'Polêmicas sobre o “Perfil do proletariado brasileiro”' (Gabriel Landi Fazzio)

Devemos ter em mente que aquilo que melhor define a fisionomia de uma classe não é o seu padrão de consumo, mas a sua forma – ou melhor dito, a forma de sua relação com os meios de produção e com a divisão social do trabalho

'Polêmicas sobre o “Perfil do proletariado brasileiro”' (Gabriel Landi Fazzio)
"É inevitável que, no esforço de sistematização do desenvolvimento histórico do capitalismo e do proletariado brasileiro, diversas divergências entre os marxistas venham à tona."

Por Gabriel Landi Fazzio para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Dando continuidade à republicação das minhas tribunas ao XVI Congresso do PCB, apresento as seguintes ponderações feitas à época acerca do documento “O perfil do proletariado brasileiro”. Apenas gostaria, a título de preâmbulo, de apresentar minha objeção geral à forma academicista das resoluções congressuais do PCB em todos seus últimos Congresso, mas em especial no tocante a esta tese do XVI Congresso sobre o perfil do proletariado. Estou profundamente convencido de que devemos abandonar essa modelo de resoluções livrescas de centenas de páginas de extensão.

Se observarmos o velho partido bolchevique (sim, eu sei: a mera menção a seguirmos o exemplo dos bolcheviques farão alguns se arrepiarem a nos acusarem de “querer repetir” ou “olhar apenas para o passado” etc.) e seus congressos, veremos que os plenários que às vezes duravam muitas semanas (o II Congresso durou quase um mês inteiro!) produziram, como resultado, algumas poucas dezenas de páginas de resoluções. O programa bolchevique não tinha mais de dez páginas, e o estatuto do partido não chegava a três. As resoluções eram baseadas não em longas descrições minuciosas, mas em sínteses dos principais problemas políticos sobre os quais havia divergências e era preciso decidir: a resolução sobre a atitude do partido frente as eleições tinha um parágrafo; a resolução sobre a atitude perante os camponeses ocupava mais um parágrafo; a resolução sobre as greves e os sindicatos possuía três ou quatro parágrafos etc.

Isso é absolutamente suficiente se entendermos nossas resoluções congressuais como balizas fundamentais de nossos métodos e concepções, e não como nosso principal documento teórico. Ao contrário! Por exemplo: Lênin lutou muitas vezes contra o esforço de inserir, no Programa do Partido, explicações das reivindicações. As explicações não precisam ser elas próprias objeto de votação e podem ser dadas minuciosamente em um ou muitos documentos posteriores, preparados por uma comissão de propagandistas eleitos com base no programa definido pelo Congressos, argumentava Lênin. Acredito que o mesmo é essencialmente verdadeiro, em especial, para o documento chamado “Perfil do proletariado brasileiro”: seria preciso debater o núcleo dos problemas políticos e metodológicos que cercam a questão, e não submeter todo um documento estatístico a votação congressual (um procedimento que, em seu espírito formalmente academicista, vai de fato na contramão de qualquer cientificismo sério)!

Parte 1

Camaradas,

A Pré-Tese sobre o “Perfil do proletariado brasileiro” merece uma calorosa saudação. Seu objetivo deve ser recebido com grande entusiasmo: armar o PCB com uma análise científica do desenvolvimento do capitalismo e, por conseguinte, do proletariado brasileiro (em todas suas nuances, e em relação com todas as demais classes da sociedade burguesa), conferindo à nossa estratégia socialista uma rigorosa fundamentação teórica. Neste sentido, esta Tese nos oferece um documento muito mais aprofundado do que qualquer uma de nossas resoluções congressuais recentes. Outro aspecto bastante importante: a questão racial em nosso país passa a ser apresentada em seu desenvolvimento histórico, e não apenas abordada adiante, quando tratamos da luta antirracista no presente. São avanços visíveis em nossas formulações teóricas.

A fim de contribuir para o enriquecimento desta Tese, gostaria de evidenciar algumas polêmicas que atravessam o documento. Divido essas polêmicas em conformidade com a divisão do próprio documento, em duas partes. Mas, dando destaque àquela que se pretende a parte principal do documento (precisamente sua Parte II), começaremos pelo final para, em um artigo seguinte, retornaremos ao preâmbulo histórico deste “Perfil do proletariado brasileiro” (Parte I).

A situação da classe trabalhadora no Brasil (Sobre “Um diagnóstico dos trabalhadores brasileiros na atualidade”)

No que diz respeito ao “Perfil do proletariado brasileiro” propriamente dito (Parte II), apresentarei questões de duas ordens distintas. Em primeiro lugar, apontamentos sobre alguns problemas metodológicos da Tese, expressos na insuficiente diferenciação, na Tese, entre a classe proletária, dos trabalhadores assalariados; e as classes pequeno-burgueses, dos pequenos produtores privados. Em segundo lugar, apontamentos que expressam divergências de mérito acerca da questão da produtividade do trabalho sob o capitalismo. Mas, como tentarei demonstrar, essas questões estão intimamente conectadas.

  1. Ocupados”: Proletariado e pequena burguesia.

    Debruçando-se sobre os dados estatísticos do PNAD de 2018, a Tese trabalha com especial destaque os dados da Tabela 5434, que enquadra as “pessoas de 14 anos ou mais de idade, ocupadas na semana de referência” entre distintos “grupamento de atividades no trabalho principal”. A análise dos dados estatísticos é feita, contudo, sem algumas ressalvas metodológicas importantes.

A bem da verdade, duas ressalvas são apresentadas na Tese (56):

  1. “o IBGE muitas vezes não leva em conta que muitos trabalhadores que participam direta ou indiretamente da cadeia de produção do valor estão contabilizados no setor de serviços”;
  2. [os dados] “misturam categorias com diferentes papéis no sistema econômico (produtores de valor e os que estão na órbita da circulação)”.

E, então, a Tese 56 conclui: “De qualquer forma, mesmo com todas essas debilidades metodológicas, a classificação dos trabalhadores e os números apresentados representam um diagnóstico muito próximo da realidade”.

Essa conclusão é bastante justa. Mas as ressalvas feitas aqui são não apenas insuficientes, como são desenvolvidas de maneira confusa na sequência da Pré-Tese (abordarei isto a seguir).

A Tabela 5434 do PNAD abrange o conjunto dos chamados ocupados. O principal problema metodológico do PNAD consiste em agrupar, sob esta mesma categoria, diversas classes sociais: a burguesia, o proletariado e diversos tipos de pequenos produtores privados (pequena burguesia). Por decorrência, o principal equívoco da Pré-Tese reside no fato de que ela trata todas essas camadas de ocupados sob a mesma rubrica de trabalhadores. Esse equívoco é duplo: primeiro, perde de vista que, entre os ocupados, o PNAD considera a categoria de empregadores (ou seja, burgueses e alguns pequeno-burgueses). Em segundo lugar, funde o proletariado e a pequena burguesia em uma mesma categoria (trabalhadores), e submerge, nas estatísticas sobre o proletariado brasileiro, enormes camadas de pequenos proprietários privados.

É preciso frisar essa grande confusão dos dados do PNAD para não confundirmos a nós próprios. Por exemplo: sabemos que existem aproximadamente 8,6 milhões de ocupados na “agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura”. Mas os dados não nos informam entre esses 8,6 milhões quantos são empresários, quantos são empregados (proletários, assalariados, que segundo alguns dados chegam a 4,8 milhões)[1], quantos desses são pequenos produtores privados, proprietários ou arrendatários de suas terras, etc. No entanto, a Tese 57 chama toda essa camada indistintamente de “Proletariado rural”! O resultado é a completa confusão entre o proletariado agrícola e a pequena burguesia rural. O mesmo equívoco se repete em outros grupamentos de atividades, tratando os ocupados homogeneamente: ora como empregados (uma extrapolação exagerada do dado do PNAD), ora como trabalhadores (neste caso, menos equivocadamente, pois os pequenos produtores privados não deixam de ser, a seu modo, trabalhadores).

Isso significa que os dados do PNAD acerca dos ocupados, distribuídos conforme grupamentos de atividades, não se prestam a nossos objetivos de uma análise científica da distribuição do proletariado entre os diversos ramos da produção? Como já disse, acredito no contrário: feitas as devidas ressalvas metodológicas, esses dados oferecem panoramas importantes. Inclusive porque essa “confusão entre o proletariado e a pequena burguesia”, se bem compreendida, tem ela própria uma base material. Como observava Lênin (em “Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo”, Capítulo VIII):

“O capitalismo deixaria de ser capitalismo se o proletariado ‘puro’ não estivesse rodeado de uma massa de elementos de variadíssimas graduações, elementos que representam a transição do proletário ao semiproletário (o que obtém grande parte de seus meios de existência vendendo sua força de trabalho), do semiproletário ao pequeno camponês (e ao pequeno artesão, ao biscateiro, ao pequeno patrão em geral) do pequeno camponês ao camponês médio, etc., e se no próprio seio do proletariado não houvesse setores com um maior ao menor desenvolvimento, divisões de caráter territorial, profissional, às vezes religioso, etc.”

