A pauta dos trabalhadores e os limites do governo Lula

É defendendo seus direitos, lutando por seus interesses e enfrentando a burguesia que os trabalhadores poderão ir além dos limites de um governo subordinado ao capital, rechaçar as falsas soluções apresentadas por liberais e fascistas e construir uma alternativa revolucionária.

A pauta dos trabalhadores e os limites do governo Lula
"Abrir mão da independência de classe do proletariado em nome de uma defesa abstrata da democracia contra o fascismo só contribui para desarmar os trabalhadores diante das mais variadas alternativas de dominação burguesa – inclusive a própria alternativa fascista."

Por Caio Andrade | @o_caio_andrade

Jair Bolsonaro foi derrotado nas urnas em 2022, mas o bolsonarismo ainda tem muita força. Esse raciocínio se tornou uma espécie de lugar-comum nas discussões dentro do dito campo progressista no Brasil. Entretanto, quando se questiona o que isso significa e como foi o processo pela qual a sociedade chegou a esse quadro, o aparente consenso desaparece, dando lugar a avaliações muito distintas. O problema é que, sem uma análise adequada sobre qual é de fato o papel dos fascistas na periferia do capitalismo e o que favoreceu o crescimento desse setor no Brasil nos últimos anos, não é possível formular uma linha política coerente com os reais interesses de classe dos trabalhadores e trabalhadores que compõem a imensa maioria da população.

Sem a pretensão de desenvolver um balanço exaustivo das lutas de classes no último período, gostaria de começar refutando a tese de que o avanço da extrema direita é uma consequência das jornadas de junho de 2013. Em linhas gerais, é importante lembrar que as manifestações populares em questão levantaram bandeiras justas, como o direito à mobilidade, moradia digna e serviços públicos de qualidade, em um contexto de encarecimento das tarifas nos transportes coletivos, aluguéis cada vez mais caros, violência do Estado e remoções de comunidades inteiras a pretexto de preparar as cidades para megaeventos como a Copa do Mundo FIFA 2014.

O crescimento econômico foi a base sobre a qual o PT conseguiu reduzir o desemprego, elevar o salário mínimo e realizar políticas sociais importantes, medidas que, entre outras, garantiram expressiva aprovação do partido, sobretudo entre os mais pobres. Mas não se pode esquecer que esse crescimento foi obtido a partir de relações de produção determinadas, relações inscritas no modo de produção capitalista e atravessadas pelas especificidades de uma formação social periférica como a formação social brasileira. Esse processo necessariamente contribuiria para a agudização de contradições que são inseparáveis de sua natureza econômica e política. A insatisfação popular com o aumento das tarifas nos transportes coletivos era só a ponta do iceberg. Isto é, estava em marcha um agravamento da questão urbana enquanto totalidade.

É verdade que a burguesia, sobretudo através da imprensa e de grupos com ampla estrutura de atuação nas redes sociais, disputou intensamente os rumos das mobilizações de rua entre 2013 e 2014, mas isso não foi capaz de evitar a reeleição de Dilma Rousseff. Rejeitando o candidato tucano Aécio Neves, a maioria do eleitorado fez uma escolha clara pela preservação dos direitos sociais e trabalhistas conquistados através de lutas travadas há muitas décadas contra as classes dominantes.

A vertiginosa ascensão do reacionarismo teve seu maior impulso, na verdade, em 2015. Fazendo o oposto do que prometeu ao longo da campanha, Dilma anunciou, ainda em dezembro de 2014, um “ajuste fiscal”. Portanto, ela começou seu segundo mandato com um pacote que endureceu as regras para a obtenção de pensão por morte, seguro-desemprego, abono salarial, auxílio-doença e seguro defeso. Os cortes nos investimentos públicos e outras medidas de “austeridade” adotadas pelo novo Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, provocaram a queda acentuada do PIB e dobraram a taxa de desemprego. Teria sido surpreendente se esse cenário não gerasse um enorme sentimento de frustração e descontentamento entre as massas.

O estelionato eleitoral fez o índice de aprovação do governo cair pela metade entre dezembro de 2014 e fevereiro de 2015. Embalados pelo derretimento da popularidade de Dilma, pelo quadro econômico desfavorável e pela Operação Lava Jato, iniciada um ano antes, os bandos reacionários começaram a dominar as ruas em março de 2015. A partir daí, o movimento Fora Dilma, composto sobretudo pela assim chamada classe média, apoiado abertamente por grandes empresas capitalistas e dirigido por quadros da direita, alcançou um protagonismo muito maior do que o conjunto do movimento sindical e popular conseguiria obter com suas ações naquele período.

