O governo Lula e bolsonaristas se alinham na pauta do aborto: Sem serviços de referência o aborto legal é só propaganda

Quem mais sofre com essas limitações são as mulheres jovens, com baixa escolaridade, negras, indígenas e residentes em regiões mais pobres, [...]. Ou seja, são as mulheres e pessoas que gestam da classe trabalhadora e suas crianças os principais alvos das políticas restritivas e reacionárias.

O governo Lula e bolsonaristas se alinham na pauta do aborto: Sem serviços de referência o aborto legal é só propaganda
A atual Ministra da Saúde, Nísia Trindade, e o atual presidente, Lula / Reprodução: Ed Alves/CB/DA.Press

Por Redação

A pauta sobre o abortamento está diretamente ligada à luta por sobrevivência e melhores condições de vida da classe trabalhadora. Nos países do mundo onde o aborto foi totalmente legalizado houve uma diminuição do número de interrupções gestacionais e aumento da prevalência de abortos seguros. Em contraposição, países com leis restritas, como o Brasil, prevalecem abortos inseguros, com riscos de morte e adoecimento para as pessoas que gestam. Apesar das evidências científicas favoráveis à legalização irrestrita, a legislação brasileira mantém as restrições e tem retrocedido na promoção do aborto legal. O governo Lula - Alckmin não só tem evitado tratar o problema com a urgência necessária, como tem cedido a pressões midiáticas bolsonaristas, sem um mínimo enfrentamento. Enquanto isso, governos estaduais e municipais avançam com legislações reacionárias para limitar o acesso ao procedimento e com o fechamento de serviços de referência.

O rol taxativo previsto em lei dispõe que em casos de gravidez decorrente de estupro, risco à vida de quem gesta e anencefalia (fetos com malformação no cérebro) os abortos são permitidos em território brasileiro. Entre o final de 2023 e o início de 2024, retrocessos legais foram aprovados a nível estadual em Goiás e municipalmente em São Paulo, Maceió e Santa Maria. No final de fevereiro, medida do Ministério da Saúde que versava cientificamente sobre o acesso ao procedimento foi suspensa em menos de 24 horas, após manifestações reacionárias de bolsonaristas.

Quem mais sofre com essas limitações são as mulheres jovens, com baixa escolaridade, negras, indígenas e residentes em regiões mais pobres, como mostrou a Pesquisa Nacional do Aborto, de 2021. Ou seja, são as mulheres e pessoas que gestam da classe trabalhadora e suas crianças os principais alvos das políticas restritivas e reacionárias.

No final de fevereiro, o Ministério da Saúde, via as secretarias de Atenção Primária à Saúde (Saps) e Atenção Especializada à Saúde (Saes) emitiu a Nota Técnica nº 2/2024, que levava a anulação de uma norma do governo Bolsonaro, restringindo o aborto legal até as 21 semanas. Tal medida era mais uma barreira de acesso ao procedimento, indo em desacordo com o Código Penal de 1940, que não prevê limites nesse sentido. No dia seguinte, após emissão da nota, manifestações reacionárias dos bolsonaristas inundaram as redes sociais, levando o governo Lula a retroceder e revogar a Nota Técnica em menos de 24 horas.

O documento emitido pelo Ministério da Saúde visava garantir o acesso ao aborto legal, conforme está institucionalmente estabelecido e maior proteção às usuárias e profissionais da saúde. A nota técnica estava totalmente orientada pela posição de tratados internacionais de combate à mortalidade materna e promoção dos direitos humanos, que o Brasil é signatário.  O ponto crucial da nota é o apontamento que não há limites de idade gestacional para a realização do aborto legal. Essa temporalidade não é em vão, pois muitas crianças e pessoas que gestam vítimas de estupro ou mulheres com gestações de risco, só descobrem ou conseguem denunciar o problema, mais tarde. O governo Lula, ao retroceder em relação à publicação da nota, mostra, mais uma vez, que pode abrir mão dos direitos reprodutivos para não afrontar os setores conservadores e fundamentalistas. Por outro lado, não tem nenhum projeto que prevê  a abertura de serviços nacionais de referência para a realização do aborto legal, deixando a mercê das vontades políticas estaduais e municipais.

Fechamento do Hospital e Maternidade Vila Nova Cachoeirinha - São Paulo

A nível estadual e municipal, o acesso ao aborto legal também tem sido constantemente ameaçado. Hoje, poucos serviços no Brasil são referências especializadas para a realização do procedimento e uma parte deles tem barreiras legais e organizativas para a realização do mesmo. Uma das mais graves restrições ocorreu na capital paulista, ao Ricardo Nunes (MDB) fechar o serviço de interrupção de gravidez do Hospital Municipal e Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, em dezembro de 2023. O hospital era responsável por mais de 70% dos atendimentos em São Paulo e era um dos únicos serviços que realizava o abortamento em gestações avançadas (acima de 22 semanas).

