Abertura de novas escolas médicas no Brasil: falsas respostas para um falso debate

Dessa vez, estamos assistindo à disputa interna da burguesia da educação (Conglomerados Bilionários da Educação, representados pela ANUP x Mantenedoras e Fundações de Instituições de Ensino Superior privadas), mas virão outras, com tendências cada vez maiores à hegemonização.

Abertura de novas escolas médicas no Brasil: falsas respostas para um falso debate
Reprodução: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Por Redação | Clara Vidal (militante da União da Juventude Comunista)

Em 2023, foi anunciada pelo Ministério da Educação (MEC) a retomada do edital que autoriza a criação de cursos de medicina no país. O processo, estabelecido em regime de chamamento público, permite que Instituições de Ensino Superior (IES) privadas se candidatem para instalar novos cursos em cidades pré-selecionadas, chamadas de “regiões de saúde” (basicamente, locais com carência de profissionais), segundo os critérios da Lei do Mais Médicos. A abertura estava suspensa desde 2018, por meio de uma moratória realizada pelo Governo Temer.

Fato é: a abertura de novas vagas em cursos de Medicina se tornou, ao longo das últimas décadas, o poço de ouro das entidades privadas do setor da educação, visto que o curso, de 6 anos, tem um elevado retorno e uma baixa evasão, chegando a representar um ativo de R$ 2 milhões por uma única vaga. Obviamente, esse mercado altamente lucrativo despertou a atenção de diversos grupos empresariais relacionados ao setor, que travaram uma disputa interna para hegemonizar os lucros advindos da mercantilização da educação brasileira.

Enquanto isso, Entidades relacionadas à categoria, como o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Médica Brasileira (AMB), cujos maiores representantes são também os gestores e defensores dos negócios da burguesia, criticaram a medida. No entanto, a crítica, à qual muitos profissionais e estudantes de medicina fizeram coro, centrou-se nos aspectos mais corporativistas e superficiais da questão, travestidos de preocupação com a qualidade dos profissionais formados e com a saúde da população. Se o CFM, essa entidade reacionária e deletéria, estivesse, de fato, preocupado com a saúde da população brasileira, ele não teria coibido a vacinação de COVID-19 durante a pandemia ou estimulado tratamento ineficazes, só para citar alguns exemplos. Seus verdadeiros interesses são apenas de caráter individual.

Mas a defesa ou não da medida em si não é o cerne da questão. A intenção do texto é denunciar que o debate tem sido calcado no campo do senso comum e dos falsos argumentos, escondendo que, na verdade, o que tem se desenhado é uma disputa interna entre fatias da burguesia pelo monopólio da educação brasileira. Disputa essa que colide frontalmente com os verdadeiros interesses dos estudantes e trabalhadores.

“(...) Se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária”.
MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política

Entendendo a dinâmica de abertura de escolas médicas

2013 a 2018: O Programa Mais Médicos

Em 2013, durante o Governo Dilma, foi criado pela Lei nº 12.871 o Programa Mais Médicos, sob o argumento de atender a população brasileira nos serviços de Atenção Básica do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir de modalidades formativas de ensino, pesquisa e extensão. Nesse sentido, estavam incluídas nas premissas do Programa: (1) A reordenação da oferta de cursos de medicina e de vagas para residência médica, priorizando regiões de saúde com menor relação de vagas e médicos por habitante e com estrutura de serviços de saúde em condições de ofertar campo de prática suficiente e de qualidade para os alunos; (2) O estabelecimento de novos parâmetros para a formação médica no país; (3) A promoção, nas regiões prioritárias do SUS, de aperfeiçoamento de médicos na área de Atenção Básica em saúde, mediante integração ensino-serviço, inclusive por meio de intercâmbio internacional.

O Programa, bastante comemorado por setores aparentemente progressistas, foi, em certa medida, importante para atenuar e distribuição desigual de profissionais no país, estimulando, por exemplo, a vinda de médicos cubanos para as regiões mais interioranas do Brasil. No entanto, desde o princípio, a materialização das premissas do Programa esteve propositalmente condicionada à dinâmica privatista que era fomentada no SUS e na educação superior pelo Governo social-liberal de Dilma (PT) nesse mesmo período, representada pela incorporação cada vez mais flagrante de Organizações Sociais de Saúde (OSSs) no SUS, incluindo Hospitais Universitários, e representada também pelos inúmeros subsídios estatais aos Conglomerados Bilionários da Educação, os quais se candidataram aos montes aos editais de chamamento públicos de abertura de escolas médicas que eram realizados naquele período.