Nesse sentido, o argumento de que 2013 abriu as portas para o fascismo procura responsabilizar a juventude e os trabalhadores que foram às ruas para cobrar melhores condições de vida por prejudicarem a governabilidade e oculta os fatos de que, primeiro, o governo federal e a principal prefeitura petista no país, São Paulo, deram as costas para as legítimas reivindicações populares que marcaram o início das jornadas de junho; depois, passadas as eleições de 2014, Dilma trocou suas principais bandeiras de campanha por um choque neoliberal na economia, na vã esperança de obter o apoio por parte da burguesia e seus representantes. Além disso, o PT abriu mão de enfrentar o oligopólio da comunicação e de indicar nomes ligados aos interesses da classe trabalhadora para órgãos como a PGR e o STF, bem como para os postos de comando da Polícia Federal e das Forças Armadas, preferindo acreditar em uma suposta autonomia republicana das mesmas instituições que – sendo atravessadas pelas lutas de classes – viriam a contribuir decisivamente com o golpe de 2016 e a prisão ilegal de Lula em 2018.

O golpe institucional de 2016 só foi possível porque os setores econômicos, sociais e políticos interessados na sua realização encontraram condições favoráveis para acumular forças nos anos anteriores. Isso fica evidente quando olhamos, por exemplo, para os grandes bancos e grupos financeiros, para o agronegócio e para as empresas da fé tão bem representadas pela bancada da bíblia. Se cabe ponderar que a burguesia não é um bloco monolítico, é fato também que as contradições entre suas frações internas e com o imperialismo são infinitamente menores que sua aversão coletiva à classe trabalhadora e ao povo em geral. Ignorar essa realidade é reviver uma ilusão que já deveria ter sido superada em 1964, quando o golpe empresarial-militar sepultou as esperanças de uma aliança entre a classe trabalhadora e uma suposta burguesia nacional contra o imperialismo, o latifúndio e os monopólios.

A Ponte Para o Futuro de Michel Temer coroou a ofensiva burguesa, não só descartando os termos da conciliação de classes operada pelos seus antecessores, mas indo além ao apontar suas armas para as conquistas populares incorporadas pela Constituição de 1988 – um dos pilares da Nova República. Esse projeto é efetivado com medidas como o Teto de Gastos, o avanço das privatizações de empresas públicas, a contrarreforma trabalhista, o novo ensino médio e o desfinanciamento da saúde, da educação e outros direitos sociais, resultando no crescimento do desemprego, da pobreza e da fome – tudo em nome da sagrada austeridade fiscal.

Unidos em torno deste programa, os liberais demonstraram em 2018 que, uma vez mais, estavam determinados a impor seus interesses a qualquer custo. Assim, embarcaram sem embaraço algum na campanha para eleger ao cargo de Presidente da República um deputado fascista, notoriamente ligado a milicianos no Rio de Janeiro. A agenda representada na figura de Paulo Guedes contemplava perfeitamente os anseios de uma burguesia cada vez menos disposta a fazer concessões à classe trabalhadora, não importando o fato de que, para garantir a ordem nessas circunstâncias, fosse necessário aumentar de forma significativa o protagonismo do Partido Militar.

Importa ressaltar que, embora esse processo tenha se acentuado a partir de 2016, ele não começou no governo Temer. A título de exemplo, houve mais operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) entre 2003 e 2013 do que entre 1992 e 200. Em 2013, o governo deslocou mil soldados para reprimir as manifestações contra o leilão do Campo de Libra e, entre 2014 e 2015, foram gastos mais de 27 milhões de reais para colocar tropas no Complexo da Maré. Não se pode esquecer também a Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (Minustah), que contou com comandantes como os Generais Heleno, Santos Cruz, Floriano Peixoto e Eduardo Ramos.

