'Consciência e luta de classes, luta política e o perfil do proletariado no Brasil' (Matheus Cardoso)

É preciso reconhecer onde se encontram e quais os interesses do proletariado nessas lutas políticas, para que, de arrastão, ele possa ser a classe a protagonizar o enfrentamento à burguesia e abolir todas as classes.

'Consciência e luta de classes, luta política e o perfil do proletariado no Brasil' (Matheus Cardoso)
"Onde há, em alguma medida, uma reunião da massa de trabalhadores, são nas lutas mais imediatas à sua existência. Devemos aproveitar essa movimentação para começar a trabalhar no longo prazo, e não trabalhar no longo prazo completamente desvinculados, vazios em conteúdo, das lutas imediatas da classe trabalhadora."

Por Matheus Cardoso para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas,

Antes de mais nada, gostaria de reforçar a necessidade desse XVII Congresso Extraordinário e parabenizar todo o conjunto da militância por aceitarem participar com afinco desse processo histórico, com potencial para ser um passo importante na proletarização do Partido, no desenvolvimento do Movimento Comunista no Brasil e na disputa ideológica da consciência da classe trabalhadora brasileira.

Isso dito, o que me motivou a escrever essa tribuna é, talvez, conseguir contribuir ou pelo menos convidar a militância para algum debate sobre um ponto sensível para a nossa organização, que está expresso no tópico Sobre o perfil da classe trabalhadora e seus setores estratégicos do Caderno de Teses. Essa questão já havia sido motivo de polêmica no XVI Congresso, com o documento Perfil do proletariado brasileiro Relações de produção e formas de atuação da classe trabalhadora no enfrentamento ao capital e também a tribuna escrita pelo camarada Landi[1].

Apesar de reconhecer importantes as considerações que o camarada faz em sua tribuna, tanto a respeito dos acúmulos realizados pelo PCB, quanto como as colocações críticas à confusão de ordem metodológica que começa com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), e perpassa os redatores das resoluções do XVI Congresso, acredito que algumas confusões ainda continuam expressas no documento do XVII Congresso[2].

Tenho acordo com o que o camarada Landi escreve

As explicações não precisam ser elas próprias objeto de votação e podem ser dadas minuciosamente em um ou muitos documentos posteriores, preparados por uma comissão de propagandistas eleitos com base no programa definido pelo Congressos [...] seria preciso debater o núcleo dos problemas políticos e metodológicos que cercam a questão, e não submeter todo um documento estatístico a votação congressual [...]

E, nesse espírito, me parece estranho que existam teses relacionadas ao perfil do proletariado que, primeiro, continuem “explicando” o processo de formação social do povo brasileiro (explicitamente, da tese 55 a 58). Não estou apontando que as teses não estão de acordo com a nossa linha política ou que elas estejam “desnecessárias”, mas há quase que um abuso da boa vontade do conjunto da militância de fazer com que essas três teses consigam explicar todo o salto lógico para as diversas lutas que devemos encarar no país. Ao falar sobre o perfil da classe trabalhadora, acabamos fazendo um “resumão” mais sobre a formação social dos brasileiros do que traçando um perfil da classe trabalhadora.

Peço perdão adiantado aos camaradas por parecer tão preciosista com o uso das categorias, das definições das palavras, mas, quanto mais tenho refletido sobre isso, mais percebo que essa confusão pode nos prejudicar na hora da formulação de uma política consequente para o próximo período. Então, para evitar isso, recorro também ao dicionário para nos trazer a definição de “perfil”. De acordo com o dicionário Houaiss, perfil é

1 contorno que delimita algo ou alguém ‹pano de lã vermelho com seu p. de retrós vermelho›
1.1 (1574-1590) linha de contorno de qualquer coisa apreendida numa visão de conjunto ‹o p. da montanha era imponente›
1.2 contorno gráfico de um objeto, visto apenas por um dos lados
1.3 delineamento de um rosto visto de lado
2 conjunto organizado de informações
2.1 descrição de uma pessoa em traços subjetivos que ressaltam suas características principais ‹o jornalista traçou um p. inteligente do escritor›
2.1.1 jor nota biográfica e/ou os traços psicológicos de alguém
2.2 conjunto de traços psicológicos ou habilidades mais ou menos padronizadas que tornam alguém apto para determinado posto, encargo ou responsabilidade ‹p. de líder›
3 arq, art.plást contorno de uma moldura posta em relação com a seção transversal dela
4 arq desenho em corte de um elemento arquitetônico
5 arq secção perpendicular de um edifício, para melhor se ver sua disposição interior
6 arq secção de um terreno com a finalidade de visualizar seu declive
7 mil ação ou efeito de perfilar tropas (grifos meus)

