De Salvador à Ilha de Santería: Marighella, a "crítica das armas" e a revolução brasileira

Marighella foi mais do que um guerrilheiro, foi um homem que imolou a própria vida em prol de um ideal; foi, antes de qualquer coisa, um agitador, organizador e tribuno popular conectado profundamente com os dilemas da Revolução Brasileira e os anseios das massas populares

De Salvador à Ilha de Santería: Marighella, a "crítica das armas" e a revolução brasileira
Agitador, guerrilheiro ou "terrorista" (sic), Marighella é imprescindível às novas gerações de comunistas.

Por Karl Marx Henrique.

"Carlos Marighella! Teu nome e tua memória não serão jamais apagados da história do nosso povo. Teu exemplo de lutador pela felicidade do povo, por uma transformação social profunda, que acabe com a exploração do homem pelo homem, juntamente com a de todos que nestes últimos quinze anos souberam lutar até o fim pela completa emancipação da Pátria do jugo imperialista e pelo processo social, educará as novas gerações da classe operária e as de todos os trabalhadores brasileiros, contribuirá para reforçar a sua organização e unidade, ajudará a educar e formar a juventude que continuará a tua luta, a nossa luta revolucionária de comunistas, democratas e patriotas, elevará a cada dia mais alto as bandeiras do socialismo e as levará à vitória."

Discurso de Prestes na solenidade de transladação dos restos mortais de Carlos Marighella. 1979

4 de novembro de 1969, rua Alameda Casa Branca, bairro do Jardins - SP. Em uma emboscada promovida pelos órgãos de repressão da ditadura empresarial-militar após implacável perseguição, é abreviada a longeva trajetória do comunista baiano Carlos Marighella.

Carlos Marighella, fruto da união entre um imigrante italiano e uma descendente de africanos escravizados, nasceu em 5 de dezembro de 1911 na capital baiana. A residência de Augusto Marighella (pai) e Maria Rita (mãe), localizada na Rua Barão dos Desterro, situada no bairro proletário da Baixa do Sapateiro, onde o jovem "Carlinhos" ensaiava os primeiros dribles no baba da rua, frequentando igrejas e aprontando as traquinagens de moleque.  Desde cedo Marighella demonstrava aptidão para os estudos, era extrovertido e brincalhão, cativava as simpatias de quem lhe cruzava o caminho. Afinal, é unanimidade entre todos aqueles que partilharam do cotidiano com Marighella, mesmo nas mais duras condições de clandestinidade e repressão, que o carisma e o bom humor eram sua marca registrada.

Já moço, Marighella inicia seus estudos na Escola Politécnica da Bahia no ano de 1931 e participa ativamente de manifestações em defesa do movimento constitucionalista de 1932. Amarga seu primeiro cárcere, que seria a tônica de sua vida, por redigir "canção de escárnio" contra o interventor Juracy Magalhães -semelhante ao que fizera em um exame de física a época do ginásio, o que lhe custara o ódio e o desprezo de toda a burguesia brasileira desde que tomou sua decisão política pelo comunismo.

Em 1933 ingressou no Partido Comunista por meio de sua juventude, ao qual dedicaria integralmente por mais de 30 anos.  Com a brutal repressão que se seguiu aos levantes comunista de 1935 ao PCB, Marighella é novamente preso em 1936 e barbaramente torturado por Filinto Müller, chefe da polícia política de Getúlio Vargas. Posto em liberdade em 1937, é designado para reestruturar o partido em São Paulo, entretanto, mais uma vez é feito prisioneiro em 1939 e assim permanece até 1945.

Com o prestígio da União Soviética obtido pela vitória sobre o nazifascismo, o Partido Comunista passa a atuar em condições de legalidade por todo o território nacional e converte-se em um verdadeiro partido de massas, exercendo significativa influência nos mais variados setores da vida brasileira. É sob este pano de fundo que os comunistas obtêm expressiva bancada para os trabalhos constituintes, dispondo de 14 deputados e 1 senador. Marighella destaca-se como tribuno popular na Assembléia Constituinte de 1946, levantando os problemas mais sentidos do povo brasileiro e da classe trabalhadora em particular. A constituinte volta suas atenções para a questão agrária, a dominação dos monopólios e trustes sobre a economia brasileira, a laicização do Estado, o direito ao divórcio etc. Sob os auspícios da chamada "Guerra Fria", o Partido Comunista é colocado na ilegalidade em 1947 e têm seus mandatos cassados em 1948 por ordem do "general-presidente" Eurico Gaspar Dutra.

