'Aprofundamento da crítica/autocrítica às direções de São Paulo: contribuição à tribuna da Camarada Raquel' (Ju Sieg)

Quando tais processos de definição política e ideológica não são claros, aflora-se a disputa de partes, de pedaços que parecem inteiros, de pessoas contra pessoas, de proximidade e distanciamento, de coleguismo ou conspiracionismo

'Aprofundamento da crítica/autocrítica às direções de São Paulo: contribuição à tribuna da Camarada Raquel' (Ju Sieg)
Brasília, 1958. Foto de Marcel Gautherot.

Por Ju Sieg para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Em conversa com a camarada Raquel sobre a sua tribuna [1], busquei aprofundar e compreender o cerne político e ideológico das críticas justas colocadas pela camarada em torno do modus operandi da forma de construção da disputa política, tão arraigada em o que muitos chamam de “cultura política”. Trago nos termos de aprofundamento, pois, as críticas apresentadas pela camarada carecem de um ir além da apreensão mais imediata da divergência política de fundo, trazendo a última para o centro da crítica. Como forma de buscar dissipar leituras “relativistas” de sua contribuição, ou seja, aquelas que procuram absorver dela apenas o que melhor convém individualmente, escrevo a presente tribuna. 

Desde os primórdios da cisão, análises apareciam sobre como a falta do debate interno e democrático dentro das fileiras do PCB abriam espaço para conversas de corredores, articulações paralelas e movimentações afins. A Coordenação Estadual (na época) da UJC em São Paulo tem o seu par de histórias para contar de dirigentes partidários, mais especificamente do Comitê Regional do PCB-CC, que coagiam militantes, afastavam militantes e escolhiam quem seria o próximo secretariado, quem seria o próximo Secretário de Organização, como colocariam militantes que eram próximas uma contra as outras para que uma delas “defendesse o Partido”....

Porém, será que somente a “herança histórica” justifica a nossa dificuldade tão enraizada em compartilhar e socializar acúmulos, divergências, críticas, ponderações e formulações? Como que, mesmo com a abertura de Tribuna de Debates e outros mecanismos internos de democracia, mantém-se tais dificuldades? Será que a leitura de “crises da direção” que, sendo demolidas a qualquer custo, resolvem o problema? A meu ver, questionamentos que, no imediato, parecem tão simples, tornam-se complexos na medida em que nos aprofundamos neles: qual é o conteúdo político-ideológico que tais práticas expressam? Esse é o caminho de ajustarmos as rotas e superarmos debilidades e problemas sérios entre nós.

Primeiramente, faço um parênteses para entrar (e não entrar) no mérito da polêmica sobre a unificação das direções de São Paulo. Digo “não entrar” no mérito pois, meses depois da unificação e do início desse debate, mantenho a minha indeterminação sobre o tema e, talvez, confusão sobre as metodologias e formas propostas, tanto para a unificação quanto para a juventude. Confusões que se mantêm por termos motivações e experiências distintas para processos semelhantes (e processos que foram no sentido oposto, de manutenção das direções separadas) em outros estados. Exemplifico com a minha primeira defesa para a unificação dos CRs, que hoje avalio até de maneira cômica: eu defendia uma “unificação sem unificar”, ou seja, manter duas estruturas de direção separadas, mas que teriam algum espaço comum unificado, com e-mails, grupos e reuniões (talvez, em outubro do ano passado, isso fizesse sentido para mim, hoje, não faz nenhum). Outra indeterminação que se mantém para mim é uma contradição, que estou disposta a lê-la como uma falsa contradição: construir esse debate, de maneira insuficiente, na Plenária Estadual e votá-lo ali ou construir por meio de discussões nos núcleos e células com posterior decisão do CR? Ainda não estou convencida de que tomamos a melhor decisão e nem do contrário.

