Aos nossos mortos, nem um minuto de silêncio, mas uma vida inteira de lutas! - Homenagem a Lari

Larissa Figueiredo (nossa Lari) militou e deixou amigos no núcleo da União da Juventude Comunista em Campinas, tornou-se a secretaria política do CFCAM em São Paulo e cumpriu papel fundamental na constituição do Movimento pela Reconstrução Revolucionária do PCB

Aos nossos mortos, nem um minuto de silêncio, mas uma vida inteira de lutas! - Homenagem a Lari

Por Ana Karen Oliveira

Não haverá luto
Embora a noite
Avance entre silêncios
Disparando
Entre penumbras
A morte
Na alameda

Não haverá luto
Embora as balas
Explodam
Em teu corpo

Não haverá luto
Porque
Renascerá teu sangue
Derramado
No duro pavimento.

Carlos Pronzato, Não haverá luto, poema em homenagem a Carlos Marighella.

Pensei várias vezes como começar essa homenagem. Com uma frase de Rosa Luxemburgo ou de Clara Zetkin, com uma poesia ou com um trecho dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, que tenho certeza que você adoraria. Depois de muito pensar e de muitas lágrimas rolarem nesse exercício, resolvi começar assim, com uma poesia que recorda o assassinato de Marighella, uma marxista - leninista que lutou incessantemente ao lado da classe trabalhadora, projetando a tomada revolucionária do poder em nossas mãos. E assim, como uma carta, que poderia ser tranquilamente uma de nossas longas e alegres conversas. Aquelas que deveriam ser mais pragmáticas, mas logo estávamos discutindo “O Capital”, o feminismo classista e as suas medições táticas e programáticas, posições teóricas polêmicas sobre a teoria do valor - trabalho ou nossas indignações com algum entrave burocrático da fração academicista do PCB, que ocupava majoritariamente o Comitê Central.

Foi incrível como mal nos conhecemos e parecia que tínhamos uma amizade de anos. No dia 14 de julho de 2022 recebi sua primeira mensagem particular, um convite para aproveitar minha ida a Campinas e tomarmos um café juntas, a fim discutirmos a organização do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro (CFCAM) em São Paulo. Nos dias subsequentes recebi várias mensagens suas confirmando atividades em Santos, o lançamento do livro de Ana Montenegro na capital e uma atividade sobre o programa eleitoral para as mulheres trabalhadoras paulistas, em Campinas. Rapidamente você já tinha encaminhado praticamente tudo, com toda tua energia, vivacidade e disciplina.

Sua crítica perspicaz e direta deve ter desagradado a alguns, mas sem sombra de dúvidas, era uma de suas melhores características enquanto comunista: aliar sua crítica às lutas imediatas e centrais de nossa classe.  Em um de seus textos para as Tribunas de Debates preparatórias para o XVII Congresso, deixa isso evidente, ao analisar as lutas pela descriminalização do aborto:

Muito se fala sobre o avanço exponencial das compreensões liberais em torno de gênero (e também de sexualidade, raça...) nas últimas décadas, mas pouco discutimos sobre o fato de que a correlação de forças que subscreve esse cenário dificilmente irá se alterar se seguirmos encarando gênero, raça e as sexualidades heterodiscordantes como meros apêndices da exploração da força de trabalho nesta quadra histórica. Medidas como a Reforma da Previdência tem o real potencial de provocar, no curto-médio prazo, o empobrecimento e até mesmo a miséria de mulheres negras e idosas; a Reforma Trabalhista tem produzido um verdadeiro strike nos trabalhadores exigindo jornadas cada vez mais estapafúrdias de trabalho de todos nós, mas principalmente de jovens com menor instrução formal; o escancarado desfinanciamento do SUS aumenta vulnerabilidade dos trabalhadores LGBT+ e amplia carga de trabalho não pago não só para as equipes de saúde, como para as próprias mães, tias, avós e esposas, historicamente responsáveis por toda a reprodução de uma “mercadoria especial” – como diria Marx – a força de trabalho.

Retomando aquele mês de junho que nos conhecemos, me recordo que não tomamos o café combinado. Nos encontramos ocasionalmente em um evento organizado pela Ruptura (editora na qual você trabalhou tão apaixonadamente), a Lavra Palavra e outras editoras, no Ateliê do Bixiga. Olha que estranho essa vida, aquele foi o único dia que estivemos juntas presencialmente. Todos os demais encontros, conversas, desabafos e planos organizados foram por via virtual. Infelizmente não conseguimos fazer nem mesmo nosso churrasco com pagodão na laje, pois a vida de militantes e trabalhadoras tomava todas as horas.

Foi naquele dia que descobrimos o gosto comum por Naruto, demos muita risada pelas reflexões produzidas pelo mangá japonês, começamos a nos aprofundar nos planos políticos para a reorganização do CFCAM e nossas discussões sobre a teoria e prática marxista - leninista. Logo estávamos dividindo textos sobre táticas militares em confrontos de rua e como organizar a militância para os enfrentamentos.