Valeria notar como, a seguir, Lênin destaca a importância dessa gradação e de sua compreensão científica, com importantes reflexos na tática revolucionária. Para nós, revolucionários comunistas, essa observação subsequente merece a máxima atenção:

“De tudo isso se depreende imperiosamente a necessidade uma necessidade absoluta – que tem a vanguarda do proletariado, sua parte consciente, o Partido Comunista, de recorrer à manobra aos acordos, aos compromissos com os diversos grupos proletários, com os diversos partidos dos operários e dos pequenos patrões. Toda a questão consiste em saber aplicar essa tática para elevar, e não para rebaixar, o nível geral de consciência, de espírito revolucionário e de capacidade de luta e de vitória do proletariado.”

É precisamente esse espírito de diferenciação científica entre o proletariado e a pequena burguesia, e depois das diversas frações da pequena burguesia entre si (algumas mais tendentes ao proletariado, outras à burguesia) que falta a nosso “Perfil do proletariado”. Se consideramos esta uma tarefa posterior, ao menos devemos assegurar que nosso perfil do proletariado não dilua em seu interior, desde já, as camadas médias da sociedade burguesa.

Me parece que uma ressalva destinada a sanar esse risco deveria ser apresentada já desde a Tese 49, que hoje figura nos seguintes termos:

“49. O Brasil viveu nas últimas sete décadas uma espécie de revolução urbana: passou de 40 milhões em 1940 para 208 milhões de habitantes atualmente, que hoje vivem 5.570 municípios. Mais de 80% da população vivem nas cidades e praticamente a metade desse contingente habita em aglomerações urbanas com mais de 200 mil habitantes, sendo que 17 municípios têm uma população superior a um milhão de habitantes, 46 cidades possuem mais de 500 mil habitantes e em 317 têm mais de 100 mil habitantes. Os três Estados mais populosos encontram-se na região Sudeste, sendo São Paulo o Estado que concentra 21,8 da população brasileira, ou seja, 45,5 milhões de habitantes. Portanto, trata-se de uma população concentrada nas grandes cidades, o que significa dizer que é também nas grandes cidades e regiões metropolitanas que estão instalados os grandes grupos econômicos e grandes empresas e, consequentemente, o seu contrapondo, o proletariado brasileiro.”

Para melhor diferenciar, no interior dos dados que serão analisados a seguir, o proletariado da pequena burguesia, seria possível incluir as seguintes ressalvas metodológicas (ao fim da Tese 49, e por meio de uma nova Tese a ser incluída a seguir):

“49. O Brasil viveu nas últimas sete décadas uma espécie de revolução urbana: passou de 40 milhões em 1940 para 208 milhões de habitantes atualmente, que hoje vivem em 5.570 municípios. Mais de 80% da população vive nas cidades e praticamente a metade desse contingente habita em aglomerações urbanas com mais de 200 mil habitantes, sendo que 17 municípios têm uma população superior a um milhão de habitantes, 46 cidades possuem mais de 500 mil habitantes e 317 têm mais de 100 mil habitantes. Os três Estados mais populosos encontram-se na região Sudeste, sendo São Paulo o Estado que concentra 21,8% da população brasileira, ou seja, 45,5 milhões de habitantes. Essa tendência à concentração urbana é uma das características fundamentais do desenvolvimento capitalista: com a crescente expropriação dos pequenos agricultores e a concentração das terras nas mãos de uma minoria de grandes proprietários, por um lado; e com a crescente mecanização da produção agrícola, por outro, contingentes cada vez mais vastos de trabalhadores do campo são forçados a se deslocar para os grandes centros urbanos em busca de assegurar sua subsistência, por meio da venda de sua força de trabalho. Portanto, trata-se de uma população concentrada nas grandes cidades e regiões metropolitanas, onde estão instalados os grandes grupos econômicos e grandes empresas e, consequentemente, o proletariado brasileiro, bem como vastas camadas médias de pequenos proprietários privados.
50) É importante destacar que, investigando a situação do proletariado brasileiro, diferenciá-lo completamente das demais camadas do povo trabalhador consiste em um esforço impossível. Entre essas camadas da sociedade burguesa existe um trânsito constante: assim como a concorrência e a falência empurra os pequenos proprietários de volta ao proletariado, também o desemprego empurra o proletariado para os trabalhos autônomos, por exemplo. Assim, ainda que tenhamos consciência de que os dados estatísticos sobre os “trabalhadores ocupados” não expressam com rigor o “proletariado puro”; justamente por conta deste constante fluxo, consideramos que estes dados sejam um ótimo ponto de partida para a análise da situação da ampla massa dos trabalhadores pobres, proletários ou não.

Ademais, se desejamos compreender com precisão como, em cada um desses “grupamentos de atividades”, se dá a proporção entre o proletariado e a pequena burguesia, então necessitaríamos de uma série de investigações adicionais mais minuciosas, focadas em cada um dos setores elencados. De pronto, é possível deduzir que a proporção de pequenos proprietários privados seja maior em determinadas atividades de serviços, e a proporção de assalariados maior na indústria de transformação, etc. É importante frisar, contudo, essa confusão estatística necessariamente produzida pela metodologia do PNAD.

No caso dos trabalhadores rurais, essa diferenciação é especialmente importante. Na contramão das tendências dominantes no movimento dos trabalhadores rurais (que superestimam o potencial histórico-político do campesinato e subestimam a centralidade do proletariado agrícola), as Teses congressuais de um partido proletário precisam demarcar com nitidez um eixo prioritário de trabalho político entre a segunda camada. Do modo como figura a Tese 100, elencamos o “setor agrário” como estratégico, mas não elencamos em seu interior o proletariado como classe basilar para nossa atividade de agitação, propaganda e organização:

100. Trabalho no campo: o capitalismo está plenamente constituído no campo, mas nosso trabalho nessa área ainda é embrionário. É fundamental desenvolvermos uma estratégia para organizarmos os trabalhadores assalariados do agronegócio, bem como os pequenos agricultores hegemonizados pelo mercado capitalista no campo. Já temos contato e militância junto aos pequenos produtores, mas é importante aprofundarmos nossa organização tanto entre os assalariados da área agropecuária, mas também entre os pequenos agricultores e agricultura familiar. É necessário criar e fortalecer um coletivo específico para tocar as tarefas no campo, e os camaradas que estiverem responsáveis por essa tarefa devem apresentar, o mais breve possível, um plano de trabalho para atuarmos mais organizadamente nesse importante setor da economia.

Assim sendo, o “Perfil do proletariado brasileiro” demanda duas correções principais, no tocante aos trabalhadores rurais. Em primeiro lugar, a substituição, na Tese 57, do termo “Proletariado rural” pelo termo “Trabalhadores rurais”. Mas, além disso, nossas Teses precisam sustentar com mais nitidez o caráter prioritário do trabalho entre o proletariado rural, uma camada com interesses de classes mais alinhados aos do proletariado urbano e ocupada nos setores produtivos e dinâmicos da indústria agrário-exportadora.

Ao mesmo tempo, se queremos que esse trabalho entre os assalariados agrícolas seja conduzido em conexão com o trabalho entre os pequenos camponeses, a fim de assegurar uma linha política para a questão agrária que expresse a hegemonia do proletariado agrícola sobre o pequeno produtor privado; então seria o caso de pensar com cuidado a possibilidade de criação de “um coletivo específico” para tal trabalho. Isso porque, ainda que conectados, estes trabalhos têm características distintas: no primeiro caso, ressaltam-se as lutas salariais por meio de greves, por exemplo; enquanto no segundo caso há toda uma ordem de reivindicações em defesa da pequena propriedade contra os atravessadores e agiotas, contra a concorrência com os monopólios, etc. Portanto, um coletivo único, além de dificilmente sanar de um só golpe nossas debilidades organizativas nesta frente de trabalho, ainda incorreria no risco de priorizar o trabalho entre os pequenos produtores (um trabalho que, ainda que de modo incipiente, já desenvolvemos) em detrimento do trabalho entre os assalariados do campo.

Assim sendo, me parece que seria muito mais oportuno propor a criação de uma fração da Unidade Classista para a organização dos assalariados rurais, combinada à atuação de frações do próprio Partido entre os pequenos agricultores, a fim de organizar esse trabalho comum de tal modo que especial atenção seja dada à crescente camada assalariada dos trabalhadores rurais.

Neste sentido, proponho a consequente reformulação da Tese 100:

100. Trabalho no campo: o capitalismo está plenamente constituído no campo, mas nosso trabalho de massas nessa área ainda é embrionário. É fundamental desenvolvermos uma estratégia para organizarmos os trabalhadores assalariados do agronegócio, bem como os pequenos agricultores submetidos ao mercado capitalista no campo. Considerando esse cenário, em que cresce a proletarização no meio rural, mas figura ainda uma expressiva camada de pequenos produtores privados, precisamos combinar a atuação prioritária da Unidade Classista entre os assalariados a uma atuação de frações do Partido para o trabalho entre os agricultores pobres. Nesse sentido, o Comitê Central deve destacar camaradas a fim de apresentar, o mais breve possível, um plano de trabalho para atuarmos mais organizadamente nesse importante setor da economia.

