'A China é feia? Diálogo com le camarada Ouriço Azul' (Gabriel Xavier)

Ao apontar o caráter da revolução chinesa como democrática não digo que a China contemporânea ou de 1949 seria “feia”. Nunca afirmei o que foi dito nas palavras de le camarada Ouriço Azul: “tem burguesia, tem coisa feia, é uma autocracia burocrática ditatorial extrema!”

'A China é feia? Diálogo com le camarada Ouriço Azul' (Gabriel Xavier)

Por Gabriel Xavier para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Durante o pleno congresso no Distrito Federal, afirmei categoricamente que a China não realizou uma revolução socialista. Esse processo histórico pode ser categorizado como uma revolução de libertação nacional, democrática ou anti-imperialista.

Acredito que muitos camaradas, ao se depararem com essa afirmação, apresentaram certa reação acalorada, no sentido de entender que, em razão disso, supostamente defendi a China como revisionista ou que não considerava esse processo revolucionário digno de ser reivindicado como uma grande vitória do proletariado. Essa objeção não poderia estar mais errada.

Vejam, ao apontar o caráter da revolução chinesa como democrática não digo que a China contemporânea ou de 1949 seria “feia”. Nunca afirmei o que foi dito nas palavras de le camarada Ouriço Azul: “tem burguesia, tem coisa feia, é uma autocracia burocrática ditatorial extrema!” [1]

Em conjunto, concordo como le camarada quando diz que devemos estudar o “socialismo com características chinesas” pelo que ele é, no caso: um modo de produção predominantemente capitalista, que institui uma república democrático-burguesa pela via revolucionária.

Afirmar isso não é dizer que a China é “feia”, como le camarada aponta. De maneira semelhante, eu sou bancário, sou trabalhador improdutivo, isso não quer dizer que eu sou preguiçoso no meu emprego ou que sou inútil. É apenas uma categoria marxista, no caso, de que os assalariados bancários – que representam uma classe média improdutiva – não é explorado pelo forma específica do capital industrial, um bancário não cria nenhum valor em seu trabalho. 

O bancário é explorado na esfera da circulação de mercadorias, a forma específica do capital mercantil, quando o mais-valor já foi extraído durante o processo de produção, sendo que a minha jornada de trabalho apenas irá promover a realização do valor, expresso pelo seu valor de troca. Ou seja, um bancário não produz nenhum valor, portanto, é um trabalhador improdutivo. E dizer isso não quer dizer que um bancário é “feio” ou “ruim”. Vejamos uma citação de Bambirra sobre (já que citar Lênin, aparentemente, incomoda):

“[...] É necessário precisar que consideramos como classes médias aquelas camadas que não estão vinculadas diretamente ao processo produtivo e se situam nos níveis intermediários entre os detentores diretos da mais-valia e a classe operária. São aqueles que estão localizados no setor terciário, como profissionais liberais, burocratas, militares etc. Portanto, mesmo que tenham interesses específicos, sua situação objetiva não possibilita que tenham uma perspectiva própria de transformações estruturais em seu conjunto.” [2]

Do certo desvio de revisionismo

Na tomada do poder na China, é estabelecido uma partilha com as quatro classes revolucionárias – o proletariado, campesinato, pequena burguesia e burguesia nacional – que Mao Zedong chamará de ditadura da democracia popular, ou conhecida também como Nova Democracia. Assim, nesse sentido, o triunfo de 1949 pode ser classificado como uma luta anticolonial, anti-imperialista, que irá aprofundar as relações de produção mercantil, tendo em vista suas classes dominantes.

Assim, ao apontar que a Revolução Chinesa de 1949 instituiu uma ditadura da democracia popular, não é dizer que a China é “feia”. Essa, na verdade, é a correta apreensão desse processo histórico, e dizer que a China instituiu uma ditadura do proletariado em 1949 é, de fato, revisionismo histórico, uma vez que não foi isso que aconteceu.

Não utilizo o termo revisionismo de forma leviana, utilizo quando há uma deturpação do marxismo-leninismo, um erro que qualquer militante está disposto a fazer, eu já os cometi, é normal isso. Utilizo para fundamentar a crítica, não leve como um “xingamento”. Portanto, confundir a ditadura democrática com a ditadura do proletariado é sim, de fato, um erro de revisionismo.

Entretanto, há melhores condições de luta pelo socialismo na China do que no Brasil, pois instituíram sua república democrática não pela via reformista, como foi no nosso caso, e sim pela via revolucionária. Assim, existe um democratismo muito mais consequente na China do que no Brasil. A instituição da república democrática pela via revolucionária – principalmente se sob hegemonia do proletariado – garante isso. Infelizmente para alguns camaradas, me sinto na obrigação de citar Lênin:

“É mais vantajoso para a burguesia que as transformações necessárias no sentido democrático-burguês transcorram de maneira mais lenta, mais gradual, mais cuidadosa, menos decidida, pelo caminho das reformas e não pelo caminho da revolução; [...] Em contrapartida, é mais vantajoso para a classe operária que as transformações necessárias no sentido democrático-burguês transcorram justamente não pelo caminho das reformas, mas pelo caminho revolucionário, pois o caminho de reformas é o das delongas, das protelações, do definhamento e da morte dolorosa e lenta das partes apodrecidas do organismo popular.” [3]

Portanto, sequer aceito a crítica de le camarada no sentido de ser uma “abstração” (como já fui acusado várias vezes), é apenas compreensão do processo histórico. De fato, uma república democrática instituída pela via revolucionária dá melhores condições ao proletariado de luta pelo socialismo que uma via reformista, mas isso não é, desde já, socialismo, e tudo bem!