Insisto nessas duas distinções por uma questão simples: enquanto explicar a formação social pode nos levar a entender quem são os indivíduos em um dado período, o perfil pretende entender como se comportam, a partir das suas determinações, os diferentes sujeitos nas relações intra e inter classe para a tomada de ação revolucionária. 

Enquanto a discussão da formação social revela para nós as classes em diferentes períodos (e, a partir disso, caímos em um outro erro metodológico do ponto de vista historiográfico, mas que vou evitar aprofundar aqui), entender o perfil do proletariado é entender, necessariamente, a classe em seu movimento real, suas contradições, o que tem sido realizado para que essa classe possa assumir o seu papel histórico.

Sendo justo, tentamos sim observar esse movimento real, e até concordo com algumas colocações, mais especificamente a respeito da tese 59, onde diz

59 Quando afirmamos a existência de “setores estratégicos do proletariado”, nos referimos a outro aspecto dessa desigualdade de inserção econômica: à desigualdade existente entre as condições de organização e influência político-econômica que cada fração distinta do proletariado possui em função de seu próprio posicionamento em setores dinâmicos ou nevrálgicos da economia capitalista, sendo capazes de afetar com suas mobilizações a produção e reprodução capitalista de maneira mais ou menos profunda. Devemos concentrar nossos esforços especialmente na inserção em determinados setores apenas por um motivo: porque na guerra de posições preparatória à ofensiva revolucionária do proletariado, faz-se necessário infiltrar as “fortalezas produtivas” em cujo interior a ação proletária possa influenciar de forma mais decisiva o curso dos eventos. [...]

Mas, ao passo em que concordo com o conteúdo, não acho que esse é o momento em que teremos condições concretas de realizar essa tarefa, precisamente porque não nos atentamos a produzir ainda um perfil real da classe trabalhadora brasileira e também porque sequer avaliamos corretamente qual o perfil da militância partidária.

Começando pelo último, e, sabendo que, por motivos óbvios, não cabe uma descrição do perfil da nossa militância em documentos públicos, não cabe detalhar onde atuamos, quantos atuam, de que forma atuam, é mais do que justo. Mas, em todo o período do racha, fizemos uma crítica elevada sobre a falta de capacidade e de atuação no que a tese chama de setores nevrálgicos da economia capitalista, não é como se somente munidos de boa vontade e boas palavras, poderemos ter modificado essa condição nesse meio tempo.

A atuação da Unidade Classista, tirando situações pontuais, era irrisória, e mesmo nesses locais pontuais, encontravam suas limitações. Para mim, além da falta de capacidade operativa do PCB, existe uma condição ideológica que ainda limita essa nossa inserção nesses espaços. Quero, a partir daqui, tentar começar a formular sobre a consciência social e as possibilidades das lutas de classes no Brasil.

Consciência e lutas de classes

Ao ler esse tópico no caderno de teses, fui imediatamente ao site para procurar alguma tribuna que dialogasse sobre a consciência social ou algo similar. Infelizmente, não fui capaz de encontrar (inclusive, caso algum camarada tenha vontade de responder a essa tribuna, ou entrar em contato para mostrar algo que deixei passar, por favor, façam isso). Por isso, acabei indo recorrer aos textos clássicos. Me refiro aqui a três, “História e Consciência de Classe” do Lukács[3], “Que Fazer?” do Lenin[4] e “A Ideologia Alemã” de Marx e Engels[5].

Em Marx e Engels, aparece

A produção das ideias, das representações, da consciência está em princípio diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparece aqui como direta exsudação do seu comportamento material. [...] A consciência nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo real de vida. [...]  (Marx e Engels, 2019, pág. 31).