A mesma confusão entre as camadas assalariadas e as pequeno-burguesas se reflete nas Teses 73 e 74, que discorre sobre o trabalho informal. Aqui, novamente, uma série de trabalhadores pobres informais são tratados homogeneamente quando, na verdade, se diferenciam entre assalariados sem carteira assinada e autônomos informais (pequenos prestadores de serviços, empobrecidos e sem CNPJ). Vejamos:

“73. Uma das características mais perversas do mercado de trabalho brasileiro é o elevado contingente de trabalhadores informais. Em termos práticos, significa um enorme excedente de reserva e um elemento estrutural da desigualdade e dos baixos salários. Mas esse não é um fenômeno que se verifica apenas na atualidade, em função da crise brasileira: desde o início da formação histórica do mercado de trabalho brasileiro, nos moldes capitalistas (imigração estrangeira maior que as necessidades da economia após a abolição da escravatura, migração interna das outras regiões para o Sudeste no início da industrialização efetiva, além dos ajustes predatórios e retirada de direitos desde a década de 80), o conjunto dos trabalhadores sobrantes ou informais foi sempre muito expressivo em relação àqueles com vínculo empregatício formal. A crise econômica atual só veio agravar esse problema, tendo em vista a recessão e o desemprego em massa: em 2017 o conjunto dos trabalhadores que estavam na condição de informais somavam 37,3 milhões de pessoas, o que representa 40,8% de toda a população ocupada.
74. Esse conjunto de trabalhadores na informalidade é constituído, em sua grande maioria, por autônomos sem CNPJ (que são designados ironicamente por empreendedores por necessidade), que na prática são prestadores de pequenos serviços, vendedores de mercadorias nas ruas ou pela internet, pessoas que fazem bico, além de trabalhadores sem carteira assinada nos setores privado e público e empregados domésticos. Grosso modo, de cada cinco trabalhadores dois estão na informalidade: isso significa baixa produtividade, um rendimento real 48,5% abaixo do mercado formal, além do fato de que esses trabalhadores não têm direitos trabalhistas, recebem muitas vezes menos que o salário mínimo e ainda se constituírem em massa de pressão involuntária para a baixa dos salários na economia.”

As Teses apresentam de modo pouco preciso uma questão bem complexa. Uma questão que, ainda que seja particularmente visível no caso dos países dependentes, como o Brasil, não é uma exclusividade destes: em todo o mundo capitalista existe essa correlação entre o aumento do desemprego e o aumento do trabalho autônomo – ou seja, pequeno burguês[2].

A esse respeito, valeria um esclarecimento. É bastante comum, mesmo entre os marxistas, uma compreensão bastante estreita do que seja a pequena burguesia. Lenin foi um autor particularmente atento a este problema, apontando o caráter pequeno burguês do campesinato e de todos os pequenos produtores privados de mercadorias. Entre nós, muitas vezes, há juízos morais desse problema: a pequena burguesia é vista como uma classe de parasitas, que não trabalha, ou que necessariamente recebe uma grande remuneração. A verdade é exatamente o oposto: no geral, como vendem o produto de seus trabalhos no mercado, concorrendo com os capitalistas, os pequenos produtores privados costumam recebem menos do que os assalariados do mesmo ramo, trabalhando mais horas[3]. No geral, além disso, esse pequeno produtor privado também é explorado. Não produz mais-valor, mas  produz um sobretrabalho, apropriado por capitais usurários (os bancos cujos empréstimos viabilizam sua concorrência e postergam sua falência, apenas para produzir massivos endividamentos) ou comerciais (o famoso atravessador – a seu modo particular, não seria precisamente esse o caso do Uber?), ou os dois.

Levando isso em conta, devemos ter em mente que aquilo que melhor define a fisionomia de uma classe não é o seu padrão de consumo, mas a sua forma – ou melhor dito, a forma de sua relação com os meios de produção e com a divisão social do trabalho (comumente expressa, também, na forma da sua apropriação do produto do trabalho social: o salário, o lucro, a renda, etc)[4].

Estabelecendo melhor as diferenciações de classes, necessárias a uma análise científica marxista, a redação destes pontos poderia elucidar uma série de problemas atuais de nosso movimento (especialmente a definição sumária dos trabalhadores uberizados como proletários):

73. Trabalhadores informais: o elevado grau de informalidade nas relações de trabalho é uma característica marcante do capitalismo dependente, decorrente do imenso exército industrial de reserva existente em nosso país. Aqui, coexistem diversas formas de exploração do trabalho, passando desde o trabalho assalariado informal, sem carteira assinada; até diversas formas de trabalho autônomo, em condições de precariedade e subordinação aos grandes capitais comerciais e bancários. A crise econômica atual agravou esse problema, em decorrência da recessão e do desemprego em massa: em 2017 o conjunto dos trabalhadores que estavam na condição de informais somavam 37,3 milhões de pessoas, o que representa 40,8% de toda a população ocupada.
74. Ainda que haja, nesse conjunto de trabalhadores na informalidade, um núcleo de proletários sem carteira assinada; a ampla maioria desses setores informais é composta por semi-proletários (ocupados em “bicos”) ou, até mesmo, pequenos produtores privados: são autônomos sem CNPJ (que são designados ironicamente como “empreendedores por necessidade”), prestadores de pequenos serviços; vendedores de mercadorias nas ruas ou pela internet; etc. Grosso modo, de cada cinco trabalhadores dois estão na informalidade: isso significa baixa produtividade, um rendimento real 48,5% abaixo do mercado formal, além do fato de que esses trabalhadores não têm direitos trabalhistas, recebem muitas vezes menos que o salário mínimo e ainda se constituírem em massa de pressão involuntária para a baixa dos salários na economia.

Em outras palavras: é preciso compreender que esses trabalhadores pobres, tais como os “prestadores de pequenos serviços; vendedores de mercadorias nas ruas”, mencionados na Pré-Tese, não são proletários. Enquanto a classe proletária vende sua força de trabalho para um capitalista pelo tempo de uma determinada jornada, fazendo mercadorias para este; esses trabalhadores, como todo pequeno burguês, utiliza diretamente sua força de trabalho para adquirir, transformar mais ou menos e vender mercadorias. Por isso mesmo, ainda que seu trabalho produza resultados úteis (e possa produzir até mesmo sobretrabalho, apropriado por algum agiota ou atravessador), não produz mais-valor. Não se trata apenas de uma ideologia liberal: há, entre os trabalhadores pobres, uma série daqueles que efetivamente trabalham e obtém rendimentos mediante o pequeno empreendedorismo.

Ao mesmo tempo, é justamente entre estas camadas mais precárias e informais da pequena burguesia, justamente as camadas que menos “pequena propriedade” detém (empregam a sua própria força de trabalho, e com algum dinheiro adquirem algumas poucas mercadorias e utensílios de carga, exibição, etc) que há laços mais estreitos com o proletariado: são uma “forma oculta do exército de reserva” (que, justamente por isso, como afirma a Tese 74, contribui em pressionar para baixo o nível salarial geral).

Também a Tese 75 poderia ser enriquecida com a reflexão sobre as bases materiais da ideologia do empreendedorismo: as formas de gestão da pequena propriedade que marcam o processo de trabalho dos chamados “informais digitais”.

75. Informalidade digital: Um dos exemplos mais dramáticos da informalidade na economia brasileira nesses quatro anos de recessão é o fato de que cerca de 3,8 milhões de pessoas têm no trabalho com aplicativos a sua principal fonte de renda, bastando dizer que Uber, Cabify, Ifood e Rappi, entre outros, se tornaram um dos principais “empregadores” do país[12]. A absoluta maioria desses trabalhadores perdeu o emprego com a crise e foi obrigada a buscar a sobrevivência em condições de trabalho precárias, sem nenhum direito. Os trabalhadores dessas empresas são superexplorados, não só porque não possuem carteira assinada, mas principalmente porque trabalham com seus próprios equipamentos de locomoção (automóvel, bicicleta, moto) e são obrigados a pagar um elevado percentual do que ganham diariamente para essas empresas – no caso do Uber os motoristas pagam 25% líquido daquilo que recebem diariamente. Se a esse percentual acrescentarmos o desgaste do veículo, a manutenção, as despesas com gasolina e alimentação, poderemos constatar que praticamente são servos modernos dessas empresas do mundo digital. Por suas condições de produção, em que são detentores de seus meios de trabalho, esse setores muitas vezes são cooptados pela ideologia do empreendedorismo e sensíveis às pautas liberais, como todos pequenos proprietários privados. Contudo, conforme se desenvolve sua experiência de exploração e luta, tais setores se movimentos justamente no sentido da formalização de seu vínculo com as empresas intermediadoras digitais: um exemplo interessante são as reivindicações de entregadores, como os do iFood, que demandam pagamento pelas horas de espera às portas dos restaurantes, e não apenas pelo produto entregue.

Essa questão, da diferenciação entre os pequenos produtores privados e o proletariado, não é um mero problema categorial e teórico. Com efeito, como diferem suas formas de participar no processo global de produção e circulação, diferem em muito seus interesses materiais. Por isso mesmo é tão fácil à burguesia seduzir essas camadas de pequenos proprietários com palavras de ordem pela redução dos impostos, contra a fiscalização estatal, etc - em suma, bandeiras nas quais os interesses do conjunto dos proprietários, pequenos ou grandes, se confundem. Apenas tendo isso em vista poderá o proletariado lutar pela hegemonia sobre tais camadas, compreendendo quais de seus interesses a burguesia é incapaz de resolver: uma reforma tributária radical, o fim dos privilégios estatais aos monopólios,  o combate aos atravessadores e agiotas, etc.