No primeiro ano do governo Bolsonaro foi aprovada a contrarreforma da previdência, o que representou mais um passo decisivo na perspectiva da destruição do pacto social constituído na década 1980 e da consolidação de um padrão de acumulação capitalista ainda mais brutal no Brasil, compatível com uma economia primário-exportadora ancorada em elementos como o aumento da exploração do trabalho, altos índices de desemprego, ampliação da insegurança alimentar, devastação ambiental, espoliação dos povos da floresta, precarização dos serviços públicos, maior concentração de riquezas, reafirmação da política de encarceramento em massa e aprofundamento do extermínio da população negra e favelada.

A conjuntura de retrocessos que começou com o ajuste fiscal de Dilma e Levy em 2015 e se agravou com o golpe que permitiu a ascensão de Temer e Bolsonaro à presidência colocou para os trabalhadores e trabalhadoras a necessidade urgente de se reorganizar para barrar a retirada de direitos elementares e deter a ofensiva burguesa contra as conquistas sociais obtidas por meio de greves e diversas outras formas de luta desenvolvidas por mais de um século. Em 2017, houve uma greve geral muito importante, mas que encontrou nas cúpulas da estrutura sindical brasileira uma eficiente barreira, capaz de deter a radicalização do enfrentamento aos patrões e governos. No governo Bolsonaro, mesmo durante a pandemia, as lutas populares não deixaram de acontecer. Mas, na ausência de uma força política capaz de aglutinar essas iniciativas e colocar em cena uma alternativa de poder efetivamente classista e, portanto, sem conciliação com a burguesia, a energia dos movimentos organizados e a insatisfação das massas em geral foram mais uma vez capturadas pela lógica institucional e, dentro desta, canalizadas para a campanha eleitoral de Lula em 2022.

Representando uma frente ampla para voltar ao Palácio do Planalto pela terceira vez, Lula não se comprometeu em tentar revogar as contrarreformas aprovadas por Temer e Bolsonaro, notadamente as contrarreformas trabalhista e previdenciária. Sua campanha deu prioridade a temas não menos importantes, como a denúncia dos crimes de Bolsonaro durante a pandemia, o combate à fome e à miséria, o controle do desmatamento, o questionamento às privatizações de empresas públicas, a necessidade de justiça tributária, a redução dos preços dos combustíveis, a geração de emprego e os investimentos em saúde e educação. Seu programa indicava a necessidade de recomposição da capacidade do Estado em realizar investimentos públicos e suas reiteradas críticas ao Teto de Gastos alimentaram as esperanças de muitos eleitores.

Contudo, passados mais de nove meses de governo Lula III, a situação concreta para a classe trabalhadora é, no mínimo, preocupante. A agenda do primeiro semestre foi dominada pela campanha pela criação de uma nova âncora fiscal. O texto elaborado no Ministério da Economia flexibiliza alguns aspectos do regime fiscal instituído com Temer, mas mantém sua essência. Ou seja, restringe investimentos públicos que seriam fundamentais para garantir direitos básicos para a maioria da população enquanto conserva os gastos trilionários com juros e amortizações da dívida pública, favorecendo o rentismo. O governo liberou mais de 1 bilhão de reais em emendas parlamentares para aprovar, na prática, um novo Teto de Gastos que fixa metas de déficit primário zero em 2024 e 1% de superávit em 2026.

Sobre a Medida Provisória que define a nova estrutura dos ministérios, o centrão alterou o texto original, enfraquecendo os Ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas. As mudanças foram realizadas mesmo após a liberação de R$ 1,7 bilhão em emendas parlamentares para garantir apoio no Congresso. A pasta de Marina Silva perdeu o Cadastro Ambiental Rural e a Agência Nacional de Águas. Já o ministério comandado por Sônia Guajajara perdeu a prerrogativa de demarcar as reservas indígenas. Além disso, a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), que passaria para a Casa Civil, permaneceu no Gabinete de Segurança Institucional (GSI) – onde há maior influência das Forças Armadas. Mesmo assim, predominou na bancada petista o discurso de que foi uma vitória. Ao mesmo tempo, os ministérios da Igualdade Racial e das Mulheres possuem os menores orçamentos entre todas as pastas existentes, o que compromete a atuação de ambos.

O Plano Safra 2023/2024, maior da história, destina mais de 364 bilhões para o agronegócio. A inclusão de incentivos para empresários do ramo agropecuário que atingirem metas de sustentabilidade não alteram em nada o modelo de produção no país, que contribui para o desmatamento e a violência no campo, viola direitos trabalhistas, consome muita água, é campeão no uso de agrotóxicos, proporciona poucos postos de trabalho e é voltado para o mercado externo.