Nesse contexto, o número de vagas de medicina explodiu desde 2013, passando de 20.570 em 2013 para 41.805 em 2022, de acordo com dados da Demografia Médica. No entanto, apesar do aumento do número absoluto de novos profissionais, a abertura de novas Escolas Médicas não se desdobrou, necessariamente, numa melhora da distribuição de médicos pelo país, diferente do que propunha o Programa. Isso ocorreu por dois motivos fundamentais: (1) Porque não houve uma preocupação em desenvolver a infraestrutura dos serviços de saúde e os programas de residência dos serviços de saúde nas regiões mais interioranas, mantendo esses locais pouquíssimo atrativos para o estabelecimento dos profissionais; (2) Porque o incentivo real nunca foi dado à abertura de novas vagas em Universidades Públicas, mas sim às Instituições Privadas, que obviamente não se instalaram onde, necessariamente, havia maior necessidade de profissionais, mas nos locais em que seus lucros seriam garantidos.

Fonte: G1

Suspensão da abertura de escolas médicas entre 2018 e 2023: a moratória do Governo Temer

Em 2018, com o apoio de Entidades Médicas, foi decretada pelo ex-presidente Michel Temer uma portaria que estabelecia a suspensão da abertura de novos cursos de Medicina no País, sob o argumento de que era preciso frear o aumento indiscriminado de escolas médicas sem qualidade adequada e rediscutir critérios para autorização de vagas. Na prática, porém, milhares de vagas foram criadas por IES privadas durante os cinco anos de moratória por meio de ações judiciais. Inclusive, um levantamento feito pelo CFM mostra que, das cerca de 21 mil novas vagas abertas nos últimos dez anos, 6 mil foram criadas durante o período de moratória.

A abertura de novas escolas médicas a partir de 2023

A partir de 2023, o MEC pôs fim à moratória e liberou novamente a abertura de cursos de medicina por chamamento público, condicionando-os às regras do Programa Mais Médicos (priorizar regiões carentes de profissionais), de forma semelhante ao que aconteceu de 2013 a 2018. Em 4 de outubro de 2023 foi anunciado oficialmente o edital que autorizou a abertura de novas escolas médicas. No entanto, como num jogo de cartas marcadas, o edital não detalhava como foram escolhidas as “regiões de saúde”, ou seja, as regiões aptas a receberem vagas devido à “carência de profissionais”. Todo esse processo fez emergir situações no mínimo curiosas: enquanto São Paulo (o local com maior concentração de médicos do país) receberá treze novos cursos, a região Norte, por exemplo, foi subdimensionada, e o Acre sequer foi listado para receber vagas, corroborando a análise de que o que está em jogo é, de fato, a lucratividade, e não a necessidade de profissionais ou qualquer argumento do gênero.

Com a publicação do edital, diversas Fundações e Mantenedoras (como as Pontifícias Universidades Católicas, as Universidades Mackenzie e as Metodistas) questionaram a constitucionalidade da Lei do Mais Médicos, argumentando que ela, devido às restrições que apresentava para a criação de novas vagas, assim como a moratória decretada por Temer em 2018, “prejudicava a livre concorrência”. Essas IES privadas, representando a burguesia mais tradicional da educação brasileira, atuam há muitas décadas por todo o Brasil fazendo da educação um negócio lucrativo.

Paralelamente, a Associação Nacional de Universidades Particulares (ANUP), que aglutina os maiores Conglomerados da Educação no Brasil e que abriram escolas por meio das regras do Mais Médicos, ingressou no Supremo Tribunal Federal (STF) com Ação Declaratória de Constitucionalidade, defendendo que a abertura de novos cursos esteja, sim, condicionada aos chamamentos públicos do MEC, munindo-se da argumentação pseudo-progressista de que isso “beneficiaria a população brasileira ao permitir a criação de novas escolas médicas em locais sem profissionais”.

A disputa sobre a monopolização da educação brasileira

Todo esse contexto é o palco de uma disputa intercapitalista para consolidar o monopólio sobre o ramo, a partir da concentração e centralização de capitais. E na prática, o que o Estado faz ao instituir os chamamentos públicos para a abertura de novas escolas médicas pagas, selecionando “regiões de saúde” mais lucrativas e não onde há carência de profissionais, é estimular e proteger o processo de monopolização, rifando a educação brasileira para o grupo empresarial que pode pagar mais por ela, e que, enfim, passará a hegemonizar todo o setor.

E nesse processo, os grandes Conglomerados Bilionários da Educação, como a AFYA, ÂNIMA e YDUQ, tem vencido. A Afya, por exemplo, cujo maior acionista é o bilionário grupo alemão Bertelsmann, teve receita líquida de mais de R$2,3 bilhões em 2022, enquanto a população brasileira ainda convivia com os efeitos brutais do genocídio orquestrado durante a pandemia de COVID-19.

Elizabeth Guedes, irmã de Paulo Guedes, presidente da ANUP e representante da Faculdade de Ciências Médicas de Garanhuns (FAMEG), uma das filiais do grupo AFYA, chegou a declarar que a livre concorrência não seria válida no caso de abertura de novas escolas médicas, porque “ela deve obedecer a uma política pública (Programa Mais Médicos)”. A declaração de Guedes, apesar da maquiagem progressista, revela sua defesa (e seu conhecimento!) a respeito da tendência de monopolização no capitalismo. Além disso, é um reconhecimento do papel político-econômico que os grupos que ela representa cumprem na luta de classes: o de dominação.