2. A forma do trabalho, não a forma do produto: produtividade e improdutividade do trabalho.

No tópico acima, tentei demonstrar que nossa Pré-Tese diferencia de modo insuficiente o proletariado da pequena burguesia. Esse apontamento metodológico se relaciona, já de partida, com a questão de mérito da produtividade do trabalho. Isso porque toda a economia pequeno-burguesa, a pequena produção privada, mesmo quando produz bens materiais, é improdutiva (não produz mais-valor). Apenas o trabalho proletário pode valorizar o capital.

Mas nem todo trabalho assalariado valoriza o capital. É esta diferenciação que a Pré-Tese busca estabelecer quando faz suas ressalvas ao PNAD:

  1. “o IBGE muitas vezes não leva em conta que muitos trabalhadores que participam direta ou indiretamente da cadeia de produção do valor estão contabilizados no setor de serviços”;
  2. [os dados] “misturam categorias com diferentes papéis no sistema econômico (produtores de valor e os que estão na órbita da circulação)”.

Ao estabelecer essa distinção entre “participação direta” e “participação indireta” na produção do valor, a Tese cria um novo problema, sem sanar o anterior. Na verdade, considerando que o processo de produção só se realiza finalmente no consumo, absolutamente todas as classes sociais improdutivas participam “indiretamente da cadeia de produção do valor”. O cerne do problema metodológico e teórico do PNAD é outro, um equívoco no qual incorrem também muitos marxistas: uma compreensão estreita do conceito de indústria, de atividade produtiva.

Para o economista burguês, a economia é compreendida como sendo dividida em um setor primário (agricultura), um secundário (a indústria de transformação, considerada como forma exclusiva da produção industrial) e um terciário (comércio e serviços). Para a crítica da economia política empreendida por Marx, a questão é encarada de modo totalmente distinto: a indústria é um conceito bastante amplo, que engloba atividades de todos estes setores. Enquanto a economia burguesa ergue sua divisão com base nas diferenciações do produto do trabalho, a atenção de Marx está voltada, sobretudo, para a forma social do trabalho. Por isso, onde quer que haja investimentos produtivos (ou seja, onde quer que a atividade econômica seja realizada mediante a transformação do dinheiro do capitalista em capital constante e capital variável) há indústria. Por isso, Lênin se refere reiteradamente à indústria agricultural, quando trata do desenvolvimento do capitalismo no campo[5]. Do mesmo modo, Marx fala sobre uma indústria do transporte, uma indústria da comunicação, etc[6].

Também por isso é imprecisa a definição de “fábrica” utilizada pela economia burguesa. Para a crítica da economia política, a forma fabril é apenas a forma superior da indústria, não sua forma exclusiva: no desenvolvimento das relações capitalistas de produção, a indústria atravessa diversas formas da economia mercantil, desde a forma da indústria artesanal e doméstica; passando pela indústria manufatureira (o estágio da subsunção formal do trabalho ao capital); chegando, por fim, à forma fabril da indústria, aquela da produção em larga escala proporcionada pela maquinaria moderna, na qual o trabalho se subsume realmente ao capital[7]. 

Esses aspectos da crítica da ciência econômica burguesa são de grande importância se desejamos caracterizar com precisão a posição ocupada por distintos ramos de assalariados no processo de produção do mais-valor. Apenas assim podemos fugir às concepções vulgares da economia burguesa, que estabelecem uma identidade entre o trabalho produtivo (ou seja, que produz mais-valor) e o trabalho que produz bens materiais. Ainda que as formas capitalistas da produção tenham se estabelecido antes nos setores produtores de bens materiais do que nos setores produtores de bens imateriais (que são consumidos no próprio ato de produção, como o transporte; ou que se manifestam em riquezas artísticas ou intelectuais, como a produção de livros, quadros, pesquisas, etc), a questão aqui é puramente histórica, não de uma limitação absoluta. A esse respeito, Marx afirmava:

"Todos os ramos da produção material – da produção da riqueza material – estão sujeitos (formal ou realmente) ao modo de produção capitalista. [...]
Todas essas manifestações da produção capitalista nesse domínio [da produção imaterial], comparadas com o conjunto dessa produção [capitalista], são tão insignificantes que podem ficar de todo despercebidas.
[...]
A mesma espécie de trabalho pode ser produtiva ou improdutiva. Milton, por exemplo, que escreveu o Paraíso Perdido por 5 libras esterlinas, era um trabalhador improdutivo. Ao revés, o escritor que fornece à editora trabalho como produto industrial é um trabalhador produtivo."[8]

Em nossa época, contudo, o desenvolvimento das forças produtivas modificou nitidamente esta situação na qual a produção capitalista imaterial era “tão insignificante que podia passar despercebida” – e o insuficiente esclarecimento teórico deste aspecto do problema se reflete em um sem número de equívocos, especialmente na tendência a negar a uma série de assalariados (do telemarketing, da tecnologia da informação, dos transportes, da comunicação, etc) a condição de proletários produtivos.

Feitos esses esclarecimentos teóricos, nota-se o quanto a mediação encontrada pela Pré-Tese é uma insatisfatória solução de compromisso teórica. Acredito que não deveríamos cunhar uma categoria artificial como esta de “assalariados indiretamente ligados à produção do valor”. Devemos, ao contrário, sustentar com firmeza o caráter produtivo de uma série de ramos da economia dita de “serviços”. Assim, não apenas firmamos nossas resoluções sobre a base de concepções científicas marxistas, mas contribuímos à solução teórica de uma questão candente em nossa época.

Qual é a implicação prática disto? Se observamos os setores que a Pré-Tese define como estratégicos (com acerto, em minha opinião), veremos que a maioria destes setores não se limitam à indústria de transformação (metalurgia, construção civil, petroquímica, energia). Apenas um setor diz respeito exclusivamente ao campo da circulação de mercadorias (o setor bancário). Mas, além destes, vemos entre os setores que julgamos estratégicos alguns setores produtores de bens imateriais, como a indústria do transporte (inclusos aqui os portuários, tema que abordei anteriormente)[9], o setor de telecomunicações e o setor da educação. Em todos estes casos, estamos diante de setores que contam com massivos investimentos produtivos, investimentos capitalistas que se expressam em vultuosos monopólios em suas respectivas áreas (como os grupos CCR, Globo e Kroton, respectivamente). Peguemos apenas um caso, a título de exemplo: o setor educacional.

Os 2,5 milhões[10] de professores brasileiros são, em sua imensa maioria, assalariados, proletários (excetuados aqui os professores particulares, ou cooperativas de professores de cursinhos, etc). Deste grande contingente, apenas 17,29% são empregados em estabelecimentos particulares, assalariados produtivos. Ou seja: apenas 17,29% dos professores têm sua força de trabalho consumida em um processo de trabalho que, além de produzir seus efeitos úteis, produz mais-valor para um capitalista, um grande proprietário que investe seu capital na compra de capitais constantes e em salários para professores, com o exclusivo propósito econômico de valorizar seu capital. Quanto aos demais professores, mesmo sendo assalariados, têm sua força de trabalho consumida de forma improdutiva, sem valorizar qualquer capital.

Em ambos os casos, o produto do trabalho é o mesmo – e, ademais, trata-se de um produto imaterial. O que importa (e, de tanto que importa, motiva por parte da burguesia incessantes ataques à educação pública e uma frenética campanha privatizante), contudo, é a forma desta relação de venda da força de trabalho: se trata-se de uma relação de consumo produtivo desta ou não; como um consumo que se realiza produzindo a valorização do valor inicialmente investido, ou como um dispêndio de recursos previamente captados (impostos).

À luz destas considerações, uma série de Teses mereceriam reparo (57, 77, 81, etc). Porei o foco, contudo, naquelas em que as alterações propostas são mais expressivas, a fim de sintetizar o debate exposto acima: são as Teses 56, 58 e 79, que hoje constam na Pré-Tese como segue:

56. Para compreendermos efetivamente a composição mais específica do proletariado brasileiro é importante observarmos o conjunto desses trabalhadores a partir dos dados da PNAD tecnicamente denominado grupamento de atividade[5]. Foram agregados os grupamentos de diferentes categorias, fazendo uma distinção entre aqueles ligados diretamente à produção, os que exercem atividades nos serviços auxiliares à produção, dos que trabalham no comércio e serviços em geral, além dos que trabalham na administração pública. Os números apresentados podem ser lidos em alguns grupamentos como aproximados porque o IBGE muitas vezes não leva em conta que muitos trabalhadores que participam direta ou indiretamente da cadeia de produção do valor estão contabilizados no setor de serviços como, por exemplo, os criadores e desenvolvedores de softwares, designers industriais etc. Por problemas metodológicos, também misturam categorias com diferentes papéis no sistema econômico (produtores de valor e os que estão na órbita da circulação), gerando enormes dificuldades para a realização de uma análise mais rigorosa dessa questão. De qualquer forma, mesmo com todas essas debilidades metodológicas, a classificação dos trabalhadores e os números apresentados representam um diagnóstico muito próximo da realidade.
58. Trabalhadores dos serviços auxiliares à produção: no capitalismo desenvolvido o avanço tecnológico e a interconexão direta entre vários setores da economia e as cadeias de produção do valor são muito mais amplas que esses três grandes setores do núcleo duro.  Portanto, é importante realizarmos um esforço para agregarmos ao contingente de trabalhadores ligados diretamente à produção outro conjunto de categorias que fazem parte de maneira indireta da cadeia de produção do valor, como transportes, armazenagem, alojamento, correio e alimentação. Estas categorias estão assim constituídas: Transporte, armazenagem e correio: inclui os trabalhadores do transporte terrestre, transporte aquaviário, transporte aéreo, armazenamento e atividades auxiliares do transporte, correio e outras atividades de entrega e somam 4,6 milhões de trabalhadores. Alojamento e alimentação: correspondem a 5,1 milhões de trabalhadores. Assim, poderemos calcular que o proletariado ampliado brasileiro participante da cadeia produtiva do valor soma 36,9 milhões de trabalhadores, um número enorme comparado a outros países do continente.
79. O aumento da composição orgânica do capital, que se expressa na introdução de máquinas com elevada inserção das tecnologias da informação e robotização, aumenta expressivamente não só a produtividade na economia, mas contribui de maneira determinante para a expansão do setor comercial e de serviços. Todavia, é evidente que a inovação também poupa trabalho vivo, reduzindo o emprego na área industrial, mas essa é uma característica histórica do capitalismo e não retira o sistema de produção do centro dinâmico da atividade econômica, pois é exatamente esse setor o principal responsável pela criação da riqueza nacional e pela dinâmica dos demais setores da economia.