A lógica exportadora de produtos primários segue também na Petrobras. Neste ano o Brasil bateu o recorde de venda de petróleo cru: foram, em média, 1,5 milhão de barris por dia no entre janeiro e junho, sendo mais de 60% feito por empresas estrangeiras. Enquanto isso, os preços dos combustíveis no mercado interno continuam altos, assim como a distribuição de dividendos para os acionistas da empresa. O anúncio do fim da política de Preço Paritário de Importação (PPI) não passou de retórica, de modo que até agora as privatizações de refinarias, terminais, distribuidoras, transportadoras e campos de petróleo não foram questionadas. Portanto, a promessa de campanha de abrasileirar os preços do diesel e da gasolina não foi cumprida.

A equipe econômica do governo Lula, através do BNDES, está estimulando a privatização de presídios com linhas de crédito para parcerias público privadas envolvendo empresas e governos estaduais. Ou seja, quanto mais negros e pobres presos, mais lucros para os capitalistas – a exemplo do que já acontece no sistema carcerário dos Estados Unidos. Cabe destacar que essa medida não passou pelo parlamento, foi o próprio Executivo que ampliou o escopo de um decreto editado em 2016 por Michel Temer para incluir o sistema prisional nos programas de desestatização. O BNDES também está dando suporte para a privatização de portos, linhas de metrô e infraestruturas de transporte em geral.

Os próximos alvos são os pisos constitucionais da saúde e da educação. Priorizando o fiscalismo neoliberal, o governo vinha buscando o aval do Tribunal de Contas da União (TCU) para descumprir os investimentos mínimos em saúde e educação determinados pela Constituição. A tendência, no entanto, é que esse duro golpe contra a classe trabalhadora seja operado no Congresso Nacional. É para aprovar medidas com essa, não para fazer reforma agrária ou reestatizar empresas, que o governo Lula-Alckmin entrega ministérios nas mãos de bolsonaristas ligados a Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados. Ou seja, o governo cede espaço aos representantes políticos do capital para fazer avançar a própria pauta dos grandes capitalistas.

O breve e incompleto inventário que procuramos apresentar acima não tem por finalidade estabelecer um julgamento moral do governo Lula. Não importa o quanto o presidente esteja ou não cheio de boas intenções – e não duvidamos de que ele realmente as tenha –, trata-se de um problema objetivo. Se há duas décadas já não havia condições para reformas, no capitalismo brasileiro de hoje não há mais espaço sequer para a conciliação de classes. Isso significa que, dentro do atual quadro econômico, político e institucional, as promessas apresentadas pelo PT nas eleições de 2022 encontrarão pouco ou nenhum espaço para serem implementadas. Assim, a questão não é se as massas terão suas expectativas frustradas novamente, mas quando.

Nesse contexto, o combate aos fascistas não pode ser desvinculado da luta intransigente contra as políticas de austeridade, pois é justamente a partir dos impactos dessas políticas na vida concreta da maioria da população que cresce a desilusão necessária para alimentar projetos de extrema direita. Abrir mão da independência de classe do proletariado em nome de uma defesa abstrata da democracia contra o fascismo só contribui para desarmar os trabalhadores diante das mais variadas alternativas de dominação burguesa – inclusive a própria alternativa fascista. Se quisermos evitar que os fascistas capturem a indignação popular que, mais cedo ou mais tarde, tende a aumentar, não podemos permitir que eles tenham o monopólio das críticas ao governo social-liberal.

Os comunistas devem ser os primeiros dentro da esquerda a se declararem em oposição a Lula-Alckmin, buscando unir e organizar a classe trabalhadora para defender bandeiras como a revogação de todas as contrarreformas neoliberais, a anulação de todo tipo de teto de gastos, a reestatização das empresas públicas, a reforma agrária, a reforma urbana, o fim do genocídio da juventude negra nas favelas, a jornada semanal de trinta horas, o pleno emprego e o aumento do salário mínimo. É defendendo seus direitos, lutando por seus interesses e enfrentando a burguesia que os trabalhadores poderão ir além dos limites de um governo subordinado ao capital, rechaçar as falsas soluções apresentadas por liberais e fascistas e construir uma alternativa revolucionária.