E, finalmente,

Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência. (Marx e Engels, 2019, pág. 32).

Em Lukács, ao dialogar com escritos de Marx e, principalmente, Engels, consegue chegar a algumas considerações importantes sobre a “consciência falsa”, a “consciência justa”, não entendidas aqui como oposição uma à outra, mas devendo ser estudadas sistematicamente e entendendo sua importância e no cumprimento do papel histórico de uma determinada classe. Ainda em Lukács, outra advertência aparece, que é entender também como cada classe se movimenta e em que medida se movimenta de forma “inconsciente”. O pensador assinala 

Contudo, mesmo as classes capazes de dominação não devem ser postas no mesmo plano no que concerne à estrutura interna de sua consciência de classe. O que importa aqui é saber em que medida estão elas em condições de se tornarem conscientes das ações que devem executar, e efetivamente executam, para conquistar e para organizar sua posição dominante. Pois o que importa é a seguinte questão: que ponto a classe em questão cumpre "conscientemente", até que ponto "inconscientemente" , até que ponto com uma consciência "justa", e até que ponto com uma consciência "falsa", as tarefas que lhe são impostas pela história? Essas não são distinções meramente acadêmicas. Porque, independentemente dos problemas da cultura, onde as dissonâncias resultantes dessas questões são de uma importância decisiva, o destino de uma classe depende de sua capacidade, em todas as suas decisões práticas, de ver com clareza e de resolver os problemas que a evolução histórica lhe impõe. (Lukács, 1960).

Por último, Lenin, ao observar a condição em que chega a teoria marxista nas lutas do operariado russo, percebe a relação de “exterioridade” com que a teoria chega nas lutas, consideradas pelo querido calvo como lutas sindicais e não ainda lutas sociais-democratas.

Os operários, já dissemos, não podiam ter ainda a consciência social-democrata. Esta só podia ser introduzida de fora. A história de todos os países atesta que, pelas próprias forças, a classe operária não pode chegar senão à consciência sindical, isto é, à convicção de que é preciso reunir-se em sindicatos, conduzir a luta contra os patrões, exigir do governo essas ou aquelas leis necessárias aos operários etc. Já a doutrina socialista, nasceu das teorias filosóficas, históricas, econômicas elaboradas pelos representantes instruídos das classes proprietárias, pelos intelectuais. Os próprios fundadores do socialismo científico contemporâneo, Marx e Engels, pertenciam eles próprios, pela sua situação social, aos intelectuais burgueses. Da mesma forma, na Rússia, a doutrina teórica da social-democracia surgiu de maneira completamente independente do crescimento espontâneo do movimento operário; foi o resultado natural, inevitável do desenvolvimento do pensamento entre os intelectuais revolucionários socialistas. (Lenin, retirado do EDC).

Fiz essa exposição inicial um tanto chata e, possivelmente, com alguns equívocos, para tentar elaborar sobre a realidade brasileira. Adianto que não é, de forma alguma, uma tentativa de transpor as realidades que os autores viviam para a nossa atual, mas gostaria de me apropriar do que aparece como fundamento para essa análise.

Percebam que esses diversos autores demonstram que, assim como a realidade se manifesta de modo invertido, a consciência dos indivíduos será determinada de modo igualmente invertido. Existe uma pressão, uma carga ideológica nos indivíduos e nas classes que esses indivíduos ocupam que tenderá a uma visão que legitima as relações sociais de produção em um dado momento. 

No texto que citei do Lukács, ele expõe como, no contexto da mudança do regime feudal para o capitalista, apesar das lutas existirem, elas possuíam uma dimensão “inconsciente”, seja por parte dos seus defensores, seja por parte dos opositores (revolucionários ou reformistas), que não eram ainda capazes de realizar a crítica à economia escravagista, não compreendendo que essa economia seria a responsável pelo declínio da sociedade antiga.

Dessa forma, e com as particularidades do tempo e do espaço que ocupamos, estou convencido de que, mesmo essa crítica da economia burguesa já tendo sido realizada pelo proletariado (ainda que em experiências nacionais apenas, com maior ou menor força a nível internacional), não poderíamos sequer falar em “lutas inconscientes” em setores dinâmicos da economia capitalista no Brasil, dado o nível de letargia, inércia, da classe trabalhadora que operam nesses setores.