A redação alternativa destes tópicos, em consonância com as concepções acima defendidas, poderia rumar no seguinte sentido:

56. Para melhor compreender a composição do proletariado brasileiro em suas particularidades econômicas, um bom ponto de partida são os dados da PNAD, organizados em torno de “grupamentos de atividade”. [5 - Tabela 5434] Não podemos assumir esses dados, no entanto, sem dispensar mais algumas considerações críticas sobre a metodologia de sua exposição. Foram agregados os grupamentos de atividade de diferentes categorias, a partir de uma distinção entre os trabalhadores ligados diretamente à produção material, aqueles que exercem atividades nos serviços auxiliares à produção material, os que trabalham no comércio e nos serviços em geral, além dos que trabalham na administração pública. Esta distinção resulta em algumas distorções - como, por exemplo, contabilizar trabalhadores que participam diretamente da cadeia de produção do valor no “setor de serviços”: é o caso, por exemplo, os criadores e desenvolvedores de softwares, designers industriais, etc. Nesse caso, é necessário ter em mente que a distinção feita pela pesquisa entre “indústria” e “serviços auxiliares” não corresponde, rigorosamente, à distinção marxista entre o trabalho assalariado produtivo e o improdutivo, na órbita da circulação e do consumo privado. De qualquer forma, mesmo com todas essas debilidades metodológicas, a classificação dos trabalhadores e os números apresentados representam um diagnóstico muito próximo da realidade.
58. Trabalhadores produtivos dos ramos imateriais: no capitalismo desenvolvido, o avanço tecnológico e a interconexão direta entre vários setores da economia e as cadeias de produção de mais-valor são muito mais amplas do que, simplesmente, os setores diretamente ligados à produção material. Portanto, é importante realizarmos um esforço para agregarmos ao contingente de trabalhadores ligados diretamente à produção material outro conjunto de categorias que fazem parte, de maneira direta, da cadeia de produção do valor, como transportes, comunicação, armazenagem, alojamento, correio e alimentação. Infelizmente, nesses ramos, os dados do PNAD não permitem cifras precisas sobre a produtividade e a improdutividade do trabalho, bem como indiferenciam os trabalhadores assalariados dos autônomos. Estas categorias estão assim constituídas: Transporte, armazenagem e correio: inclui os trabalhadores do transporte terrestre, transporte aquaviário, transporte aéreo, armazenamento e atividades auxiliares do transporte, correio e outras atividades de entrega e somam 4,6 milhões de trabalhadores. Alojamento e alimentação: correspondem a 5,1 milhões de trabalhadores. Assim, poderemos calcular que os brasileiros diretamente ocupados em setores ligados à cadeia produtiva do valor soma 36,9 milhões de trabalhadores, um número enorme comparado a outros países do continente.
79. O aumento da participação do capital constante na composição orgânica do capital, que se expressa na introdução de máquinas com elevada inserção das tecnologias da informação e robotização, aumenta expressivamente não só a produtividade do trabalho na economia nacional, mas contribui de maneira determinante para a expansão do setor comercial e de serviços. Nos marcos da sociedade capitalista, essa ampliação proporcional do capital constante significa a redução do número de postos de trabalho no setor secundário, o que guarda uma relação direta com a alocação cada vez maior da força de trabalho nos setores ditos "de serviços". Vale destacar, contudo, que muitos desses setores de serviços se erguem sobre massivos investimentos produtivos de capital.

3. Conclusão.

Levando em conta as questões levantadas anteriormente, evidenciam-se as profundas emendas que nosso “perfil do proletariado brasileiro” demanda, a fim de corresponder às necessidades científicas da análise marxista das correlações entre as classes sob o capitalismo monopolista dependente. Definindo com mais exatidão nossa concepção sobre a produtividade do trabalho proletário, avançamos nas próprias condições de nossa agitação, propaganda e organização em uma série de camadas estratégicas da classe trabalhadora. Distinguindo com rigor o proletariado das classes pequeno-produtoras privadas, temos melhores condições de elaborar, em nossa tática e em nosso programa, as condições da luta dos primeiros pela hegemonia sobre os segundo, no interior do movimento popular.

A tarefa histórica do proletariado consiste em, através de sua organização independente e consciente, aglutinar sob sua hegemonia todas as demais classes exploradas e camadas oprimidas do povo pobre – composto, em nosso país, também por imensos contingentes de pequenos produtores privados do campo e da cidade, nas suas diversas formas concretas. Somente uma aliança social assim demarcada, erguendo a bandeira da reorganização socialista da sociedade, poderá solucionar os graves dramas sociais que afligem a imensa maioria trabalhadora do povo brasileiro.

Parte 2

Camaradas,

Em meu artigo anterior, levantei algumas objeções metodológicas à Parte II de nosso “Perfil do proletariado brasileiro”.

Agora, pretendo fazer alguns apontamentos à Parte I do documento – que, em minha opinião, peca especialmente por apresentar as questões de um ângulo excessivamente politicista, subjetivista e agitativo, em detrimento de uma exposição materialista, expondo cientificamente as raízes econômicas das questões.

Nesta parte da Pré-Tese, os adjetivos abundam desnecessariamente. Por reiteradas vezes, a burguesia brasileira é definida como truculenta (o que levanta a questão: em qual país do mundo ela não o é? Qual a necessidade de uma tal definição agitativa em nossas Resoluções?). Do mesmo modo, adjetivos de pouca precisão são utilizados. É o caso do termo “antissocial” (uma definição quase psicologizante) ou do termo “antinacional”. Mas, mais do que “não ter um projeto nacional”, o problema fundamental da burguesia brasileira é que ela tem, sim, um projeto nacional de desenvolvimento dependente. A adjetivação confusa, como veremos, infiltra em nossa Tese uma certa tendência ao etapismo.

Ainda que, no essencial, não haja grandes divergências a erguer com o sentido histórico da Pré-Tese, acredito que ela poderia ser substancialmente enriquecida por meio de um maior contato com aspectos da chamada Teoria Marxista da Dependência.

O desenvolvimento do proletariado brasileiro

  1. As explicações subjetivistas da dependência e da superexploração

A mais flagrante debilidade da parte histórica da Tese consiste na marcante tendência narrativa a privilegiar os aspectos subjetivos da classe dominante aos aspectos objetivos de sua conformação histórico-econômica. Todo o movimento da luta de classes em território nacional é apresentada com foco em seu desenvolvimento político, e não com foco no desenvolvimento das contradições objetivas do processo de produção.

Vejamos, por exemplo, as duas primeiras Teses:

1: O proletariado brasileiro, especialmente os trabalhadores ligados à produção industrial, constituiu-se recentemente no Brasil, em função da política retrógrada desenvolvida pelas classes dominantes, que até a terceira década do século XX tinha seus interesses voltados prioritariamente para a economia agrário-exportadora.” [...] “resultado de uma colonização predatória, na qual o Brasil funcionou como espaço de apropriação de recursos naturais e financeiros para a Metrópole portuguesa.
2. Mesmo após a independência e a proclamação da República, continuou no atraso econômico, basicamente como nação agrário-exportadora, porque as classes dominantes do período entendiam o Brasil apenas como um país com vocação agrícola.

Temos nestes tópicos bons exemplos do subjetivismo que marca boa parte desta Pré-Tese. Aqui, a questão da via colonial do desenvolvimento capitalista é apresentada como sendo uma política de uma classe dominante, uma consequência de sua mentalidade retrógrada. A realidade histórica é apresentada de cabeça para baixo: como as classes dominantes “entendiam o Brasil apenas como um país de vocação agrícola”, então “uma política retrógrada” mantinha o país fora da rota do desenvolvimento industrial. A verdade, de um ponto de vista materialista, é justamente o avesso: não é a “mentalidade retrógrada” que explica o “atraso econômico” mas, ao contrário, são as condições materiais da dependência econômica que explicam a debilidade subjetiva da classe dominante nacional.

