'Destaque às resoluções de Movimento Feminista do XVII Congresso' (Jaqueline Tavares)

As nossas resoluções em certa medida combatem uma definição genérica de feminismo quando tentam diferenciar o feminismo marxista de outras vertentes e entendê-las como antagônicas. É preciso avançar, porém, na própria caracterização do que consideramos feminismo classista e marxista.

'Destaque às resoluções de Movimento Feminista do XVII Congresso' (Jaqueline Tavares)
"Esse debate não pode ser apartado de uma reflexão ideológica, tática e estratégica do nosso programa e das nossas perspectivas. Como em diversas áreas do marxismo e do campo de esquerda, também no feminismo uma série de concepções reformistas, pequeno-burguesas e mesmo reacionárias tentam se apresentar como revolucionárias e acabam por ser anti-leninistas."

Por Jaqueline Tavares para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Buscando contribuir o sobre feminismo classista e a posição do nosso partido diante da questão da mulher, trago aqui uma contribuição prepositiva quanto à organização das nossas resoluções, dividindo o texto em três partes: um debate inicial mais amplo, uma crítica aos pontos da resolução que creio que devam ser suprimidos e a proposta de novos pontos, desenvolvida a partir dos dois anteriores. As resoluções aqui apresentadas tentam manter a redação sucinta apresentada nas resoluções originais, alterando, porém, o cerne político de fundo. O debate, longe de ser esgotado, merece aprofundamento. Em um primeiro momento optei, porém, por apresentar uma proposta mínima de resoluções de forma sintética. Sem mais delongas.

I. “Racismo é errado e mulheres são gente”

É comum quando estamos debatendo um tema em níveis diferentes de abstração, desde um debate teórico mais sofisticado e amplo até encaminhamentos específicos, que pontos de partida semelhantes cheguem a conclusões divergentes, ou mesmo que não consigamos tirar das nossas reflexões algum tipo de intervenção prática.

Essa dificuldade mais geral, que pode ser observada em uma série de tribunas e discussões - e que não é necessariamente um problema, desde que se entenda a limitação do que se está discutindo - vira uma questão mais complicada com pautas sensíveis, como é o caso dos debates das opressões. Nessas pautas, é comum um frequente “precisamos falar sobre”, um apelo moral que muitas vezes não traz um conteúdo analítico e propositivo, ou que assume sobre qualquer abordagem apresentada uma valoração positiva meramente por essa estar fazendo o esforço de “falar sobre”.

Essa é uma postura muito frequente do debate liberal anti-opressões, em que a constatação óbvia e consensual para todo o campo político progressista de que opressões são ruins (daí o caricato título desse tópico) é ferramenta tanto para se colocar como moralmente superior ao interlocutor, ganhar pontos por falar de pautas que praticamente ninguém discorda (ao menos em tese), se abster de fazer um debate qualificado e ainda de quebra disfarçar a própria postura opressiva.

As nossas resoluções em certa medida combatem uma definição genérica de feminismo quando tentam diferenciar o feminismo marxista de outras vertentes e entendê-las como antagônicas. É preciso avançar, porém, na própria caracterização do que consideramos feminismo classista e marxista.

Esse debate não pode ser apartado de uma reflexão ideológica, tática e estratégica do nosso programa e das nossas perspectivas. Como em diversas áreas do marxismo e do campo de esquerda, também no feminismo uma série de concepções reformistas, pequeno-burguesas e mesmo reacionárias tentam se apresentar como revolucionárias e acabam por ser anti-leninistas. Nossa maior dificuldade hoje não é reconhecer que existem opressões na sociedade e nas nossas fileiras, mas como elas se reproduzem e o que devemos fazer para mitigá-las, de forma alinhado ao nosso horizonte revolucionário.

Esse é a meu ver o maior problema de todas as resoluções anti opressão do caderno: praticamente não há propostas, e as diretrizes trazidas são pouco claras no sentido tanto de orientar de um ponto de vista do proletariado como mobilizar grupos oprimidos cotidianamente, quanto de como lidar com a maneira que essas opressões se reproduzem nas nossas fileiras.