Aproveitando a oportunidade da escrita desta tribuna, que tangencia um tema importante de nossos debates congressuais, trago algumas certezas e incertezas sobre o tema do futuro da Juventude e da UJC em nosso futuro Partido. Primeiramente, tenho certeza que a complexidade da análise sobre esse tema perpassa, por um lado, a dificuldade de uma leitura nacionalizada sobre o processo da cisão, com suas diferenças regionais (locais com unificação de direção que deram muito certo, outros muito errados, e o inverso também sendo verdade) e, por outro, a necessidade de aprofundarmos a leitura sobre o que é a Juventude Trabalhadora (debate iniciado pela camarada Valen [2]) e, consequentemente, como estruturar, não de maneira apartada como foi no PCB-CC, o trabalho específico de juventude no seio da classe trabalhadora brasileira e internacional. Infelizmente (ou felizmente) não trago uma posição final sobre esse assunto, pois ainda não a tenho, inclusive pois não acredito que este seja um tema de princípio, mas sim de inúmeras possibilidades de organização do trabalho de juventude (por exemplo, no KKE sendo de uma forma, no TKP de outra), com debates qualificados ocorrendo até então.

Retomando a tribuna da Raquel, um dos pontos que elenco como central no que a camarada coloca é o seguinte: “Não é preciso ter medo de colocar sua linha sobre algo e ela perder, faz parte da disputa, mas algumas direções preferem fazer toda uma construção e agitação por trás e não pelos meios corretos”. A centralidade de tal ponto percorre algo que não aparece nestes termos pela camarada mas que apresento da seguinte forma: a incapacidade dos organismos de direção, regionais ou nacionais, construírem sínteses totalizantes sobre as disputas políticas e divergências existentes no seio do movimento comunista brasileiro e, também, no interior de nossa organização. Na tribuna que redigi com o camarada Okada sobre as eleições [3], criticamos o Comitê Nacional Provisório (o qual componho) sobre a incapacidade de construir uma síntese das polêmicas centrais em curso sobre o debate eleitoral: “A ata da reunião e a respectiva circular foram insuficientes para demarcar de maneira precisa as distintas posições em debate, e sobretudo para apresentar para a militância, de maneira clara, os diferentes planos sistemáticos de ação.

Nesse contexto, abdica-se de construir sínteses e acúmulos coletivos, tanto no aspecto da socialização junto à base quanto na apreensão política das divergências, mas, sobretudo, impede-se um processo ideológico fundamental que é a definição das linhas políticas em disputa, tornando-se evidentes as divergências, e não apresentando-as de maneira anuviada e confusa. O motivo para tal “não-construção” da síntese não é a incompetência dos organismos de direção ou a falta de tempo, mas a dificuldade política e ideológica de compreensão das nossas divergências para além do aparente e do espontâneo. 

Quando tais processos de definição política e ideológica não são claros (seja por oportunismo, seja por dificuldades formativas) aflora-se a disputa de partes, de pedaços que parecem inteiros, de pessoas contra pessoas, de proximidade e distanciamento, de coleguismo ou conspiracionismo, que cristalizam-se nas construções de inúmeros “grupismos”, negando o debate e a disputa política, centrando a disputa em debates pela metade. E, em um momento de desestruturação do trabalho político com as massas, de “fora para dentro”, por inevitabilidade de um processo de cisão de um Partido Comunista, o “de dentro para fora” se torna a disputa central. “Quem será o próximo Secretário? Quem irá participar dessa comissão? A minha leitura sobre tal disputa deve prevalecer”, entre centenas de outros possíveis exemplos. E dessa forma, os processos são construídos pela metade, a base (e a direção) se confunde ainda mais e os nossos quadros, das bases às direções, quebram em grandes processos de adoecimento mental e físico e a disputa partidária se torna a leitura individualista do melhor para cada um e não a disputa clara, honesta e leninista sobre as grandes divergências políticas de fundo.