Qual a última derrota imposta pelos trabalhadores de algum setor fundamental para a reprodução das relações sociais de produção capitalista no país? Qual a última convocação para uma greve geral que foi bem sucedida? Por outro lado, as manchetes, os veículos de mídia burgueses, dia sim e dia também escancaram as inúmeras derrotas que nos impõem ao longo dos anos. 

Para ficar em apenas um exemplo e não estender tanto essa tribuna, um dos setores importantes para nós, expresso no caderno de teses, é o da telecomunicação. A última greve noticiada é de 2012 e o superintendente de Serviços Privados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), à época, não fez mais do que dizer “não prejudica a fiscalização de operadoras de celular”[6].

Isso significa que devemos abandonar as lutas de classes nos setores dinâmicos? Muito pelo contrário, devemos agitar e disputar a consciência da classe trabalhadora em todos os locais possíveis. Mas é preciso pontuar que se formulamos uma estratégia de tomada do poder, existem classes ou frações de classe que formulam sobre a sua manutenção no poder. E, no contexto atual, essa estratégia da burguesia perpassa em se aproveitar e produzir essa letargia da classe trabalhadora. 

O que seria esse fomento, através dos conglomerados de mídia, do culto ao empreendedorismo, da romantização das condições de subemprego que os trabalhadores estão se submetendo?

Não temos condições objetivas, no atual momento do Partido, de conduzir lutas consequentes e constantes contra a dominação ideológica burguesa. Mesmo os nossos maiores quadros têm pouca ou nenhuma influência dentro do que podemos considerar por “lutas econômicas”. Mais uma vez, isso não nos dá o direito de nos ausentar dessas lutas, mas discordo frontalmente de que esse é o momento onde temos condições de nos “infiltramos nas ‘fortalezas produtivas’” e garantirmos vitórias.

Se encararmos que nossa tarefa histórica é de sermos instrumentos do proletariado para operar derrotas à burguesia, devemos entender qual é o caminho do processo de acumulação de capital e de como se constitui a burguesia nacional. Isso, por si só, já é uma tarefa hercúlea, não tenho dúvidas. Entender inclusive que, sim, existiram lutas consequentes da burguesia nacional (já apontando uma discordância com outro momento do caderno de teses), e, se não foram capazes de enfrentar o capital estrangeiro e se submeteram a ele, colocando o Brasil em uma posição de dependência na economia global, ao menos foram capazes de ser articuladores políticos entre regiões brasileiras e o capital estrangeiro, de redefinir o território brasileiro por diversas vezes e também as suas parcelas do solo onde se manifestam, de diversas formas, a produção do mais-valor. 

Alguns dados me parecem apontar que, no Brasil, existam particularidades que façam com que o eixo de gravidade das lutas seja a partir de outros locais que não em setores da indústria pesada. Na série histórica da industrialização do país, verificamos o declínio da indústria, que já nem era um setor expressivo na dinâmica de acumulação há alguns anos.

Imagem 1 - Porcentagem no PIB da Indústria de Transformação Fonte: Blog Valor Adicionado (2019)

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstrou, nesse último período (2010 - 2020), que a participação da indústria no Produto Interno Bruto (PIB) encolheu em 33%. Para todos os efeitos, essa redução significou também a perda de empregos para 769,3 mil pessoas, ou 9,2% dos postos de trabalho, de acordo com a apuração feita pelo Valor Econômico[7].

Um pouco mais recente, o Correio Braziliense[8] nos informa que esse número de pessoas perdendo seus postos de emprego no país subiu para 834 mil, associado também a condições como o fechamento das linhas de produção da Ford, Sony, Panasonic, entre outras.

Que há a geração de mais-valor, que há a exploração da mercadoria força de trabalho no país, não se discute. Mas quais são esses caminhos percorridos para a geração de capital? Como esses caminhos e as movimentações das classes acabam por moldar a consciência da população? Onde, potencialmente, podemos achar uma classe mais consciente de sua tarefa histórica e capaz de ser aglutinadora das demais lutas pela emancipação humana?

