera da reprodução social.
Um ano antes da publicação da obra de Lise Vogel, o LGBT Comunista havia traduzido trechos de “Rumo a uma teoria unitária”, especificamente o capítulo 6, que trata das divergências com a análise de Engels. No texto de apresentação publicado pelo coletivo, assim fica sintetizada a diferença:
“Vogel conclui que a base material da opressão de gênero está situada na relação historicamente constituída entre a condição biológica de corpos sexuados femininos e as relações sociais de produção, combatendo, dessa forma, tanto as perspectivas feministas radicais que situavam a base material da opressão de gênero num patriarcado trans-histórico, colocando uma classe sexuada de mulheres contra uma classe sexuada de homens, como as perspectivas marxistas clássicas, como Engels e Bebel, que a partir de uma visão liberal, entendem a condição da opressão das mulheres numa relação de dependência econômica dos homens, além das operaístas, que compreendem que as mulheres são oprimidas no capitalismo porque seu trabalho em casa produz valor para o capital.” [5]
Embora se possa argumentar uma linha de continuidade no que diz respeito à centralidade do trabalho doméstico, que ligue teóricas como Clara Zetkin e Alexandra Kollontai à TRS, anos de debates e investigações separam uma análise que me parece qualitativamente superior a análises que ainda não haviam operado essa unificação na teoria, e entendiam o início do problema apenas quando da proletarização das mulheres. Uma análise que afirma que os trabalhos domésticos
“perderam sua qualidade de trabalhos úteis ao estado do ponto de vista da economia nacional, porque são trabalhos com os que não se criam novos valores. Com eles não se contribui para a prosperidade do país.” [6]
Ou uma análise que produz inferências como estas:
“Refiro-me, precisamente, às leis que, aproveitando-se do fato de que a mulher é mais débil, a colocavam numa situação de desigualdade (...)
(...)
É justamente nesse terreno que a legislação burguesa, até mesmo nos países mais avançados, deve-se dizê-lo, explora a fraqueza da mulher, privando-a de determinados direitos e humilhando-a (...).
(...)
A mulher deve contribuir ativamente para que o Exército Vermelho se sinta cercado de nossa atenção, de nossos cuidados. Pode trabalhar também no abastecimento, na distribuição dos produtos, pela melhoria da alimentação das massas, para desenvolver os restaurantes que se estão criando, em grande número, em Petrogrado.” [7]
Não cito estes trechos para espezinhar a posição de Lenin nem de ninguém em particular, muito menos dizer que formulações anteriores estavam completamente equivocadas. Mas para demonstrar quão pouco desenvolvida estava qualquer crítica aos papéis de gênero (categoria que sequer existia à época), que teima em retornar num papel de cuidado (!) do Exército, de qualquer tipo de fraqueza e debilidade inerentes, ou nas justificativas ideológicas para a nova proibição do aborto (“a nossa mulher soviética não está isenta daquele grande e honroso dever que a natureza lhe confiou: ela é mãe, ela dará à luz.”). Quão pouco desenvolvida estava a crítica à família e à monogamia também enquanto estruturas que reproduzem opressões e que devem ser abolidas, em vez de apenas se libertar das tarefas da reprodução social para reformar as uniões “pelo amor e o respeito mútuo”. Análises assim que se somam à essencialização dos papéis de gênero para afirmar que, no socialismo, “o carinho estreito e exclusivista da mãe por seus filhos tem que ampliar-se até dar conta de todos os filhos da grande família proletária.” [6]
Seguimos para o próximo ponto da discussão. A citação é um pouco longa, pelo que me desculpo de antemão, mas também passarei adiante do início do parágrafo, que já foi debatido.
“Ao final [do parágrafo 89 das resoluções de estratégia e tática], porém, a partir de ‘nosso objetivo’ até o final, o parágrafo cai em uma leitura equivocada do feminismo marxista meramente como sinônimo da corrente nascida nos anos 1970, hipervalorizado-a e apagando todo o movimento feminista sob a influência marxista e de recorte classista que ocorreu antes desse período. Essa tônica que aparece ao longo de todos os parágrafos do movimento feminista e é, a meu ver, um grande equívoco. Em primeiro lugar, porque existe no movimento comunista, desde Marx e Engels e sobretudo a partir das articulações da Revolução Russa e da Terceira Internacional, algo que é um movimento feminista classista revolucionário, ainda que sem ter o rótulo de onda como Feminismo Marxista. Apesar de limites e contradições, esses movimentos foram extremamente avançados para a época e trouxeram importantes vitórias em termos de direitos políticos, inserção das mulheres no mercado de trabalho e na política, mobilização e avanços gerais para a classe trabalhadora feminina, e embora não fossem mobilizações em que as mulheres ainda eram minoria numérica (como hoje, inclusive, ainda o são), também tinha mobilização feminina e classista. Como podemos colocar como referencial da nossa luta o feminista classista dos anos 1970 e apagar as mulheres que lutaram a Revolução Russa, que se mobilizaram nos países europeus contra a Primeira Guerra e lutaram na Segunda Guerra como partisans? Como podemos ignorar as lutas anti-coloniais e as guerras por libertação na Ásia e na África? Como podemos ignorar as revolucionárias cubanas, as mulheres do movimento negro dos Estados Unidos e as próprias comunistas da história do PCB, com todas suas contradições e limites colocados pela própria linha partidária?”