Seria preciso limpar toda a exposição de seus traços de subjetivismo, dando especial destaque aos fatores econômico-materiais que determinam a situação de atraso no desenvolvimento industrial brasileiro:

1. O proletariado brasileiro, especialmente sua camada ligada à produção fabril,  constituiu-se no Brasil há pouco mais de um século. Ao longo do período colonial, o país foi proibido por Portugal de constituir qualquer tipo de manufatura. Mesmo após a independência e a proclamação da República, o ritmo do desenvolvimento do capitalismo no país manteve-se baixo, em função da base econômica agrário-exportadora sobre a qual se ergueram as classes dominantes nacionais. Essas condições determinavam uma política fundada na suposta “vocação agrícola” do Brasil, o que por sua vez tornava a classe dominante nacional extremamente dependente das potências europeias – e a incipiente indústria nacional dependente dos excedentes do setor agrário-exportador.
2. Tal trajetória foi resultado de uma colonização predatória, na qual o Brasil serviu ao propósito da apropriação de recursos naturais para a metrópole portuguesa. Essa formação econômica colonial, inserida no coração da acumulação primitiva do capital europeu, baseou-se no trabalho escravizado negro por mais de 300 anos, lançando as bases da opressão racial que até hoje perdura. Nosso país foi um dos últimos a abolir a escravidão - o que também explica a tendência de nossa classe dominante a apoiar-se sobre a superexploração da força de trabalho. Por tudo isso, compreende-se o caráter tardio da industrialização brasileira, cerca de 200 anos depois da revolução industrial na Inglaterra. Foi somente após 1930 que a industrialização brasileira se acelerou expressivamente, a partir de políticas e investimentos estatais direcionados para a construção da grande indústria nacional.

Eis o cerne da questão do desenvolvimento capitalista brasileiro: como o mercado interno apenas veio a se desenvolver em função dos excedentes da exportação extrativista, a classe dominante ergueu-se materialmente sobre bases que justificam plenamente seu menosprezo pelo padrão de consumo interno e a produção prioritariamente para o estrangeiro. O principal fator não são a “mentalidade” ou a “política” decorrentes desta base material, mas a própria dependência objetiva da classe dominante nacional em relação à internacional – uma dependência comercial, política e, ademais, uma dependência tecnológica, do ponto de vista da modernização da maquinaria. Nunca seria demais repisar este aspecto do problema, o que poderia ser feito já ao fim da Tese 3:

3. A industrialização foi instituída a partir de investimentos que incluíam o capital internacional (o centro dinâmico deste processo), capital estatal e capital nacional (o elo mais frágil deste processo), uma aliança que transformou o Brasil numa das poucas nações industriais do continente. O país internalizou os ramos industriais típicos da segunda revolução industrial, tais como a indústria automobilística, metal mecânica, de plásticos, entre outros; isso já em um período em que os monopólios estrangeiros determinavam o processo de internacionalização da produção e das finanças. Portanto, o processo de desenvolvimento, liderado pelas corporações transnacionais, conformou uma burguesia nacional subordinada, defensora de um projeto nacional dependente, orbitando os interesses do grande capital internacional como sócia menor.

Justamente por hesitar na caracterização da dependência do desenvolvimento capitalista brasileiro como tal, a Tese apresenta também de modo politicista a questão do baixo nível salarial do proletariado brasileiro. Ainda que, por diversas vezes, a Tese faça referência ao massivo exército de reserva nacional, a limitação do problema do nível salarial a esta variável conduz a explicações politicistas, como a contida na Tese 6:

6. A ditadura militar aprofundou essa política, com o arrocho salarial, institucionalizando uma economia de baixos salários, fenômeno que não foi revertido no período democrático.

Do modo como está exposta a questão, damos a entender que a “economia de baixos salários” seria um produto (e não uma causa) do arrocho salarial experimentado ao longo da ditadura militar burguesa. A verdade, contudo, é que a causa profunda desta “economia de baixos salários” reside na economia, não na política: na preponderância da forma absoluta da extração do mais-valor sobre a forma relativa; o que, por sua vez, se relaciona justamente com a prioridade exportadora em detrimento do mercado consumidor interno.

Uma boa síntese desta análise é oferecida por Ruy Mauro Marini:

Inicialmente, há de se considerar que, nos países industriais, cuja acumulação de capital se baseia na produtividade do trabalho, essa oposição que gera o duplo caráter do trabalho — produtor e consumidor —, ainda que seja efetiva, se vê, em certa medida, contraposta pela forma que assume o ciclo do capital. É assim como, em que pese o privilégio do capital pelo consumo produtivo do trabalhador (ou seja, o consumo de meios de produção que implica o processo de trabalho), e se inclina a desestimular seu consumo individual (que o trabalhador emprega para repor sua força de trabalho), o qual lhe aparece como consumo improdutivo,(31) isso se dá exclusivamente no momento da produção. Ao ser iniciada a fase de realização, essa contradição aparente entre o consumo individual dos trabalhadores e a reprodução do capital desaparece, uma vez que o dito consumo (somado ao dos capitalistas e das camadas improdutivas em geral) restabelece ao capital a forma que lhe é necessária para começar um novo ciclo, quer dizer, a forma dinheiro. O consumo individual dos trabalhadores representa, portanto, um elemento decisivo na criação de demanda para mercadorias produzidas, sendo uma das condições para que o fluxo da produção se resolva adequadamente no fluxo da circulação.(32) Por meio da mediação que se estabelece pela luta entre os operários e os patrões em torno da fixação do nível dos salários, os dois tipos de consumo do operário tendem assim a se complementar, no curso do ciclo do capital, superando a situação inicial de oposição em que se encontravam. Essa é, ademais, uma das razões pelas quais a dinâmica do sistema tende a se canalizar por meio da mais-valia relativa, que implica, em última instância, o barateamento das mercadorias que entram na composição do consumo individual do trabalhador.
Na economia exportadora latino-americana, as coisas se dão de outra maneira. Como a circulação se separa da produção e se efetua basicamente no âmbito do mercado externo, o consumo individual do trabalhador não interfere na realização do produto, ainda que determine a taxa de mais-valia. Em consequência, a tendência natural do sistema será a de explorar ao máximo a força de trabalho do operário, sem se preocupar em criar as condições para que este a reponha, sempre e quando seja possível substituí-lo pela incorporação de novos braços ao processo produtivo. O dramático para a população trabalhadora da América Latina é que essa hipótese foi cumprida amplamente: a existência de reservas de mão de obra indígena (como no México), ou os fluxos migratórios derivados do deslocamento de mão de obra europeia, provocado pelo progresso tecnológico (como na América do Sul), permitiram aumentar constantemente a massa trabalhadora, até o início do século 20. Seu resultado tem sido o de abrir livre curso para a compressão do consumo individual do operário e, portanto, para a superexploração do trabalho.
A economia exportadora é, portanto, algo mais que o produto de uma economia internacional fundada na especialização produtiva: é uma formação social baseada no modo capitalista de produção, que acentua até o limite as contradições que lhe são próprias. Ao fazê-lo, configura de maneira específica as relações de exploração em que se baseia e cria um ciclo de capital que tende a reproduzir em escala ampliada a dependência em que se encontra frente à economia internacional[11].

Uma redação alternativa, a fim de evitar as ambiguidades contidas na formulação da Tese 6, poderia ser:

6. A ditadura militar consolidou esse desenvolvimento monopolista dependente, calcado sobre a extração de altas taxas de mais-valor absoluto. Nesse contexto de drástica concentração do capital e superexploração do trabalho, a industrialização e o posterior desenvolvimento de outros setores de atividade econômica criaram uma enorme classe de trabalhadores assalariados (proletariado) e uma significativa camada de operários produtivos. Basta dizer que a classe operária dobrou de tamanho entre 1970 e 1976, e o Brasil tem hoje um dos maiores contingentes do proletariado mundial, muito embora recebendo um dos menores salários do mundo industrializado.

Mas a Tese em que este subjetivismo se desdobra com as mais preocupantes o implicações é a Tese 11:

11. O conjunto de características históricas, como o escravismo, o longo atraso econômico e a subordinação aos circuitos do capitalismo internacional, formou também uma classe dominante predatória, truculenta, reacionária e entreguista, viciada [!] na impunidade, no desprezo e preconceito contra trabalhadores, sem projeto nacional e avessa a qualquer mudança em relação aos direitos sociais dos trabalhadores e da população em geral, sempre disposta a afastar o povo das decisões econômicas e políticas do país. Afinal, nenhuma classe social passa impune quando vive 300 anos de escravidão. Mesmo com a independência e a proclamação da República, as classes dominantes continuaram vendo a questão social como caso de polícia. Parte expressiva desses setores nunca abandonou a perspectiva de um retorno à economia agrário-exportadora e hoje mantém a economia do país subordinada aos interesses das grandes potências capitalistas, mesmo sob slogan aparentemente sofisticado como o agro é pop, o agro é tec, o agro é tudo.

O subjetivismo contido nesta Tese é gritante: a classe dominante “vê” a questão social como caso de polícia, mas não se explica o porquê (exceto à base de mais subjetivismos, como seu “vício” na impunidade, sua “truculência”, seu “desprezo pelos trabalhadores”, etc). A base econômica deste fenômeno é obscurecida, qual seja: a incapacidade material da burguesia brasileira (formada em uma economia baseada na preponderância das formas absolutas do mais-valor sobre as suas formas relativas) de operar concessões na mesma medida que sua congênere europeia, sendo a repressão a sua forma preponderante de lidar com a luta social.