Devido ao êxito da construção do socialismo na China mediante a vitória da revolução em 1949, Marighella dirige-se ao grande país asiático, porém é no seu retorno ao Brasil que protagonizará um dos episódios mais emblemáticos do sindicalismo brasileiro: a "greve dos 300 mil" em 1953, onde atua energicamente como agitador e organizador contribuindo para a vitória do proletariado paulista. Todavia, a década de 1950 promoveria uma inflexão nos rumos do Movimento Comunista Internacional (MCI), no PCB e por isso mesmo no próprio Marighella. O XX congresso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética) denuncia os crimes e as violações da legalidade durante a vigência do chamado "culto à personalidade" a Iossif Stalin. A crise que rebentou no MCI após a divulgação do "relatório secreto" (sic) de Kruschev convoca à direção do PCB para a tribuna da autocrítica e exige uma reformulação política e organizativa.

A famosa "Declaração de Março de 1958”, rompe com o ultrasectarismo que marcou a orientação política dos comunistas brasileiros no período anterior (1950), recusando o apelo à luta armada e adotando a "via nacional para o socialismo" expressa pela conquista, por meio do caminho eleitoral, de um governo nacionalista e democrático. Insatisfeitos com o desfecho dos debates no interior do PCB, um pequeno grupo liderado por João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar, Callil Chade, Lincoln Oest e Ângelo Arroyo, passa a gravitar na órbita de influência do Partido Comunista Chinês (PCCh) partilhando a sua crítica à política de "coexistência pacífica" dos soviéticos e, muito rapidamente, criando uma alternativa para o movimento comunista brasileiro; assim, nasceu em 1962 o PCdoB. Marighella, por sua vez, não tomou parte na nova agremiação política, ainda que signatário do documento de 1958.

Apesar da dissidência com o PCB, o PCdoB mantinha fidelidade à concepção estratégica etapista nacional-libertadora (agrária e antiimperialista/nacional e democrática). O que diferenciava as duas organizações eram os aspectos táticos. O PCB, mais à direita (caminho eleitoral e governo nacionalista e democrático); o PcdoB, mais à esquerda (solução armada e governo popular). O etapismo, por sinal, era uma espécie de consenso em toda a esquerda de matriz dita socialista no Brasil. Marighella, mesmo após a sua ruptura com o PCB em 1967 e a posterior criação do "Agrupamento Comunista de São Paulo" (1968), embrião da "Aliança Libertadora Nacional" (ALN), padeceu da mesma concepção estratégica errônea e nociva para a Revolução Brasileira.

As divergências que se assomava desde o fim dos debates em torno da reorganização do partido através da "Declaração de Março de 1958" tomaram contornos mais nítidos nos anos 60, principalmente por três fatores: 1) A declaração de Cuba como primeira república socialista da América Latina e Caribe; 2) O conturbado governo de João Goulart; 3) O golpe empresarial-militar de 1964.

À luz da experiência cubana, o palavreado radical acentua-se no meio da esquerda brasileira sem, em contrapartida, ter algum grau de correspondência no nível de conscientização e organização das massas populares. O advogado pernambucano Francisco Julião e as Ligas Camponesas ilustraram essa tendência de forma ímpar com o lançamento do "Movimento Revolucionário Tiradentes" (MRT).  A linha política vacilante do PCB - de um governo nacionalista e democrático - voltada para a aprovação das "Reformas de Base" sofre uma guinada à esquerda ao atribuir ênfase na "luta contra a conciliação com o latifúndio e o imperialismo" do governo Jango, pressionando-o em novo patamar.