Aqui se apresentam dois tipos de problemas um tanto distintos: os problemas teóricos relacionados ao (não) reconhecimento da influência de outras autoras, teorias e movimentos políticos sobre a corrente do feminismo marxista; e o problema prático do reconhecimento dessas influências nas nossas teses congressuais.
Tratando do primeiro ponto, e embora já tenhamos delimitado um pouco as inflexões teóricas, a análise está correta quando percebe que muitas intelectuais da TRS ainda não se debruçaram sobre todas estas experiências revolucionárias, possivelmente por não estarem organizadas em partidos revolucionários. É verdade. Mas isto nos leva ao segundo problema quando fazemos a pergunta inevitável: deveríamos nós faze-lo nas resoluções?
Não. Não, porque, como a própria camarada coloca anteriormente em seu texto,
“Esse debate não pode ser apartado de uma reflexão ideológica, tática e estratégica do nosso programa e das nossas perspectivas.
(...)
Esse é a meu ver o maior problema de todas as resoluções anti opressão do caderno: praticamente não há propostas, e as diretrizes trazidas são pouco claras no sentido tanto de orientar de um ponto de vista do proletariado como mobilizar grupos oprimidos cotidianamente, quanto de como lidar com a maneira que essas opressões se reproduzem nas nossas fileiras.”
Sobre isto concordamos integralmente, como inclusive já pontuado na minha tribuna anterior. As resoluções congressuais de um partido leninista não são o espaço para a luta de classes na teoria. A esta são reservados os espaços das tribunas permanentes e, assim esperamos, do nosso futuro jornal e editora. As resoluções são justamente o espaço para que se apresentem as táticas, as propostas e diretrizes que, informadas de forma consequente por essas diferentes perspectivas teóricas e análises históricas, emerjam vitoriosas dos debates congressuais e assumam a nova linha política.
Mas neste caso, então, precisamos nos perguntar que valor teria, por exemplo, reconhecermos textualmente enquanto nosso referencial experiências tão distintas em conjuntura, estratégia e táticas quanto as revoluções russa e chinesa, por exemplo? Nenhum valor além do simbólico, que não pode existir nas teses sob risco alto de confundir quem ler as resoluções, sem entender direito se lutamos pelo poder popular ou por uma guerra popular prolongada. Se entendemos o Brasil enquanto país de capitalismo dependente, como informa a Teoria Marxista da Dependência (TMD), ou semifeudal, como diz o maoísmo.
De igual forma, experiências tão distintas no campo das lutas das mulheres, conforme elencado no trecho acima, com estratégias e táticas tão diferentes, nos servem hoje para estudar e aprender com os erros e acertos, e em última análise informar quais serão a nossa estratégia e as nossas táticas a partir de um olhar para a nossa própria realidade. Para isso, no entanto, é preciso adotar uma teoria que nos guie nesse processo inevitavelmente crítico, e me parece que o Comitê Nacional Provisório está convencido de que a Teoria da Reprodução Social traz as categorias corretas para iniciarmos a análise do passado e da nossa própria realidade, bem como também optou pela TMD.
Uma última palavra sobre isto, que é um questionamento um tanto retórico. Quando a tribuna diz “É um movimento (...) que apaga as revolucionárias ligadas à tradição da Internacional Comunista”, ou então fala de “um movimento feminista classista revolucionário”. Só havia um movimento? Só havia uma corrente teórica até o surgimento da TRS? Não haviam discordâncias de táticas, de estratégia, de análise de formação social, entre todas estas formuladoras? Era um movimento uno, indivisível, do qual herdamos tudo sem tirar nem pôr? Se a resposta for negativa, então talvez tenhamos que encarar o fato de que também nesta esfera não herdamos tudo acriticamente. Por que, então, tendemos a pensar que sim neste campo específico? Se ao marxismo nunca foi um problema a divergência de ideias?