Hospital Municipal e Maternidade Vila Nova Cachoeirinha em São Paulo.

Luiz Carlos Zamarco, secretário de saúde de São Paulo, afirmou em entrevista à CNN que o serviço foi fechado para investigação devido à maior parte das mulheres que realizavam o procedimento virem de fora da capital paulista. A afirmação é totalmente absurda, pois ao ser uma das pouquíssimas referências especializadas em todo o país, é lógico a absorção da demanda de todo estado e de outros locais do Brasil.

O serviço tem mais de 20 anos sendo referência do estado e foi fechado sem nenhuma consulta pública. Os profissionais que atendem e asseguram a realização dos abortos estão sofrendo perseguição, como apontado pelo próprio secretário, ao afirmar que investigaria os profissionais que têm realizado o procedimento. Essa manifestação pública de Zamarco mostra a importância da nota técnica do Ministério da Saúde obstruída pelo próprio governo Lula. Sem nenhuma razão evidente, o governo de Ricardo Nunes afirma que abrirá investigação devido à realização do procedimento garantido legalmente.

O governo de Goiás e as prefeituras de Maceió e Santa Maria tem movido-se legalmente para impor que mulheres e pessoas que gestam sejam obrigadas a ser submetidas a processos de “sensibilização” antes de acessarem o aborto legal. Os projetos carregam em comum a visão moralizante que veem o aborto como uma mera escolha individual, não determinada pelas as condições sociais, políticas e de saúde relacionadas à gestação e à maternidade. Tais projetos têm sido caracterizados por movimentos sociais e de direitos humanos como novas formas de violências e torturas.

Ronaldo Caiado (União Brasil) / Foto: Isac Nóbrega/PR

O governador Ronaldo Caiado de Goiás sancionou uma lei para a promoção de  “Campanha de Conscientização contra o Aborto para as Mulheres no Estado” e prevê que seja garantida pelo Estado “assim que possível, o exame de ultrassom contendo os batimentos cardíacos do nascituro para a mãe” (Lei nº 22.537 de 11 de janeiro de 2024) antes da realização do procedimento. Em Santa Maria, 12 vereadores validaram a proposta da vereadora Roberta Leitão- Progressistas que apontava no mesmo sentido.  O projeto de lei obrigaria vítimas de estupro, pessoas grávidas em risco de vida ou de feto incompatível com a vida extrauterina a ouvirem batimentos cardíacos antes de acessarem o direito ao aborto legal e previa campanhas sobre os "riscos" do aborto. Diante de intensa mobilização, o prefeito da cidade optou pelo veto.

Em Maceió, o Prefeito João Henrique Holanda Caldas (JHC)-PL promulgou lei, aprovada pela câmara de vereadores, que obrigava gestantes a assistirem vídeos e palestras sobre os estágios fetais e sobre falaciosas sequelas físicas e emocionais, antes do acesso ao aborto legal. A lei foi vetada por uma ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Defensoria Pública de Alagoas, que apontou violação de princípios constitucionais federais e estaduais relacionados à dignidade das mulheres.

Barreira de acesso: Poucos serviços especializados e poucos profissionais capacitados

Qualquer hospital ou unidade de saúde que dispor de serviço de ginecologia - obstetrícia tem por obrigação ofertar o aborto legal, independente de serem ou não serviços de referência. Porém, esses dados não são fornecidos massivamente e muitos profissionais e serviços negam-se a realizar o abortamento previsto em lei, alegando erroneamente a necessidade de liberação judicial ou objeção de consciência. O artigo 5º da Constituição Federal dispõe que todos profissionais têm direito à objeção de consciência (quando a atuação ou conduta do profissional entrar em conflito com sua própria consciência), mas a recusa de consciência não deve ser aceita se não houver outro médico que seja apontado para atender, houver risco de morte ou se a omissão do atendimento puder causar danos.

Manifestação feminista em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018 / Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Ag Brasil

Em reportagem do G1, a partir de dados obtidos por meio de Lei de Acesso à Informação provenientes do SUS, mostra que 1823 procedimentos de aborto autorizado por lei foram efetuados de janeiro de 2021 a fevereiro de 2022; desses, 711 ocorreram em uma cidade diferente da que a paciente morava e 25 mulheres saíram de seus Estados para realizarem o procedimento, sendo que dessas 25, seis delas precisaram percorrer mais de mil quilômetros para ter acesso ao abortamento, isso sem contar em casos de corpos trans, que não entraram para a pesquisa, ou não registrados ou sequer tiveram o mesmo acesso. O abortamento enquanto procedimento garantido às pessoas só pode ser efetivamente acessível se isso for possível levando em conta as estruturas que estão disponibilizadas para toda a classe trabalhadora dentro de suas condições materiais. A falta da disponibilidade do procedimento em uma localidade demonstra como o acesso é negado a quem não tem a possibilidade e os recursos financeiros de pagar pelo deslocamento.