Em uma instância como a Coordenação Regional de São Paulo (seja a unificada como o PCB-RR, seja enquanto ainda era somente UJC), afundada em um burocratismo e demandas urgentes atrás de demandas urgentes – não por incompetência ou debilidade de seus quadros, mas por impossibilidade política de uma instância de direção formular, sintetizar e dirigir todas as especificidades de uma miríade de localidades, dezenas de cidades, centenas de militantes  – a construção do ideal se sobrepõe ao real. O ideal do militante, da direção, do trabalho e das disputas buscam espaço na realidade e as lutas econômica, política e, sobretudo, ideológica do proletariado ficam de lado. Nos momentos em que essa instância (dos exemplos de quando eu ainda a compunha) se debruçou sobre temas candentes para a organização política da nossa classe, como no debate sobre a priorização dos organismos locais sobre os organismos regionais, o debate sobre a  proletarização das nossas fileiras e a especificidade da juventude no capitalismo brasileiro, o debate sobre imperialismo e movimento comunista internacional, pudemos observar a excepcionalidade e a qualidade política desses quadros de direção que, em contato e discussão com as bases, elevaram tais discussões a novos níveis formulativos, buscaram construir sínteses universalizantes, sem desconsiderar a realidade e particularidade local. 

Infelizmente, as posturas de conversas paralelas que nunca se tornam sínteses coletivas, debates que são feitos pela metade, debates que se centram tanto no “de dentro para dentro” existem em nossa organização e, concordo absolutamente com a Raquel, são prejudiciais para a construção do nosso objetivo comum: a construção do instrumento de organização da classe trabalhadora brasileira para a derrubada da burguesia. Militantes com tal capacidade de leitura e convencimento devem se sentir confortáveis e impelidos a colocar para jogo suas leituras e visões e estarem dispostas, o tempo todo, a serem criticados e convencidos do contrário (algo que aprendi muito em minha primeira interação política com o Ivan, que me deixou extremamente admirada – olhem só como algo tão banal nos admira tanto). Mas, mais do que isso, a discussão e a síntese coletiva nos permitirão aprofundar a nossa leitura, nos termos mais ortodoxos do marxismo-leninismo, sobre a realidade política do nosso país e dos nossos desafios internos e externos. 

É inegável, do ponto de vista de nossa história recente do partido em formação, que apesar das dificuldades oriundas da cisão e das dificuldades de tempo, prazo e sobrecarga, o PCB-RR vem tentando construir processos amplamente democráticos internamente, apesar das principais polêmicas. Entretanto, esse não é um processo que se dá de maneira a-histórica e de modo repentino, mas, enquanto conduzimos esse processo de tentativas (e erros) de ampliação de nossos espaços democráticos, buscamos superar desvios anteriores e atuais da organização do movimento comunista brasileiro. 

Corrigiremos isso ao pensar de “fora para dentro”, relacionando o nosso partido com a história da classe trabalhadora brasileira, com o momento da classe trabalhadora brasileira e suas principais tarefas e objetivos para o agora. O nosso apartamento da luta política do proletariado e de uma atuação política enquanto vanguarda da classe trabalhadora brasileira potencializa e, de certa forma, permite e determina tal forma de construção da disputa política. Não à toa associamos a guinada à direita do PCB no movimento comunista internacional e na política interna brasileira como determinante do acirramento da perseguição política e do centralismo “burocrático”. 

No imediato e no aparente, devemos criticar as práticas políticas que levam o indivíduo na frente do todo, mas na essência do problema está a necessidade da construção da hegemonia proletária na luta teórica e política, dentro e fora de nossas fileiras. Não podemos cair na ideia de que o Partido supera seus desvios combatendo a si próprio ao invés de combater cada vez melhor, na luta de classes, de maneira constante e organizada, o nosso inimigo.


[1] 'Uma crítica/autocrítica às direções de São Paulo' (Raquel Luxemburgo)

[2] 'Por teses que dialoguem com as juventudes brasileiras' (Valen) 

[3] 'Questão eleitoral: quais são os fins e quais são os meios?' (Ju Sieg e Vinícius Okada)