Grupos fundamentalistas forçam deslocamento da população no norte de Burkina Faso

O surgimento dos grupos na África Ocidental remonta à Guerra Civil ocorrida na Argélia no início dos anos 1990, bem como à crise instaurada na Líbia após o assassinato do presidente Muammar Gaddafi, em 2011.

Grupos fundamentalistas forçam deslocamento da população no norte de Burkina Faso
Combatentes do JNIM em Burkina Faso. Reprodução: Iniciativa Global Contra o Crime Organizado Transnacional.

Por Redação

Essa matéria é parte de uma cobertura mais ampla sobre os acontecimentos recentes em Burkina Faso e na África Ocidental. Leia a primeira parte para detalhes sobre a prorrogação das eleições burkinabés em meio às tensões regionais no combate ao fundamentalismo.


Havendo prorrogado as eleições sob a principal justificativa de grave crise de segurança na região do Sahel, a junta militar à frente do governo de transição em Burkina Faso, enfrenta as inúmeras problemáticas causadas pelo deslocamento interno de mais de 2 milhões de pessoas.

Saindo do norte de Burkina Faso em direção ao sul, centenas de milhares de grupos e famílias buscam escapar do centro do conflito entre as forças nacionais de segurança de Mali, Niger e Burkina Faso, milícias privadas, e os dois principais grupos fundamentalistas da região, o autointitulado Estado Islâmico no Grande Saara (EIGS) e o Jama’at Nasr al-Islam wal Muslimin (JNIM).

O surgimento destes grupos na África Ocidental remonta à Guerra Civil ocorrida na Argélia no início dos anos 1990, bem como à crise instaurada na Líbia após o assassinato do presidente Muammar Gaddafi em 2011, através de operações encabeçadas por forças britânicas, francesas e estadunidenses da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

A derrota dos grupos islâmicos insurgentes para o governo argelino à época, levou ao estabelecimento de uma parcela significativa dos combatentes no norte do Mali, onde se envolveram diretamente com atividades ilícitas e com outras organizações que contestavam os governos locais por diferentes motivações políticas e ideológicas, geralmente amparadas pela orientação salafita do Islam. A caótica conjuntura na Líbia acabou por intensificar a atividade destes grupos, uma vez que o governo de Gaddafi mantinha uma relação de amparo econômico com a região do norte do Mali, historicamente negligenciada pelo governo central.

Mapa político da divisão provincial do Mali. A região norte abarca as províncias de Tombouctou, Kidal e Gao, formando o chamado Azauade.

Na década de 2010, grupos armados na Líbia, formados a partir da divisão política provocada pela invasão imperialista, passaram a financiar diferentes movimentos separatistas no norte do Mali, como o Movimento Nacional de Libertação do Azauade (MNLA), formado por tuaregues de orientação secular e motivados por questões particularmente nacionalistas. A disputa entre o MNLA e o governo malinense, reforçado com a presença dos efetivos franceses e de missões militares regionais da ONU e da CEDEAO (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental), abriu lacunas de poder em diversas localidades, o que propiciou o crescimento dos grupos fundamentalistas como o Ansar Dine (então aliado ao MNLA) a Frente de Libertação do Macina (FLM), a Al-Mourabitoun e a Al Qaeda no Magrebe Islâmico (AQIM).

Tomando controle das três províncias ao norte do Mali e declarando a independência do Azauade, o MNLA perdeu espaço para os grupos fundamentalistas, que tomaram a frente do processo de hostilização. Derrotada a insurgência, os fundamentalistas se espalharam pelo interior do Mali, até que em 2017, Ansar Dine, FLM, Al-Mourabitou e AQIM formaram uma aliança, fundando o Jama’at Nasr al-Islam wal Muslimin (JNIM).

Desde sua fundação, o JNIM ganhou cada vez mais capilaridade no Mali. Congregando fulanis, swahilis, tuaregues e árabes, a organização toma em diversas províncias o papel de autoridade, sanando as necessidades da população local, sem necessariamente subjugá-las. Contudo, cada grupo na coalizão possui uma interpretação diferente da jihad, com diferentes particularidades. Mesmo assim, seguem em aparente acordo a intenção de implementar a shari’a e abolir os governos seculares na África Ocidental.

Uma das razões que marca a ofensiva dos grupos fundamentalistas de orientação salafita é a marcante presença histórica de elementos culturais e religiosos da orientação sufita do Islam na região do Sahel. Caracterizada por ter uma relação sincrética com as religiões tradicionais africanas e cultuar marabutos, o sufismo é encarada como profanação da fé pelos fundamentalistas. Nesses termos, em 2012, o Ansar Dine foi responsável pela destruição de inúmeros mausoléus sufis em Tombuctu, cidade histórica que contou no passado com a presença de incontáveis escribas, juristas e sacerdotes muçulmanos.

Mesquita de Djingareyber em Tombuctu. Reprodução: AFP

Concomitante ao surgimento do JNIM, o autointitulado Estado Islâmico no Grande Saara (EIGS) foi formado como dissidência da Al-Murabitun, após Adnan Abu Walid al-Sahrawi jurar lealdade ao autoproclamado Estado Islâmico do Iraque e do Levante (“Daesh” – de ad-Dawlat al-Islamiyah al-Iraq wa Sham – ou ISIS na sigla em inglês). Desde de 2015 atuando como braço desta organização, o EIGS está ligado à rede internacional ativa do movimento, possuindo perspectivas particulares sobre a jihad, marcada pela tomada efetiva de territórios como parte da necessidade de expansão de suas estruturas.

Nos últimos anos há complexas relações entre as duas organizações [JNIM e EIGS]. Apesar das concepções distintas da jihad e das táticas usadas contra o ocidente e os governos nacionais, os dois grupos atuaram conjuntamente em diversos ataques em diferentes regiões do Mali, Níger e Burkina Faso, até romperem laços em 2019. Com JNIM acusando o EIGS de assassinar civis e estes por sua vez alegarem que o primeiro é demasiado tolerante com os inimigos, o conflito entre as duas organizações, apesar de enfraquecer a atuação na região, criou diferentes problemáticas para as populações que residem na região de Liptako-Gourma.

Região de Liptako-Gourma circulada em verde.

Em Burkina Faso, segundo relatório da UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) de 20 de maio de 2024, 5319 escolas estão fechadas, afetando mais de 800 mil crianças. Orquestrando ataques armados nas aldeias e vilarejos, especialmente nas zonas rurais no norte e no leste, tanto o JNIM quanto o EIGS procuram em crianças e adolescentes possíveis recrutamentos, colocando um alerta em relação a proteção deste grupo. Este alerta é mais latente considerando a destruição das escolas, justificada pela oposição ao ensino francês ou ocidental e a exigência de um ensino islâmico.