No intuito de apaziguar as críticas e, por fim, mediar, pelo menos por enquanto, os interesses intercapitalistas, o Governo Lula-Alckmin, por meio do Ministério da Educação (MEC) publicou, no dia 8 de fevereiro de 2024, o Edital n. 1/2024, com retificações sobre o Edital n. 01/23. Uma das modificações foi a restrição do número de propostas oriundas de Conglomerados Educacionais. Outra mudança foi nos critérios competitivos para atribuição de pontos relacionados à experiência regulatória, objetivando diminuir a possibilidade de obtenção de pontuação por mantenedoras que tenham um número maior de mantidas.

Pronto. As fatias da burguesia nacional, com a proteção e o financiamento do Estado, seguem satisfeitas e lucrando com o sucateamento da educação e da saúde públicas. Enquanto isso, a classe trabalhadora segue desempregada, morrendo nas portas dos prontos-socorros e tendo que vender o próprio almoço para comprar a janta.

“Encontra-se aqui expressa com toda a clareza a ideia básica do marxismo sobre a questão do papel histórico e do significado do Estado. O Estado é o produto e a manifestação do caráter inconciliável das contradições de classe. O Estado surge precisamente onde, quando e na medida em que as contradições de classe objectivamente não podem ser conciliadas. E inversamente: a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis.”
LÉNINE, Vladimir Ilitch. O Estado e a Revolução, 1917

De qual crítica precisamos?

O capitalismo em seu estágio monopolista explicita o acirramento das tensões entre diferentes grupos da burguesia, os quais se colocam em disputa para hegemonizar os lucros advindos da destruição da vida da classe trabalhadora. Dessa vez, estamos assistindo à disputa interna da burguesia da educação (Conglomerados Bilionários da Educação, representados pela ANUP x Mantenedoras e Fundações de Instituições de Ensino Superior privadas), mas virão outras, com tendências cada vez maiores à hegemonização.

Por esse motivo, a discussão, no fundo, nunca foi sobre abrir ou não novas escolas médicas, nem tampouco sobre a qualidade dos profissionais formados, mas sobre quem ficará com os lucros do monopólio sobre esse processo. E o Edital de abertura de novas escolas médicas, condicionado ao Programa Mais Médicos, versa apenas sobre a forma como tudo isso será feito.

Dessa forma, tanto a linha argumentativa de defesa do Edital, quanto as linhas que o criticam, não contemplam os interesses dos estudantes e trabalhadores, já que os verdadeiros problemas não estão sendo apontados: (1) A educação pública tem sido sucateada, propositalmente, há anos (não há concursos, faltam docentes, faltam campos de prática, faltam políticas de permanência…), fazendo emergir, no senso comum, a ideia de que leiloá-la é a solução; (2) Com o avanço das Organizações Sociais de Saúde (OSSs) e das Parcerias Público-Privadas (PPPs), desde a década de 90, a privatização do SUS e dos Hospitais Universitários, com consequente prejuízo à vida da população, já é uma realidade. E se o Programa Mais Médicos não foge a essa dinâmica, ele segue apenas sendo um gestor do sofrimento da população brasileira; (3) A má distribuição de médicos no país não é resultado da falta de profissionais, mas da ausência de incentivos para que eles queiram se estabelecer em regiões fora dos grandes centros. E isso envolve, por exemplo, a falta de infraestrutura dos serviços de saúde nessas localidades, ausências de programas de residência e a falta de concursos; (4) A abertura desenfreada de novas escolas médicas ajuda a avolumar a reserva de mercado de médicos pelo país. Isso tem reduzido seu poder de barganha frente às OSSs, fomentando a rápida precarização dessa categoria de trabalho, como denuncia o processo de pejotização, que vem acompanhado de jornadas de trabalho extenuantes e da dificuldade de estabelecer vínculos empregatícios ou qualquer processo de estabilidade profissional; (5) O aumento do número de vagas no curso não vem acompanhado pelo aumento do número de vagas em programas de residência, que tampouco são contemplados pela Lei de Cotas. A existência desse funil cada vez mais brutal é o que alimenta os cursinhos de residência, pertencentes a grupos bilionários como o MEDGRUPO, que lucram em cima do desespero de estudantes mal formados. Esses cursinhos separam quais estudantes terão acesso a melhores salários e condições de trabalho e mais estabilidade de quem, sem conseguir ingressar num programa de residência, irá deteriorar as próprias condições de vida pulando de plantão em plantão, em portas de pronto-socorro, com rotinas extenuantes e nenhum tipo de estabilidade.

O debate não deveria focar na defesa de qual grupo bilionário vai monopolizar a formação de médicos no país, mas na defesa de uma Universidade popular, pública e estatal, verdadeiramente soberana, que seja construída pela população e que trabalhe para ela, e não uma Universidade submetida aos ditames de quem lucra com o adoecimento e a morte do nosso povo.