(Um breve parênteses sobre isso, camaradas: nós reproduzimos opressões e vamos continuar a fazê-lo por algum tempo. Isso não significa que não devemos combatê-las, nem que possamos normalizar essa situação esperando magicamente que a revolução, que um dia cairá do céu sobre o nosso colo, resolverá todos os nossos problemas. A mitigação das opressões ainda sob o capitalismo, dentro e fora da organização, é fundamental para a derrubada desse. Isso também não significa, porém, que os comunistas são genericamente muito machistas, que outros ambientes são melhores e que a gente deva ficar por aí batendo palma para anticomunistas que usam de forma oportunista problemas reais para promover sua própria posição, frequentemente minimizando a reprodução de opressões da própria linha. A permanência da reprodução das opressões é uma contradição e herança da sociedade burguesa que temos tentado enfrentar e falhando miseravelmente, não um erro de caráter e uma falha intrínseca ao comunismo que deve servir para alimentar o liberalismo em pessoas oprimidas. Militar estando em condição de opressão não é fácil, mas também não é como se o mundo lá fora fosse bacana para nós.)

Mas voltando às teses, a falta de encaminhamentos e a pouca especificidade não é exclusiva dessas pautas - é, consequência, inclusive, do próprio formato das resoluções menores, o que não é em si um problema. Nas pautas anti-opressão, aqui especificamente na questão da mulher, porém, creio que nossa posição está ainda mais vaga, e essa vagueza deságua no desvio liberal da mera afirmação de importância da pauta, além de caracterizações incompletas e que internalizam concepções liberais do debate anti-opressões.

II. Os problemas das atuais resoluções sobre movimento feminista

Parágrafo: 89: ALTERAÇÃO. O início do parágrafo faz uma boa introdução à discussão, à diferenciação dos caráter dos movimentos e conflito de classes ligado a eles. Ao final, porém, a partir de “nosso objetivo” até o final, o parágrafo cai em uma leitura equivocada do feminismo marxista meramente como sinônimo da corrente nascida nos anos 1970, hipervalorizado-a e apagando todo o movimento feminista sob a influência marxista e de recorte classista que ocorreu antes desse período. Essa tônica que aparece ao longo de todos os parágrafo do movimento feminista e é, a meu ver, um grande equívoco. Em primeiro lugar, porque existe no movimento comunista, desde Marx e Engels e sobretudo a partir das articulações da Revolução Russa e da Terceira Internacional, algo que é um movimento feminista classista revolucionário, ainda que sem ter o rótulo de onda como Feminismo Marxista. Apesar de limites e contradições, esses movimentos foram extremamente avançados para a época e trouxeram importantes vitórias em termos de direitos políticos, inserção das mulheres no mercado de trabalho e na política, mobilização e avanços gerais para a classe trabalhadora feminina, e embora não fossem mobilizações em que as mulheres ainda eram minoria numérica (como hoje, inclusive, ainda o são), também tinha mobilização feminina e classista. Como podemos colocar como referencial da nossa luta o feminista classista dos anos 1970 e apagar as mulheres que lutaram a Revolução Russa, que se mobilizaram nos países europeus contra a Primeira Guerra e lutaram na Segunda Guerra como partisans? Como podemos ignorar as lutas anti-coloniais e as guerras por libertação na Ásia e na África? Como podemos ignorar as revolucionárias cubanas, as mulheres do movimento negro dos Estados Unidos e as próprias comunistas da história do PCB, com todas suas contradições e limites colocados pela própria linha partidária? Porque, em segundo lugar, a solidificação do marxismo feminista a partir dos anos 70 como O Marxismo Feminista é uma hiper valorização de uma marxismo acadêmico, primeiro-mundista, de linha social-democrata e influência anarquista, profundamente anti-leninista, que mesmo quando dá ênfase a autoras com algum traço revolucionário (como o caso de Angela Davies) o faz apagando essa característica. Acadêmico porque tem como suas principais divulgadoras professoras universitárias sem lastro de militância em partido comunista, com pouca atuação de base e com uma militância apenas em torno da questão feminista - e que, a meu ver, restringe totalmente seu potencial de atuação. Primeiro mundista porque não só é em sua maioria de suas intelectuais se organizam a partir desse eixo, mas porque sua linha política acaba por ser linha auxiliar do imperialismo, pela minimização dos efeitos da pobreza e da produção primária sobre os países dependentes. Social democrata porque não carrega consigo nenhum potencial revolucionário verdadeiro; ainda que se diga anti-capitalista, não há debate tático e estratégico de tomada de poder. De influência anarquista pelo seu caráter anti-partidário, autonomista e por isso também anti-leninista. São perspectivas que, ainda que debatam feminismo, o fazem de uma posição política que não é a nossa. É um movimento que caricaturiza e diminui as contribuições de Marx e Engels, que apaga as revolucionárias ligadas à tradição da Internacional Comunista e que o faz, simultaneamente, em um movimento de reinvenção da roda (e super valorização do próprio trabalho) e de minimização dos aspectos proletários, revolucionários e anti-imperialistas dessa tradição, se blindando de críticas ao se afirmar as verdadeiras feministas e denunciando uma caricatura da tradição comunista como masculinista, machista e ultrapassada. A super valorização acrítica desse chamado feminismo marxista está presente também no debate feito acerca da reprodução social (não no próprio debate sobre o trabalho das mulheres, mas na forma que ele aparece), no destaque desproporcional dado a chamada Greve de Mulheres (enquanto apaga outras mobilizações) e na falta de conexão entre nossos encaminhamentos e uma estratégia e tática proletárias de construção do movimento comunista por e para mulheres.