O perfil da classe trabalhadora e as lutas políticas

Como exposto anteriormente, acredito que o perfil da classe trabalhadora deva ser um tópico dentro das teses destinado a pensar como se movimentam as diversas frações da classe trabalhadora, quais suas últimas vitórias e o que podemos aprender, criticar e elevar junto aos trabalhadores para garantir os objetivos de proletarização do Partido e de sermos o instrumento capaz de fazer com que o proletariado cumpra o seu papel histórico.

Claro que para se entender o perfil da classe trabalhadora também precisamos estudar a formação social do povo brasileiro, mas não basta dizer como elas estão constituídas para, como num passe de mágica, sabermos como elas interagem entre si. Nesse sentido, não discordo das teses 55 a 58, elas conseguem condensar as discussões que apareceram nos documentos do XVI Congresso.

No entanto, é preciso mais. Elas não evidenciam além do que já sabemos sobre a sociedade brasileira, a formação violenta e da série de opressões relacionadas ao gênero, à raça, etc. Não procuramos categorizar ainda quais são as frações de classe dentro da classe trabalhadora, quais são aqueles que, em constante trânsito dentro da dinâmica urbana, podem se convencer de uma mentalidade pequeno-burguesa? Quais são aqueles trabalhadores liberais que caminham rumo à proletarização?

Isso me remete a um esforço empreendido pelo camarada Mao Tsé-Tung, em seu texto Análise das classes na sociedade chinesa[9], onde ele faz questão de elencar quais são ‘os inimigos’, ‘os amigos’ do Partido, julgando necessário compreender cada uma delas para unir os diversos segmentos, cada qual com sua contribuição, em torno da luta revolucionária. Ele divide as classes chinesas em. 1. A classe dos proprietários de terra e a ‘classe compradora’ (ele dá uma explicação da formação dessa classe, que não acho que cabe falar aqui); 2. A burguesia média; 3. A pequena burguesia, essa com frações de classe como o ‘campesinato proprietário’; 4. O semiproletariado, composto por ‘camponeses semi-proprietários’, ‘campesinato pobre’, pequenos artesãos, etc; 5. O proletariado, e, finalmente, um “apêndice” sobre o lumpemproletariado, composto por camponeses que perderam suas terras e artesãos que não conseguem trabalho.

Ao categorizar essas classes, ele não só explica o processo histórico para a constituição de indivíduos nessas classes, esmiúça as classes nas suas frações possíveis e na permeabilidade dos indivíduos entre essas classes, demonstra como elas se relacionam dentro da estrutura chinesa àquela época e dá recomendações de como o Partido deve se aproximar dessas classes e das suas frações com um trabalho político claro.

Não quero que pensem que estou propondo que utilizemos essas mesmas categorias datadas e localizadas em um momento específico, mas, se ainda não ficou claro, acho que deveríamos nos ocupar para definirmos quais são as classes que devemos nos opor e aquelas que podemos realizar trabalhos específicos e como disputar em determinados momentos a consciência dessas classes.

Ainda que seja uma tarefa árdua categorizar as diversas frações da classe trabalhadora, e que nessa tribuna eu não possuo capacidade, instrumentos ou tempo, gostaria de expor algumas análises que podem ser feitas utilizando os microdados do Censo de 2010 do IBGE com auxílio de softwares de geoprocessamento e que podem servir de base para a construção de alguma metodologia que os camaradas elaborem. 

Necessário dizer que esse é um exemplo muito pontual e com limitações, já que são algumas informações que produzi há alguns anos sobre Salvador (fiz sobre o Rio de Janeiro para um amigo, mas acabei perdendo essas informações com o tempo). No entanto, gostaria de demonstrar isso porque condensa tanto as informações estatísticas que os camaradas sempre trazem, com uma perspectiva espacial, territorial, onde podemos delimitar com mais clareza nossa atuação, a partir de quais pautas e para quais frações de classe (ou em contato direto com o proletariado, se o encontrarmos).