Em outro momento, o texto afirma que
“(...) em segundo lugar, a solidificação do marxismo feminista a partir dos anos 70 como O Marxismo Feminista é uma hiper valorização de um marxismo acadêmico, primeiro-mundista, de linha social-democrata e influência anarquista, profundamente anti-leninista, que mesmo quando dá ênfase a autoras com algum traço revolucionário (como o caso de Angela Davies) o faz apagando essa característica.”
Aqui não posso concordar com o que é uma inversão da lógica e da história. Foi precisamente o debate sobre trabalho doméstico nos anos 1970 que inspirou parte da militância política e da obra teórica de Angela Davis. Seu primeiro grande escrito, “Mulheres, raça e classe”, publicado em 1981, é marcado pela análise do papel do trabalho doméstico ao longo de todo o livro e nominalmente nas referências. Isso fez com que ela nunca abandonasse a dimensão das relações de trabalho doméstico vividas pelas mulheres negras desde o escravismo (enquanto trabalho compulsório na casa grande e o trabalho em comunidade nas senzalas) até o período contemporâneo.
O capítulo 13 da obra, “A obsolescência das tarefas domésticas se aproxima: uma perspectiva da classe trabalhadora”, é dedicado a esse debate e fartamente recheado de referências bibliográficas produzidas na mesma década de 1970, incluindo o escrito de Dalla Costa e James. No entanto, isto não impede que Davis seja crítica à tática de remuneração pelo trabalho doméstico, chamada por ela de “problemática”, dedicando a segunda metade do capítulo para questionar profundamente as operaístas. Neste sentido, dizer de Angela Davis como, em primeiro lugar, uma autora com “algum” traço revolucionário, e depois como uma intelectual descolada deste assunto e passivamente apropriada por uma corrente teórica é retirar a agência de uma mulher revolucionária que tomou parte no debate da época, transformando-o qualitativamente, e apagar suas contribuições.
Na sequência, o texto esclarece o motivo de rotular a corrente do feminismo marxista enquanto um marxismo acadêmico
“(...) porque tem como suas principais divulgadoras professoras universitárias sem lastro de militância em partido comunista, com pouca atuação de base e com uma militância apenas em torno da questão feminista - e que, a meu ver, restringe totalmente seu potencial de atuação.”
Temos acordo de que o potencial de atuação de suas principais autoras é bastante limitado, bem como suas perspectivas no campo estratégico. Contudo, há uma pequena contradição aqui quando a tribuna também traz à tona a defesa de “pautas absurdas e reacionárias como o salário para trabalho doméstico”, em referência às autonomistas. Explico:
Conforme falava acima, gostemos ou não de como o curso da história se desenvolveu, as operaístas foram parte relevante de uma teia de manifestações e lutas sociais em alguns países imperialistas, que produziram ramificações e influenciaram outras correntes teóricas. Além disto contradizer a crítica da pouca atuação de base (ao menos no momento em que as primeiras formulações estavam sendo produzidas), também é equivocado rejeitar em bloco ou mesmo diminuir sua influência e relevância, suas experiências e reflexões, apenas por discordarmos das suas proposições táticas. Infelizmente a luta de classes não é composta apenas dos movimentos com os quais concordamos na totalidade, e não podemos escolher não dialogar e não fazer uma crítica qualificada se queremos ser vanguarda em todas as frentes. Um bom exemplo de abordagem metodologicamente rigorosa, mas bastante mais ponderada, pode ser encontrado no texto de Jodi Dean “Silvia Federici: A exploração das mulheres e o desenvolvimento do capitalismo”. [8]
Também não acredito que as táticas equivocadas, seja das autonomistas ou das próprias formuladoras da TRS, fale mais alto do que a justeza de ao menos boa parte da análise, e se ela pode produzir novas e boas sínteses dentro do movimento operário. Do contrário bastaria que discordássemos de uma tática da POLOP para descartarmos a TMD. Foi, aliás, o que tentei fazer na minha tribuna sobre o assunto. A análise de Bhattacharya, em determinado momento, argumenta pela retomada da organização sindical, o que na minha visão é um rebaixamento perto da importância estratégica da teoria de Vogel.
Não há medo nem problema per se na incorporação dos elementos corretos de uma análise. Aliás, é o que o marxismo enquanto teoria viva têm de melhor a oferecer. Por um acaso não haviam divergências importantes entre membros destacados da Segunda Internacional acerca do fenômeno do imperialismo? Mas que também reconheciam elementos corretos nas teorias uns dos outros? Vejamos alguns termos usados por Lenin para se referir às contribuições de Hilferding:
“Apesar do erro do autor [Hilferding] quanto à teoria do dinheiro e de certa tendência para conciliar o marxismo com o oportunismo, a obra mencionada constitui uma análise teórica extremamente valiosa da ‘fase mais recente do desenvolvimento do capitalismo’.(...)