Parágrafo 90: SUPRESSÃO: A reprodução social é um elemento muito importante do debate feminista marxista, desde o trabalho feito na própria casa quase que exclusivamente pelas mulheres até o trabalho reprodutivo inserido no mercado de trabalho - em posições como babás, faxineiras, cuidadoras, empregadas domésticas e por ai vai. Mas a reprodução social não é o único elemento que caracteriza a estrutura patriarcal do machismo, e mesmo a forma pela qual ela é  entendida deve ser posta em debate. Essa mesma tradição Feminista Marxista traz uma crítica a não remuneração e valorização do trabalho reprodutivo, mas não constrói uma política no sentido da sua superação, do fim da separação do trabalho produtivo e reprodutivo e não compreende em que medida essa mesma separação é um mecanismo de opressão da mulher. Por isso mesmo, a reprodução aparece descolada de outros elementos fundamentais da opressão estrutural da mulher, que precisam ser melhor trabalhados. Seguindo o parágrafo anterior da introdução, creio que a caracterização dos mecanismos de opressão deve ser expandida para além da reprodução social, essa deve ser qualificada e precisamos de um perfil mínimo da mulher brasileira.

Parágrafo 91: SUPRESSÃO: A greve feminista é um movimento cortado por tendências social-democratas, anarquistas e anti-leninistas. Intelectuais referência ligadas a esse movimento, como Silvia Federici e Nancy Fraser, são autoras que além de ter uma postura anti-comunista, defende pautas absurdas e reacionárias  como o salário para trabalho doméstico, uma tática reacionária que, ao invés de buscar socializar o trabalho reprodutivo e fundi-lo ao produtivo, reforça a domesticação econômica e social das mulheres e os papéis de gênero na produção capitalista, uma crítica tão antiga que pode ser encontrada em trabalhos de Krupskaya, Lenin e Clara Zetkin. A greve feminista, portanto, é um movimento específico que ganha destaque justamente pelo holofote dessa intelectualidade feminista dita marxista, mas profundamente pequeno burguesa, que não deve receber destaque positivo nas nossas resoluções meramente por, novamente, “estar falando sobre” o tema, tanto pela sua abordagem rasa, pelas suas pautas problemáticas e pelo Hype completamente desproporcional dado pela esquerda brasileira em comparação com quaisquer mobilizações que envolvam mulheres na história recente.

Parágrafo 92: SUPRESSÃO: O último parágrafo faz um movimento importante de tentar encaminhar resoluções práticas, mas essas são novamente muito vagas, e tem dificuldades justamente por um entendimento pouco preciso de como se dá a dinâmica de reprodução de opressões. Como as sugestões de alteração que trago são muitas e, a meu ver, alteram o caráter político de abordagem do tema, optei pela proposta de suprimir o parágrafo e adicionar outro.