Mas a parte mais preocupante da Tese 11 reside em sua frase final. Segundo a Tese, o principal fator que explica a subordinação da economia brasileira às grandes potências estrangeiras não é um fator estrutural do desenvolvimento dependente, mas sim o fato de que uma “parte expressiva” da classe dominante nacional “nunca abandonou a perspectiva de um retorno à economia agrário-exportadora”.

Essa formulação incorre em uma série de equívocos. Um primeiro, que se repete em outras Teses posteriores, está expresso nessa ideia de “retorno à economia agrário-exportadora”. Ora, e em que momento a economia brasileira deixou de ser, principalmente, agrário-exportadora? Mesmo no auge da industrialização brasileira, por meio da substituição de importações, os principais setores dinâmicos da economia nacional seguiram sendo os setores agrários e extrativistas. Aquilo que a Tese pinta como o projeto reacionário particular de uma fração da burguesia é, na verdade, o projeto plenamente ativo da fração dominante da burguesia brasileira. Por trás dessa formulação acerca de uma “parte expressiva” da burguesia com tendências agrárias reacionárias, esconde-se perigosamente a velha concepção etapista, que dividia a burguesia em uma ala entreguista-agrária e uma ala nacional-industrialista.

Agravando essa tendência à visão dualista da burguesia brasileira, a dependência econômica é explicada como resultado da predominância dos interesses agrário-exportadores. É verdade que, desde sempre, o setor agrário de nossa economia foi profundamente dependente dos mercados consumidores dos países centrais. Mas esta não é a única, muito menos a principal causa da dependência econômica brasileira. Além da dependência do agronegócio e da indústria extrativa em relação aos mercados internacionais, a dependência econômica atinge também a própria burguesia industrial brasileira, duplamente dependente: dependente das exportações de capitais das potências imperialistas, a fim de efetuar a modernização técnica do seu maquinário; e dependente dos créditos internacionais (diretamente, por meio de investimentos ou empréstimos; ou indiretamente, por meio de sua vinculação aos excedentes do setor agrário-exportador) para viabilizar as expansões de suas operações.

Vemos, portanto, que a questão é infinitamente mais complexa do que a Tese 11 dá a entender. Proponho, portanto, sua reformulação completa:

11. Esse conjunto de características históricas (como o escravismo, o longo atraso econômico e a subordinação aos circuitos do capitalismo internacional) formou também uma classe dominante predatória, reacionária e entreguista;, acostumada à violação da própria legalidade burguesa; baseada ideologicamente no desprezo e preconceito contra os trabalhadores; defensora de um projeto nacional de perpetuação da dependência econômica e avessa a qualquer mudança em relação aos direitos sociais dos trabalhadores e da população em geral; sempre disposta a afastar o povo das decisões econômicas e políticas do país. Afinal, nenhuma classe dominante passa incólume pela direção, por 300 anos, de uma economia baseada na escravidão. Mesmo com a independência e a proclamação da República, as classes dominantes continuaram tratando a questão social como caso de polícia, muito por conta de sua incapacidade material de operar as mesmas concessões que sua congênere europeia. A ampla maioria da burguesia nacional tem laços de dependência profundos com os capitais imperialistas: não só porque a burguesia nacional é dependente, na maior parte dos ramos da produção, dos créditos internacionais e das importações de capitais, mas também pela dependência particular do agronegócio, da mineração e da siderurgia em relação aos mercados internacionais.

Feitas essas reformulações, torna-se muito mais simples a compreensão daquilo contido na Tese 13:

13. A revolução de 1930, apesar do incentivo à produção industrial, do ponto de vista social demonstrou novamente a postura das classes dominantes, pois evitou a ruptura com as oligarquias e conciliou com a velha ordem, tendo organizado uma legislação que atrelou o movimento sindical ao Estado, proporcionando a emergência de dirigentes sindicais pelegos, fenômeno que continua forte até hoje. A industrialização, por sua vez, aprofundou o problema da renda e as desigualdades regionais, uma vez que o grande exército industrial de reserva pressionou os salários para baixo, assim como os centros dinâmicos da indústria foram instalados na região Sudeste.

Aproximando nossas formulações daquelas da Teoria Marxista da Dependência, vemos que a Tese 13 (bem como a Tese 8) se refere àquilo que Gunder Frank denomina “o desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Portanto, em consonância com as alterações já sugeridas, a Tese supracitada poderia ser também ela melhor refinada:

13. A chamada revolução de 1930, apesar do incentivo à produção industrial, evitou a ruptura com as oligarquias agrárias e conciliou com a velha ordem. Assim, sobre as bases de uma economia fundada nos excedentes da exportação agrícola, mesmo a dinamização e diversificação da atividade industrial apenas fez agravar as desigualdades de rendimentos (com o imenso exército industrial de reserva de desempregados pressionando para baixo os salários) tanto quanto regionais (com a instalação dos centros dinâmicos da indústria na região Sudeste). Ao lado de concessões trabalhistas, organizou uma legislação que atrelou o movimento sindical ao Estado, proporcionando a emergência de dirigentes sindicais pelegos, fenômeno que até hoje cria dificuldades à organização independente da luta do proletariado.

Do mesmo modo, estas reelaborações permitiriam reformular a Tese 14 em um tom menos politicista e ambíguo. Hoje, a Tese afirma:

14. A década de 1960 emergiu com dois projetos em disputa: as reformas de base, que reivindicavam um crescimento com distribuição de renda, e o projeto conservador, que visava ampliar a subordinação da economia aos circuitos do grande capital internacional. Período mais politizado e com maior mobilização dos setores populares que estavam colocando em risco a velha ordem, foi brutalmente interrompido pela interferência direta das classes dominantes e do imperialismo, resultando em 21 anos de ditadura, que implantou um modelo econômico antinacional e antipopular, sufocando brutalmente não só a luta pelas liberdades democráticas, mas especialmente o movimento sindical, de forma a institucionalizar o arrocho salarial, instrumento que marcou os anos de repressão.

Sugiro sua alteração como segue:

14. Todas as contradições desse desenvolvimento dependente culminaram na crise política dos anos 60, em que dois projetos se defrontaram: de um lado, uma agenda nacional-popular de reformas de base, defendida pelo proletariado e por parcelas das camadas médias; e de outro lado, um projeto encampado por setores cada vez majoritários da burguesia, que visava ampliar a subordinação da economia aos circuitos do grande capital internacional. Esse período de intensa luta de classes e mobilização dos setores populares, que colocava em risco a estabilidade da velha ordem, foi brutalmente interrompido pela violência reacionária dos militares, sob apoio das classes dominantes e do imperialismo, resultando em 21 anos de uma ditadura. Esse regime foi responsável por consolidar um modelo econômico antinacional e antipopular, sufocando brutalmente não só a luta pelas liberdades democráticas mas, especialmente, o movimento sindical, de forma a institucionalizar o arrocho salarial.

Por fim, gostaria de destacar algumas divergências com as Teses que versam sobre o período dos governos petistas. Sem me aprofundar em todas as polêmicas, ponho especial destaque com aquela relacionada ao tema geral deste tópico, o excessivo politicismo contido em algumas Teses. É o caso da Tese 19:

19. As classes dominantes cooptaram de maneira lenta e gradual a nova administração, até o ponto em que o governo do PT, no último período da administração de Dilma Rousseff, pouco se diferenciava do neoliberalismo mais duro. Ao longo do período petista foi realizada ainda uma reforma da previdência, editou...

O que mais produz incômodos com está Tese reside no fato de que a guinada à direita e o descarte do petismo pela burguesia são pintados puramente em termos políticos, desconsiderando o principal fator econômico por trás desses fenômenos: a crise sistêmica do capitalismo, iniciada em 2008. Lançando luz sobre este evento, a Tese 19 restaria com uma formulação muito mais materialista:

19. Quando a crise internacional de 2008 restringiu as possibilidades de acomodar lado a lado as pequenas concessões aos trabalhadores e os grandes lucros para a burguesia, o PT passou a vacilar cada vez mais abertamente em direção às classes dominantes, até o ponto em que, no último período da administração de Dilma Rousseff, pouco se diferenciava do neoliberalismo mais duro, e buscava conciliar com a “Agenda Brasil” de reformas burguesas. Ao longo do período petista foi realizada ainda uma reforma da previdência e inúmeras privatizações; foi editada a Lei Antiterrorismo e foram enviadas tropas militares ao Haiti. Enredado nas contradições e ilusões da conciliação de classe, o PT foi descartado pelas classes dominantes em função da crise econômica e política porque, na conjuntura de crise, já não era mais funcional para o grande capital.

2. O caráter agrário-exportador da economia brasileira, ontem e hoje.

Sobre este tópico, já abordei o essencial quando comentei a Tese 11. O mesmo equívoco se repete na Tese 7:

7. O Brasil transitou de uma economia agrário-exportadora para o capitalismo monopolista industrializado. [...]

Colocada nesses termos, a formulação cria uma falsa oposição. Se o que a Tese pretendia dizer era que o Brasil transitou de uma economia exclusivamente agrário-exportadora para uma de outro tipo, deveria ter incluído essa delimitação, sob o risco de, na sua ausência, ocultar a permanência do papel agrário-exportador do Brasil na divisão internacional do trabalho. Seria mais preciso qualificar o tipo de economia agrário-exportadora que deixamos de ser: uma baseada na força de trabalho escrava, uma economia mercantil de tipo pré-capitalista, mas ainda assim no bojo da acumulação primitiva europeia:

7. O Brasil transitou de uma economia agrário-exportadora escravista para o capitalismo monopolista dependente, tanto na produção fabril quanto agrária e extrativa; [...]