Esta definição não é completa porque não indica um dos aspectos mais importantes: o aumento da concentração da produção e do capital em grau tão elevado que conduz, e tem conduzido, ao monopólio. Mas em toda a exposição de Hilferding em geral, e em particular nos capítulos que precedem aquele de onde retiramos esta definição, sublinha-se o papel dos monopólios capitalistas.
(...)
Hilferding faz notar acertadamente a relação entre o imperialismo e a intensificação da opressão nacional (...).”
Kautsky, apesar de severamente criticado ao longo do livro, recebe o reconhecimento de que sua definição política do imperialismo como uma tendência para as anexações “é justa, mas extremamente incompleta”. Em contrapartida, um autor não-marxista como Hobson é citado em concordância várias vezes, muitas delas nos seguintes termos:
“O autor, que defende o ponto de vista do social-reformismo e do pacifismo burgueses — ponto de vista que coincide, no fundo, com a posição atual do ex-marxista K. Kautsky — faz uma descrição excelente e pormenorizada das particularidades económicas e políticas fundamentais do imperialismo.
(...)
Um dos defeitos do marxista Hilferding consiste em ter dado, neste campo, um passo atrás em relação ao não-marxista Hobson.
(...)
O autor tem toda a razão: se as forças do imperialismo não deparassem com resistência, conduziriam inevitavelmente a isso mesmo. A significação dos "Estados Unidos da Europa", na situação atual, imperialista, compreende-a Hobson acertadamente. (...) Não se devem, contudo, esquecer as forças que se opõem ao imperialismo em geral e ao oportunismo em particular, e que, naturalmente, o social-liberal Hobson não pode ver.”
Chegamos então à teoria de Rosa Luxemburgo. Seu livro não parte do mesmo lugar d’O capital que parte Lenin, e também não aparece referenciada em nenhum lugar de “Imperialismo, estágio superior do capitalismo”. Em carta de 1913 a Kamenev, Lenin diz o seguinte da obra: “Eu li o novo livro de Rosa, ‘A acumulação do capital’. Ela entrou em uma confusão chocante. Ela distorceu Marx.” [9] O que dizer, então, das divergências dos dois sobre a questão nacional? Ainda assim, alguém duvidaria que se tratavam de dois militantes inseridos em partidos revolucionários, atuando junto ao proletariado? Integrantes das alas esquerdas de seus respectivos partidos, vale ressaltar.
Se um intelectual como Lenin reconhece o valor até de uma análise teórica não marxista (Hobson não é o único ao longo do livro) em detrimento de muitas análises pretensamente marxistas, ou mesmo de marxistas insuspeitos de escrever “sem lastro de militância em partido comunista, com pouca atuação de base”, não serei eu a descartar as análises da TRS com base tão somente em alguns rótulos e em táticas equivocadas.
O exemplo mais repetido, e também o mais verdadeiro, é a quantidade de vezes que Marx concorda com teóricos burgueses em seus textos. Sequer podia ele optar por descarta-los para ficar com uma teoria que carregasse um “potencial revolucionário verdadeiro”. Teve de forja-la a partir do rigor do método.
Por fim, não posso afirmar que estou convencido de muitas das críticas que a tribuna coloca. Mesmo descartadas as que parecem ter sido dirigidas às operaístas, infelizmente muitas outras ficaram no nível da rotulação ou do ataque às pessoas, sem demonstrar a inviabilidade da teoria a partir de suas contradições internas. Para mim, é mais importante saber se a teoria está correta, e disto até agora eu saí das minhas leituras da TRS convencido.
Para decidir pelo descarte de uma teoria, importa menos saber os limites e deficiências das teorias, e mais se essas limitações são apenas ausências transponíveis ou se são fundamentalmente equivocadas. Até agora ninguém propôs descartarmos a Teoria Marxista da Dependência porque ela não dá a devida atenção às questões raciais e de gênero, por exemplo. Há, na verdade, dois exemplos em sentido contrário: o primeiro é que o principal propagandista do partido está atualmente se preparando para redigir uma tese de doutorado que vai buscar unir a análise da TMD com as análises de Clóvis Moura. E o segundo é um artigo que busca justamente aproximar a TRS da TMD para pensar a condição histórica de opressão das mulheres latino-americanas. [10] Porque, no fim, tratam-se apenas de lacunas. De forma semelhante, fico com o exemplo de Angela Davis, que incorporou as categorias de mulheres brancas e europeias a um estudo teórico profundo sobre as mulheres negras nos Estados Unidos sem nunca abrir mão da ortodoxia e da crítica.