Em 2010, Salvador possuía quase 2,7 milhões de habitantes e, em 2020, passou para pouco mais de 2,4 milhões, sendo a capital brasileira onde houve a maior redução do número de habitantes, com uma taxa de 9,6%, participando de uma tendência nacional da diminuição da população nas capitais brasileiras, tendo acontecido o mesmo em 9 das 27 cidades[10]. Só aqui já caberia uma análise também de fluxo, para onde foram essas pessoas, se houve um movimento de retorno às cidades de médio e pequeno porte, se há um crescimento ou não das regiões metropolitanas, e como isso é uma mudança de consciência de frações da classe trabalhadora sobre a sua estadia em centros urbanos. No entanto, vamos pensar inicialmente dentro do espaço urbano.

Essa era a distribuição em termos de densidade da população soteropolitana em 2010.

Imagem 2 - Densidade bruta da população de Salvador, BA em 2010. Fonte: IBGE (2010). Elaborado pelo autor.

Apesar da divisão metodológica apresentada, para fins de propostas de desenho urbano, a realidade da cidade é um tanto mais perturbadora, com a categoria “muito alta” variando entre 600 hab./ha até 8400 hab./ha em alguns dos setores censitários! Quando confrontamos isso a outras informações espacializadas, percebemos quem são as pessoas que vivenciam essas condições, quais suas determinações sociais e como isso pode vir a afetar a consciência a nível individual e a nível de classe.

Imagem 3 - Distribuição da população de Salvador, BA por raça em 2010. Fonte: IBGE (2010). Elaborado pelo autor.
Imagem 4 - Distribuição da população de Salvador, BA por faixa salarial em 2010. Fonte: IBGE (2010). Elaborado pelo autor.
Imagem 5 - Distribuição da população de Salvador, BA por chefes de família em 2010. Fonte: IBGE (2010). Elaborado pelo autor.

Vejam, camaradas. Quando as informações são sobrepostas, percebemos que existe uma “cara” da classe trabalhadora, ou melhor, um perfil, se utilizarmos aquela primeira definição. As áreas mais precárias da cidade, a classe trabalhadora urbana, pelo menos aqui em Salvador (e me entristece não ter fôlego para fazer essa sistematização por todo o país), está disposta de uma forma nada aleatória, que molda uma forma de ver o mundo, consciente, falsa ou justa, ou inconsciente, mas molda.

É a uma classe trabalhadora majoritariamente composta por mulheres chefes de família, negras, com pouca permeabilidade entre as classes (advindo dos problemas de ordem espacial e de ordem salarial) residentes nas periferias dos centros urbanos, cumprindo verdadeiras jornadas entre suas casas e seus trabalhos (36% da população brasileira que despende mais de 1 hora por dia no trajeto casa-trabalho[11]) que são a pedra angular de um projeto revolucionário.

Nas nossas teses é colocado da seguinte forma, sobre os setores estratégicos

§61 A caracterização de um setor como estratégico não pode se dar pela análise do grau de exploração de uma determinada categoria de trabalhadores. Ele é estabelecido ao verificarmos que nossas atenções devem se voltar a uma camada de trabalhadores por razões estruturais de longo prazo. Isso não nos impede de, eventualmente, em decorrência de razões conjunturais e explosões espontâneas, concentrar esforços na atuação em meio a uma categoria não considerada estratégica.

E

§62 Assim, definir esses setores como estratégicos significa que nossos planejamentos serão voltados prioritariamente para essas categorias e o trabalho executado compreendendo a necessidade de inserção nelas. Certamente, por meio desse trabalho, outros setores, secundários do ponto de vista estratégico, buscarão nosso Partido e abrir mão da contribuição à luta e organização desses setores seria uma renúncia às nossas tarefas.

Cometemos um erro ao colocar como secundárias determinadas movimentações da classe trabalhadora que, embora possuam suas limitações a um projeto revolucionário, são os mais ativos e que mais alcançam resultados. É onde se encontram as possibilidades de transformar e disputar a consciência dos trabalhadores e do proletariado.

Caminhando na direção contrária da nossa tarefa histórica enquanto comunistas, e, assim, atrasando mais as possibilidades da execução da tarefa do proletariado, nos dedicamos com pouca cientificidade sobre as táticas e as bandeiras que devemos levantar no próximo período. Os tópicos que se seguem, que podemos entender como lutas políticas e não as lutas econômicas propriamente, que falam sobre o movimento por moradia, o movimento sindical, de juventude, feminista, negro, indígena, agrário/ambiental, todos eles são lutas onde a dimensão econômica não aparece claramente à primeira vista, apesar de estarem intimamente ligados ao processo de reprodução da economia capitalista, mas que nos últimos anos conseguiram estourar e convencer mais pessoas do que as lutas que quem escreveu as teses julga serem os setores estratégicos.