III. Adições as resoluções de movimento feminista

Parágrafo X (após o 89): Na sociedade capitalista patriarcal, as mulheres trabalhadoras, além de exploradas pela burguesia, são também subjugadas à figura do homem. Essas opressões se manifestam: a) Pela separação do trabalho produtivo do trabalho reprodutivo. Hoje, a maioria das mulheres também fazem parte da cadeia de trabalho produtivo, mas recebem menores salários, os piores cargos e são minoria nos espaços de organização da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, elas são as principais responsáveis pelo trabalho reprodutivo dentro de casa, um trabalho separado do produtivo e que tende a isolá-las política e socialmente e reduzir seu potencial de mobilização na esfera pública; b) Pela configuração da família como espaço de reprodução dos padrões de gênero, da tripla jornada de trabalho e da violência contra a mulher. No caso das famílias com presença do pai, pelo domínio do patriarca sobre a mulher e os filhos, inclusive economicamente. No caso das famílias de mãe solteira, pela obrigação do cuidado depositada apenas sobre a mulher; c) Pela reprodução de estereótipos e do reforço de padrões de gênero opressivos, que condicionam o comportamento feminino à docilidade, à obediência, que desumanizam a mulher, buscam controlar sua sexualidade e subordiná-la aos interesses reprodutivos da classe dominante, que dificultam seu acesso a qualquer espaço de poder ou ferramenta que amplifique seu potencial revolucionário e que contam com todo aparato ideológico da burguesia para sua difusão.

Parágrafo X2 (após o 89): Na sociedade brasileira, a maior parte da classe trabalhadora feminina é formada por mulheres negras. Essas mulheres se encontram ainda mais submetidas às condições de exploração e opressão da mulher, e são a elas que se reservam os piores empregos e salários, cabendo também a elas a própria reprodução social de famílias brancas burguesas e das classes médias, nas posições de empregadas domésticas, cuidadoras, babás, enfermeiras. São essas mulheres que chefiam a maior parte das famílias brasileiras e que se encontram na posição mais vulnerável nas ocupações, comunidades e periferias, sendo o setor mais explorado do proletariado brasileiro e, ao mesmo tempo, um dos mais estratégicos e de maior potencial revolucionário.

Parágrafo X3 (após o 89): A partir dessa caracterização, os eixos centrais de orientação do partido entre as mulheres são: a) A construção de um programa socialista e feminista no sentido de um processo revolucionário, concomitante ao combate à reprodução do machismo atualmente, dentro e fora das nossas fileiras: b) O combate ao machismo é tarefa de todo o partido comunista, nem só as mulheres devem cumpri-las, nem apenas essa deve ser a tarefa das camaradas mulheres; c) Essa atuação não deve ser restrita a nenhum tipo de coletivo ou fração de mulheres, mas compreendida como um eixo transversal que toca todas as nossas tarefas, da qual toda militância deve ter uma mínima apropriação dentro do seus aspectos de especialização: nas finanças, na formação, na agitação e na propaganda, no trabalho de massas e assim por diante; d) O partido deve levantar e compreender as condições concretas da reprodução social e da maternidade nas nossas fileiras, entendendo seu perfil e suas demandas; e) A formação política das camaradas mulheres deve abranger todos os aspectos da militância e combater os estereótipos e a reprodução de padrões de gênero na especialização das camaradas; f) O partido deverá desenvolver uma política específica de agitação, propaganda e recrutamento entre mulheres trabalhadoras, de forma a aproximá-las e ampliar o número de mulheres em nossas fileiras; g) O partido deve operar também dentro da sua mobilização de mulheres um giro-operário popular, tendo como setores estratégicos os setores reprodutivos do trabalho produtivo (tal como empregadas domésticas, enfermeiras e trabalhadoras que exerçam trabalho reprodutivo fora das próprias casas) e o recrutamento e aproximação de quadros femininos destacados de todos os setores da produção.