Com suas leituras e traduções para a Ruptura, vinha aprofundando rapidamente seu conhecimento sobre a economia política e sobre a produção teórica leninista. Em meio a reuniões organizativas, iniciamos debates sobre o capital e seu processo de financeirização. Era instigante ver toda sua empolgação e como começou a estudar apaixonadamente a obra de Marx e Engels. Um panfleto conjunto sobre maternidade e feminismo classista que escrevemos, proposto e protagonizado por você, expressa um pouco desse momento:

“É justamente aí que, em nossa compreensão, a luta pela socialização do trabalho reprodutivo se conecta mais diretamente com o conjunto dos enfrentamentos às políticas de austeridade fiscal, afinal, é em nome delas que os gastos não financeiros do Estado são limitados. Trocando em miúdos, isso significa que as múltiplas jornadas de trabalho das nossas mães e avós estão profundamente atreladas à superexploração do trabalho que o capital portador de juros tem imposto na periferia do sistema capitalista.
Uma leitura feminista-classista que pretenda atingir elaborações cada vez mais radicais sobre a superexploração da força de trabalho das mulheres – que se apresenta nas múltiplas jornadas de trabalho – não pode perder de vista essa relação. Muito pelo contrário: devemos nos apropriar dela, compreendendo o seu movimento na conjuntura brasileira e elaborando coletivamente as táticas mais apropriadas para o seu enfrentamento radical e organizado.”
Imagem: Marcela Cantuária – Maternidade Compulsória, 2016. Óleo e acrílica sobre tela. 153 x 220 cm

Imagem escolhida por Larissa, para acompanhar o texto: Maternidade e austeridade: notas feministas-classistas

A partir daí o projeto de lançamentos de livros conjuntos e planos para um podcast iniciaram - se, lembra - se?

Estamos correndo para lançar o livro com o compilado de textos da Clara Zetkin no próximo março. A Jaque finalizou a tradução dos textos interrompidos por sua viagem. Estamos trabalhando no prefácio e no posfácio.

Fique tranquila, estou pensando seriamente em considerar seu título agitativo e provocativo no prefácio: “ Se Clara Zetkin estivesse viva, iria para os encontros da Plataforma Anti- imperialista (PMAI)?” Rsrsrs… Você também é uma excelente vendedora. Espero que eu dê conta das respostas que você gostaria de dar.

Não esquecerei todo apoio, cuidado e camaradagem durante os dias mais agitados que transcorreram o racha do partido. Como colocou - se proativamente para organizar o processo, dialogar e aglutinar os núcleos e escrever prontamente uma nota crítica à coordenação nacional do CFCAM, que manteve - se majoritariamente junto à fração academicista do PCB - CC. Sem sombra de dúvidas, sua posição e postura política foram fundamentais para garantir a coesão das militantes que aderiram ao Movimento Nacional pela Reconstrução Revolucionária.

Por fim, dói muito lembrar todos seus planos para a agitação e propaganda entre as mulheres trabalhadoras paulistas. Você sempre estava pensando em pontos cruciais para conduzir o coletivo: inserção entre as trabalhadoras da saúde, da educação e luta contra os processos de privatização em curso no estado. Dói por pensar que poderia estar aqui dirigindo esse evento, se a organização das cidades, do sistema de saúde, do saneamento básico e do escoamento de águas, fosse para garantir as necessidades das pessoas, não os lucros capitalistas. Toda sua luta contra a privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP), uma das maiores companhias que administra os sistemas de águas e esgotos das Américas, torna - se ainda mais significativa diante da lama que invadiu sua casa, impôs sua ausência e destrói periodicamente as vidas, sonhos e alegrias da classe trabalhadora.

Ainda passamos por um momento muito difícil e delicado. Mas temos construído ricos debates entre as bases, que têm contribuído diariamente com as tribunas, com as lutas cotidianas e com o jornal partidário. É claro, ainda temos muito a avançar, mas nos mantemos firmes nos caminhos que seus passos nos ajudaram a seguir.   

Não poderia deixar de finalizar essa homenagem com uma poesia de um militante, que teve o ímpeto e audácia parecidos com os seus. Sua memória e luta estão guardadas, como a firmeza e a alegria disciplinada da classe trabalhadora que você ousou colher e plantar.  Para a paz, de Roque Dalton.

PARA A PAZ

Será quando a lua expelir a água
com sua corrente oculta de luz inenarrável.

Roubaremos todos os fuzis
apressadamente.

Não há que matar o sentinela, o pobre
só é função de um sonho coletivo
um uniforme repleto de suspiros
recordando o arado.
Deixemos que beba ensimesmado sua lua e seu granito.

Bastará a sombra lançando-nos suas pálpebras para chegar ao ponto.

Roubaremos todos os fuzis
irremissivelmente.

Teremos que transportá-los com cuidado
mas sem nos determos
e abandoná-los entre detonações
nas pedras do pátio.

Fora dali, já, somente o vento.

Teremos todos os fuzis
alvoroçadamente.

Não importará a geada momentânea
dando pedradas contra o suor de nosso sobressalto,
nem a duvidosa relação de nosso alento
com a ampla neblina, milionária em espaços:
caminharemos até os semeadouros
e enterraremos esperançosamente
todos os fuzis
para que uma raiz de pólvora faça estalar em mariposas
seus caules minerais
em uma primavera futura e altiva
repleta de pombas.

Com essa mesma tenacidade, capacidade crítica, organizativa e formulativa, Larissa Figueiredo (nossa Lari) militou e deixou amigos no núcleo da União da Juventude Comunista em Campinas, tornou-se a secretaria política do CFCAM em São Paulo e cumpriu papel fundamental na constituição do Movimento pela Reconstrução Revolucionária do PCB no estado, integrando sua direção num dos momentos mais críticos da cisão.

Larissa presente, hoje e sempre!

Ana Karen Oliveira, sua amiga e camarada.

*Texto escrito para homenagem prestada a Larissa Figueiredo na II Plenária Feminista Classista do Movimento em Defesa da Reconstrução Revolucionaira do PCB