Por exemplo, na luta pela moradia, a classe trabalhadora das capitais brasileiras, em experiências mais ou menos estruturadas a nível nacional, estadual e local, como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), União Nacional por Moradia Popular (UNMP), entre tantos outros, precisam ser melhor estudados e aproximados. Não adianta apenas falar que “entendemos a moradia para além da mercadoria”, porque isso nem constitui um primeiro passo no que devemos fazer e como devemos aprender com a classe trabalhadora em suas lutas.

No entanto, o que está posto para nós é que essas movimentações são secundárias do ponto de vista da nossa inserção. Sem contar aqui ainda a falta de coragem para apresentar determinadas discussões de lutas ainda mais marginalizadas, como as das profissionais do sexo e que boa parte da militância traz consigo posicionamentos sem um pingo de rigor científico.

Devemos nos aproximar, ainda que com ressalvas e autonomia política dos movimentos que conseguem pautar interesses da classe trabalhadora e, vez ou outra, obtêm alguma vitória. Não nego aqui, que analisando as frações de classe que constituem a classe trabalhadora, aparecerão sujeitos mais ou menos reacionários que podem dificultar as lutas e a tomada de consciência do proletariado, mas são nessas pautas “imediatistas” que estão condensados interesses de curto prazo e de longo prazo, e que temos alguma condição de disputar com mais qualidade.

Se entendemos por proletariado o sujeito histórico revolucionário que, desprovido de qualquer outra possibilidade, só resta a conquista do poder de forma violenta, onde devemos encontrá-lo e muni-lo com o aparelho partidário senão nos locais onde a consciência dele está mais aguçada?

Não acho que esse é um discurso que vise o rebaixamento da luta e da conquista pelo poder popular, muito pelo contrário, acredito que seja o discurso e a atuação necessárias para uma proletarização do Partido e, concomitantemente, uma disputa dos setores estratégicos da economia capitalista.

Das lutas políticas da classe trabalhadora às lutas econômicas

Se não ficou suficientemente claro, o que busco demonstrar é que se as teses permanecerem de tal modo para orientar nosso trabalho no próximo período, ainda encontraremos dificuldade em começar a desenvolver um trabalho revolucionário junto à classe trabalhadora. Então, defendo que uma inversão no que devemos entender como estratégico precisa ser realizada nas teses.

Anteriormente falei sobre a “consciência falsa” e a “consciência justa”, mas não elaborei da forma devida, não acredito que possa fazer isso nessa tribuna. Esses são termos que parecem apontar para uma moralidade e abstração de uma classe, no caso, a trabalhadora. Ao pensar que devemos nos apoiar em uma estratégia que leve em consideração nossos interesses (do Partido) a longo prazo, e não as necessidades a curto, médio e longo prazo dos trabalhadores, não resolvemos a dificuldade de inserção nas massas, a disputa ideológica, enfim, uma Reconstrução Revolucionária que proletarize as fileiras do PCB.

Pode ser que alguns camaradas pensem que essa inversão pode significar uma inversão da tática pela estratégia, adianto que não é isso. Embora apareça como “setores estratégicos”, todo esse tópico não trata mais do que uma explicação para as táticas que seguiremos, uma ordem das prioridades, e, mais uma vez, que estão equivocadas para a realização da nossa estratégia do Poder Popular.

Nesse sentido, preciso dizer que li a tribuna Proposta de programa tática para o Partido Comunista e a defesa de seu programa histórico dos camaradas Gabriel Oliveira e Gabriel Galvão[12] e, embora algumas discordâncias pontuais sobre alguns assuntos, parabenizo a reflexão e acho que essa divisão proposta por eles entre “O que queremos hoje” e “O que queremos amanhã” consegue transmitir muito melhor quais as tarefas do nosso Partido e como deve ser feita a leitura da classe trabalhadora e as suas diversas frações.