Sim, a Teoria da Reprodução Social tem lacunas. Sim, suas principais teóricas nem sempre concordam em tudo, falham em alguns aspectos e muitas são professoras universitárias que não compõem partidos revolucionários. Sim, as teóricas da TRS muitas vezes não reconhecem as diferenças entre países imperialistas e dependentes. Sim, é possível que estejam erradas em diversos pontos. Sim, há um profundo desinteresse e baixíssimo nível formativo entre a nossa militância com relação a este assunto. Sim, nosso atraso com relação a estes debates é enorme por conta disto. Sim, há pouco acúmulo teórico e prático sobre a nossa realidade concreta. Sim, ainda não temos propagandistas que possam liderar todas essas mudanças. Mas nada disso é motivo para descartar a TRS.
Para mim, a Teoria da Reprodução Social encontrou um elo fundamental e qualitativamente superior entre a produção de mercadorias e a reprodução da força de trabalho através das categorias de análise d’O capital. Um elo que abre novas possibilidades de repensar a condição das mulheres cis, a necessidade de abolir a família e pensar esta esfera da reprodução como estratégica para as lutas. Se há lacunas, insuficiências e equívocos, forjemos nós uma análise mais acertada e completa a partir do leninismo e do que a TRS tem de melhor a oferecer.
Notas
[*] DESCRIÇÃO DA IMAGEM: O cartaz retrata uma fábrica ao fundo da imagem, com duas entradas em cada extremidade do prédio. Da porta à direita, sai uma fila de homens em direção ao primeiro plano, mais abaixo da imagem, onde está disposta uma esteira de linha de montagem. Atrás dela, quatro mulheres: uma delas abraça um dos homens, a segunda entrega um prato de comida a um homem sentado numa poltrona, a terceira passa uma camiseta com um ferro, e a quarta coloca uma garrafa na bolsa de outro homem. Uma placa pendurada na esteira a identifica como “Home, sweet home” [lar, doce lar]. Ao final da esteira, outra fila de homens segue de volta para a fábrica, completando assim um circuito fechado. Ao centro do cartaz, a frase “Capitalism also depends on domestic labour” [O capitalismo também depende do trabalho doméstico].
[1] Disponível em: https://emdefesadocomunismo.com.br/destaque-as-resolucoes-de-movimento-feminista-do-xvii-congresso/
[2] Para um resumo da história, de uma perspectiva bastante simpática à campanha, ver o texto da cientista política Louise Toupin, autora de “Wages for Housework: A History of an International Feminist Movement, 1972-77” [Salários para o trabalho doméstico: uma história do movimento feminista internacional, 1972-77]: https://www.plutobooks.com/blog/wages-housework-campaign-history/. Já para as declarações de princípios dos três coletivos, ver o panfleto da Campanha Internacional por Salários para o Trabalho Doméstico: http://freedomarchives.org/Documents/Finder/DOC500_scans/500.020.Wages.for.Housework.pdf
[3] VOGEL, Lise. Engels's Origin: Legacy, Burden and Vision. In: ARTHUR, Christopher J. Engels Today: a centenary appreciation. Nova Iorque: St. Martin's Press, 1996.
[4] “Trabalho de cuidado: setor estratégico do proletariado”, disponível em: https://emdefesadocomunismo.com.br/trabalho-de-cuidado-setor-estrategico-do-proletariado/
[5] Disponível em: https://lgbtcomunista.org/2022/06/29/parte-1-marxismo-e-a-opressao-as-mulheres-por-uma-teoria-unitaria-por-lise-vogel/
[6] KOLLONTAI, Alexandra. O comunismo e a família. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/kollontai/1920/mes/com_fam.htm
[7] LENIN, Vladimir I. As Tarefas do Movimento Operário Feminino na República dos Sovietes. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1919/09/25.htm
[8] Disponível em: https://lavrapalavra.com/2020/12/22/silvia-federici-a-exploracao-das-mulheres/
[9] Disponível em: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1913/mar/00lbk.htm
[10] BRANCACCI, Aline D.; MIGLIOLI, Aline M.; SENRA, Gabriel O. C. Reprodução social e dependência: superexploração e opressão de gênero na América Latina. Revista Estudos do Sul Global, São Paulo, n. 3, p. 40-62, fev. de 2023. Disponível em: https://thetricontinental.org/wp-content/uploads/2023/03/20230313_RESG-3_Completa-High-Res.pdf