Vitorioso o golpe reacionário de 1964 e ante a passividade do PCB para enfrentá-lo, sintoma de sua débil ligação com as massas e sua orientação política canhestra, Marighella decide empunhar a "crítica das armas" no combate à ditadura. As sevícias das quais fora vítima sob a égide do "Estado Novo (1937-1945) determinam a opção de Carlos Marighella pela resistência armada frente a nova forma de dominação política burguesa. Baleado no cine Eskye-Tijuca em 9 de maio de 1964, Marighella protagoniza exemplo cívico ao resistir à prisão que resultou na célebre brochura "Por que resisti à prisão?" (1965). Daí em diante, já com seus 53 anos, Marighella seria alçado ao panteão dos maiores heróis brasileiros.

O livre trânsito que Francisco Julião possuía junto à embaixada cubana permitiu com que Marighella viajasse até Cuba onde confirmaria sua opção pela luta armada. Na ilha participou da Conferência de Solidariedade à América Latina e África que originou a OPSAAL (Organização de Solidariedade aos Povos da África e América Latina) e posteriormente a OLAS (Organização Latino-americana de Solidariedade) sediada em Havana nos anos de 1966 e 1967. Sob a palavra de ordem "Um, dois, três Vietnãs" a OLAS pretendeu se constituir como centro político, ideológico e organizativo para o movimento revolucionário latino-americano difundindo a tese foquista ilustrada por Regis Debray que, supostamente, foi o artífice do sucesso cubano em 1959.

Dentro deste contexto, é preciso ressaltar que Marighella já havia redigido o importantíssimo "A crise brasileira" (1965), onde suas críticas à "liderança marxista" - O PCB -  e as razões pelas quais não houve resistência ao golpe de 1964 são expostas mais abertamente. A "Carta à Comissão Executiva do Partido Comunista Brasileiro" (1966) formaliza oficialmente a ruptura com seus antigos camaradas. Expulso do PCB em 1967, na sequência imediata funda a "Aliança Libertadora Nacional" (ALN) que 1969 participaria do sequestro ao embaixador estadunidense Charles Elbrick em ação conjunta com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). A perseguição obstinada e o martírio de Carlos Marighella e seus camaradas da ALN é vastamente documentada e demasiadamente conhecida.

A Reconstrução Revolucionária do Partido Comunista Brasileiro saúda, incorpora e julga estar à altura do legado político de Carlos Marighella, contudo, renuncia a uma pretensa visão atribuída ao nosso camarada na disputa de sua memória. Marighella foi mais do que um guerrilheiro, foi um homem que imolou a própria vida em prol de um ideal. O emblemático revolucionário baiano foi, antes de qualquer coisa, um agitador, organizador e tribuno popular conectado profundamente com os dilemas da Revolução Brasileira e os anseios das massas populares.  O "aventureirismo" (sic) presente em Carlos Marighella que empolga os setores da pequena-burguesia urbana radicalizada inviabiliza, no essencial, a necessidade de uma ação coletiva planejada meticulosamente por um partido revolucionária que visa a transformação radical da sociedade capitalista em sociedade comunista. Marighella sabia perfeitamente da necessidade dos esforços de sua construção e jamais se eximira de sua responsabilidade histórica neste sentido.

Agitador, guerrilheiro ou "terrorista" (sic), Marighella é imprescindível às novas gerações de comunistas que se levantam contra a exploração e opressão e põe em seu horizonte a edificação de um mundo sem classes, livre de exploradores e explorados, visando a sociedade comunista.

CARLOS MARIGHELLA TOMBOU. VIVA CARLOS MARIGHELLA!

Recomendações bibliográfica:

- MAGALHÃES, Mario. "Carlos Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo". Editora Cia das Letras (2012)

- PINHEIRO, Milton. FERREIRA, Muniz (org). "Escritos Políticos de Marighella no PCB". Fundação Dinarco Reis; Instituto Caio Prado Jr. (2019);

- PRESTES, Anita. “Luis Carlos Prestes: O combate por um partido revolucionário (1958-1990)”. Expressão Popular (2012)