Uma imprecisão semelhante consta na Tese 28:

28. Em outras palavras, entre os anos 40 do século passado e os dias atuais, o Brasil transitou de nação agrário-exportadora para nação industrial e testemunhou uma revolução urbana,

Os motivos da imprecisão são os mesmos já destacados. Assim, a formulação mereceria reparo, inclusive para evitar meramente repetir a Tese 7:

28. Em 1970 o Brasil mais que dobrou sua população, atingindo 93,1 milhões de pessoas, alcançando 146,8 milhões duas décadas depois, em 1991.  Atualmente, o país possui 208,5 milhões de habitantes, mais de 80% vivendo nas cidades, segundo dados do IBGE. Em outras palavras, entre os anos 40 do século passado e os dias atuais, o Brasil testemunhou uma revolução urbana, transitando de uma nação rural para uma nação urbana, com a formação de grandes cidades e regiões metropolitanas com elevada densidade populacional, muito embora uma parcela muito grande dessa população ainda hoje viva em precárias habitações e sob péssimas condições de vida.

Finalmente, abordemos a Tese 5:

No que reside a principal debilidade desta formulação? Na superficial relação que a Tese estabelece entre a reforma agrária e o desenvolvimento das forças produtivas. A Tese é perfeitamente correta, mas incompreensível para o leitor que não seja versado na teoria marxista. Para que se torne autoevidente, está relação requer mediações, que associem a reforma agrária à expansão do mercado interno e, então, tornem compreensíveis as consequências desta reforma agrária para o desenvolvimento das forças produtivas:

5. Essas características marcaram profundamente a formação do proletariado brasileiro. A industrialização, por sua própria natureza monopolista, não proporcionou empregos suficientes para o grande contingente que migrou para as cidades em busca de oportunidades. Ante a inexistência de uma reforma agrária, que desenvolvesse as forças produtivas no campo, ampliando o mercado interno, difundindo a pequena propriedade da terra e fixando as pessoas no campo; formou-se nos grandes aglomerados urbanos um contingente populacional morando em habitações precárias, além de um enorme exército industrial de reserva pressionando os salários para baixo.

3. Conclusão.

A Parte I de nosso “Perfil do proletariado brasileiro” contém, portanto, algumas limitações no que diz respeito à compreensão do desenvolvimento dependente do capitalismo no Brasil. Como decorrência, expomos com pouca nitidez de que modo a estrutura dependente de todas as frações dominantes da burguesia nacional (agrárias, financeiras e industriais) é um aspecto necessário desta via do desenvolvimento capitalista. Diante destas limitações, nossa oposição radical à burguesia brasileira se fragiliza teoricamente, de modo que precisa ser reforçada artificialmente por meio da adjetivação excessiva e de caracterizações subjetivistas. Ao mesmo tempo, esta incompreensão debilita teoricamente nossa crítica do etapismo estratégicos e a fundamentação cientificada estratégia socialista.

É inevitável que, no esforço de sistematização do desenvolvimento histórico do capitalismo e do proletariado brasileiro, diversas divergências entre os marxistas venham à tona. Duas delas, que busquei evidenciar, são 1) a caracterização do modo de produção que aqui predominou na maior parte de nossa história, a economia mercantil agrário-exportadora baseada na força de trabalho escravizada; e 2) a validade dos postulados da Teoria Marxista da Dependência para a compreensão das contradições do desenvolvimento capitalista no Brasil dependente. No breve espaço deste artigo seria impossível esmiuçar todos argumentos e polêmicas envolvidos em tais questões. Acredito, contudo, ter lançado suficientemente luz sobre algumas das implicações destas polêmicas para a presente Pré-Tese, bem como as vantagens que tais interpretações oferecem à nossa formulação teórica das bases históricas e lógicas da necessidade da revolução proletária.

Essas que julgo serem grandes debilidades, contudo, não tiram à Pré-Tese a validade e correção de dezenas de suas formulações – as quais, justamente por não possuir grandes objeções, deixei de lado nesta explanação. Concluo, portanto, saudando a iniciativa de nosso Comitê Central, em seu esforço de municiar a militância comunista com uma síntese científica do desenvolvimento histórico da classe trabalhadora no Brasil. Apenas armados de uma tal compreensão coletiva poderemos promover nossa propaganda e nossa agitação com qualidade e sem vacilações, sobre a sólida base de uma análise rigorosa das contradições em movimento na luta de classes em nosso país.


[1] Entre estes, cerca de 60% são informais.

[2] Destaquemos aqui uma observação de Kautsky que é particularmente importante do ponto de vista teórico – de que pequenos empreendimentos comerciais e industriais (como os mencionados acima), na sociedade capitalista, são, com frequência, apenas uma das formas da superpopulação relativa; pequenos produtores arruinados, trabalhadores incapazes de encontrar emprego viram (às vezes temporariamente) pequenos comerciantes e vendedores ambulantes, ou alugam quartos ou leitos (também ‘empreendimentos’, que são registradas por estatísticas ao lado de todos os outros tipos de empreendimentos!), etc. O fato de esses empregos estarem superlotados não indica de modo algum a viabilidade da pequena produção, mas sim o crescimento da pobreza na sociedade capitalista. Bernstein, no entanto, enfatiza e exagera a importância dos pequenos ‘produtores industriais’ quando isso lhe parece servir em sua vantagem (na questão da produção em pequena e grande escala), mas mantém silêncio sobre eles quando o considera desvantajoso para si (acerca da questão do crescimento da pobreza).” (LÊNIN, “Book Review: Karl Kautsky. Die Agrarfrage”. Lenin Collected Works, v.4, p. 94-99. Editora Progresso: Moscou, 1964a.)

“Em segundo lugar, a maior parte dos ‘agricultores’ que possuem tais parcelas de terra tão insignificantes que tornam impossível ganhar a vida a partir delas, e que representam meramente uma ‘ocupação auxiliar’, fazem parte do exército de reserva de desempregados no sistema capitalista como um todo. É, para usar o termo de Marx, a forma oculta desse exército.” (LÊNIN, “The Capitalist System of Modern Agriculture”. Lenin Collected Works, v. 16, p. 423-446. Editora Progresso: Moscou, 1974a.)

[3] “Contudo, o alfaiate que vem a minha casa não é trabalhador produtivo, embora seu trabalho me forneça o produto, a calça, e a ele, o preço do trabalho, o dinheiro. É possível que a quantidade de trabalho que o alfaiate me fornece seja maior que a contida no preço que de mim recebe. E isso é mesmo provável, pois o preço de seu trabalho é determinado pelo preço que os alfaiates produtivos recebem. Mas esse assunto não me interessa. Uma vez dado o preço, para mim tanto faz que o alfaiate trabalhe 8 ou 10 horas. Trata-se apenas do valor de uso, a calça, e aí, tanto faz comprá-la de uma maneira ou de outra, meu interesse naturalmente é pagar o menos possível, mas num caso nem mais nem menos que no outro, noutras palavras, pagar o preço normal dela. Isso é uma despesa com meu consumo, diminuição, ao invés de acréscimo, de meu dinheiro. Não é meio de enriquecimento, nem o é tampouco qualquer outra maneira de despender dinheiro para meu consumo pessoal.” Karl Marx, “Manuscritos Econômicos de 1961 a 1963”. https://www.marxists.org/portugues/marx/1863/mes/prodcapital.htm

[4] “Classes são grandes grupos de pessoas que diferem entre si pelo lugar que ocupam em um sistema historicamente determinado de produção social, por sua relação (na maioria dos casos fixada e formulada) com os meios de produção, por seu papel na organização social do trabalho e, consequentemente, pelas dimensões da parcela de riqueza social da qual eles dispõem e o modo de adquiri-la. Classes são grupos de pessoas, um grupo que pode se apropriar do trabalho dos outros devido aos diferentes lugares que ocupam em um sistema definido de economia social” V. I. Lenin, Collected Works, “Um ótimo começo”, ed. “Progress Publishers”, vol. 29, p. 408-434.

[5] https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1899/dcr8iv/iv8ix.htm

[6] https://pcb.org.br/portal2/19786/os-operarios-do-transporte-setor-estrategico-do-proletariado/

[7] Como sintetiza Lênin: “Em outras palavras, a ‘forma fabril’ não é nada mais do que a produção mercantil desenvolvida, e esta se desenvolveu desde a produção mercantil não desenvolvida da economia camponesa e artesanal.” https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1894/narodniks/ch04s3.htm

[8] https://www.marxists.org/portugues/marx/1863/mes/prodcapital.htm

[9] https://pcb.org.br/portal2/19786/os-operarios-do-transporte-setor-estrategico-do-proletariado/

[10] https://g1.globo.com/educacao/noticia/99-dos-professores-brasileiros-ganham-menos-de-r-35-mil-diz-estudo.ghtml

[11] https://www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.htm