Essas lutas políticas são o caminho para a proletarização das fileiras do Partido e, consequentemente, a possibilidade real de disputarmos a consciência do proletariado nas lutas econômicas, que se dão (ou melhor, não estão acontecendo) nos setores dinâmicos da reprodução do capital.

Marx nos ensina no segundo capítulo d’A miséria da filosofia[13]

As condições econômicas tinham a princípio transformado a massa da população do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum, interesses comuns. Assim, esta massa já é uma classe diante do capital, mas não o é ainda em si mesma. Na luta, da qual assinalamos apenas algumas fases, esta massa se reúne, se constitui em classe em si mesma. Os interesses que ela defende tornam-se interesses de classe. (Marx, 1946).

Onde há, em alguma medida, uma reunião da massa de trabalhadores, são nas lutas mais imediatas à sua existência. Devemos aproveitar essa movimentação para começar a trabalhar no longo prazo, e não trabalhar no longo prazo completamente desvinculados, vazios em conteúdo, das lutas imediatas da classe trabalhadora.

É preciso reconhecer onde se encontram e quais os interesses do proletariado nessas lutas políticas, para que, de arrastão, ele possa ser a classe a protagonizar o enfrentamento à burguesia e abolir todas as classes. Findar as lutas políticas e as lutas econômicas, que são ainda a expressão do antagonismo das classes.

Tenho acordo em como o camarada Landi coloca a questão

A tarefa histórica do proletariado consiste em, através de sua organização independente e consciente, aglutinar sob sua hegemonia todas as demais classes exploradas e camadas oprimidas do povo pobre – composto, em nosso país, também por imensos contingentes de pequenos produtores privados do campo e da cidade, nas suas diversas formas concretas. Somente uma aliança social assim demarcada, erguendo a bandeira da reorganização socialista da sociedade, poderá solucionar os graves dramas sociais que afligem a imensa maioria trabalhadora do povo brasileiro.

Pela ironia da coisa, depois de escrever tanto (espero não ter cansado quem leu e prometo que tentarei ser mais sintético nas próximas ocasiões), eu ainda não possuo nenhuma proposta de reformulação dessas teses. Isso será uma preocupação minha para levar à etapa de célula (assim como outras eventuais divergências), e peço que os camaradas discutam isso entre si, discordando ou concordando com as avaliações postas aqui e levem a sério a tarefa de tratar com maior rigor científico a questão do perfil da classe trabalhadora brasileira.

Gostaria, mais uma vez, de reafirmar meu entusiasmo com o XVII Congresso, com a militância e de saber que estamos na direção de qualificar as lutas de classes no Brasil.


Referências

[1] https://emdefesadocomunismo.com.br/polemicas-sobre-o-perfil-do-proletariado-brasileiro/

[2] Caderno de Teses para o XVII Congresso (Extraordinário) do PCB-RR

[3] História e Consciência de Classe, Georg Lukács, Ed. PCUS, 1960.

[4] Que Fazer?, Vladimir Lenin. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/index.htm 

[5] A ideologia alemã, Marx e Engels, Expressão Popular, 2009.

[6]https://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2012-07-24/anatel-diz-que-greve-de-servidores-nao-prejudica-fiscalizacao-de-operadoras-de-celular 

[7]https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/07/21/industria-perdeu-7693-mil-empregos-entre-2010-e-2019-mostra-ibge.ghtml 

[8]https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2022/01/4976526-producao-da-industria-encolhe-20-em-10-anos-e-enfraquece-a-economia.html

[9] Analysis of the classes in chinese society. In: Selected Readings From the Works of Mao TseTung, Foreign Language Press, 1971.

[10]https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/06/salvador-rio-e-outras-sete-capitais-perdem-moradores-entre-2010-e-2022.shtml#:~:text=A%20maior%20redu%C3%A7%C3%A3o%20aconteceu%20em,queda%20de%209%2C6%25

[11]https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/08/36-dos-brasileiros-passam-mais-de-1h-por-dia-no-transporte.shtml 

[12]https://emdefesadocomunismo.com.br/untitled-3/ 

[13]https://www.marxists.org/portugues/marx/1847/miseria/index.htm