Do possível desvio de etapismo

Agora, como – e aqui ressalto – no limite, caso continuem a sustentar tais posições, o etapismo desses camaradas pode se manifestar? Oras, para mim parece bem simples, como esses camaradas confundem a revolução democrática com uma revolução socialista, irão errar em matéria de linha estratégica, já que confundem as tarefas democráticas de uma revolução com as tarefas socialistas. 

Portanto, ao executarem apenas as tarefas democráticas, ou entender que essas já são suficientes para chegarmos a uma ditadura do proletariado (e não uma ditadura democrática), irão adotar em sua aparência uma roupagem de revolução socialista, contudo, sua essência será de uma revolução democrática. Assim, é um desvio etapista, e dizer isso não é um xingamento, é apenas uma constatação dessa linha política confusa.

Acredito que le camarada Ouriço Azul não leu a minha tribuna, ao menos não com atenção, já que me sinto na obrigação de citar novamente o mesmo parágrafo de Lênin, onde é afirmado, de maneira categórica, que a revolução democrática não é “ruim”, mas sim que alça ao proletariado as melhores condições de luta pelo socialismo, porém, ainda dentro dos marcos do capitalismo.

“Sem uma ditadura será impossível esmagar essa resistência, rechaçar as tentativas contrarrevolucionárias. Mas não será, evidentemente, uma ditadura socialista, e sim democrática. Essa ditadura não poderá afetar (sem toda uma série de estágios intermediários de desenvolvimento revolucionário) os fundamentos do capitalismo. Poderá, no melhor dos casos, introduzir uma redistribuição radical da propriedade da terra a favor do campesinato, conduzir um democratismo consequente e pleno até a república, arrancar pela raiz não só do cotidiano do campo mas também da fábrica, todos os traços asiáticos, servis, iniciar uma melhora séria da situação dos operários, elevar suas condições de vida e, finalmente, [...], transportar o incêndio revolucionário à Europa. Tal vitória não se converterá ainda, de forma alguma, a nossa revolução burguesa em socialista; a revolução democrática não ultrapassará diretamente os limites das relações socioeconômicas burguesas; mas, apesar disso, terá um significado gigantesco para o desenvolvimento futuro da Rússia e do mundo inteiro.” [4] 

A luta anticolonial, anti-imperialista e todas as revoluções que representam a libertação de determinado povo que sofria dos algozes colonialistas representa um passo em frente na revolução proletária mundial. Uma vitória que deve ser saudada por todos os marxista-leninistas pela emancipação do proletariado e superação do modo de produção capitalista. A Revolução Chinesa de 1949 representa uma derrota do imperialismo.

O marxismo anticolonial

Há uma interligação das lutas de libertação nacional nos países que sofrem do colonialismo e dos países onde o modo de produção capitalista já é predominante, com um grande proletariado industrial enquanto classe. A luta democrática nos países da periferia colonial (não confundir com a periferia do capitalismo dependente) do sistema de dominação global impõe maiores dificuldades para as burguesias imperialistas do centro, torna a sua dominação, inclusive de seu próprio proletariado, mais difícil, torna a luta pelo socialismo nestes países mais encarniçada, mais ardente, mais necessária. Aqui, acredito que le camarada Jones Manoel arremata bem essa questão:

“Marx e Engels foram ainda mais fundo. Adiantando a indispensável formulação de Lênin sobre a aristocracia operária e a questão colonial, os autores do Manifesto Comunista perceberam a dialética entre a questão colonial e o amoldamento à ordem do proletariado inglês, mostrando que os superlucros da burguesia inglesa auferidos com a colonização da Irlanda serviam como contraponto às vitórias da economia política do trabalho sobre o capital. Não poucas vezes, os dois revolucionários ligaram diretamente o persistente reformismo dos trabalhadores ingleses ao martírio dos irlandeses, constatando que a revolução socialista na Inglaterra e a libertação nacional irlandesa eram duas faces da mesma moeda – ainda é útil pontuar que análise parecida foi desenvolvida em relação ao Sul escravagista dos Estados Unidos e o movimento operário do Norte, em que o trabalhador de pele clara se comportava como um ‘senhor’ frente ao trabalhador de pele negra.” [5]

E mesmo nestes países onde a luta anti-imperialista é mais intensa, onde há um papel possível até para pequena-burguesia e, em casos de ocupação militar como na China, uma parte da burguesia nacional, esse processo deverá sempre estar sob hegemonia do proletariado. Mesmo na revolução democrática, a fórmula leninista é a ditadura revolucionária democrática do proletariado e camponeses.

Essa ditadura irá garantir que esta revolução, nos países de domínio colonial, tenha as maiores chances de ir além, esgarçar os limites possíveis do democratismo burguês, romper com as relações de produção com o capitalismo monopolista. Mas avançar para as tarefas socialistas, abolir o campesinato enquanto classe, transformar a revolução democrática em revolução socialista, isso só será possível em uma ditadura do proletariado.

Por fim, faço a recomendação de duas tribunas que eu considero as melhores até o momento no debate sobre China, para servir de acúmulo na etapa nacional do XVII Congresso, o camarada Glushkovinho:

“Os camaradas que se propõe a defender o ‘socialismo Chinês’ como uma transição socialista vão precisar explicar como as concepções econômicas de Lênin estão erradas. Vão precisar explicar como a teoria da transição socialista em Lênin precisa ser superada. Em outras palavras, a defesa do ‘socialismo com características chinesas’ exige uma revisão da base econômica do marxismo-leninismo, exige especificamente dizer que o objetivo de uma política econômica proletária não é o aumento da parcela socialista de uma economia e o consequente desenvolvimento econômico promovido pela superioridade qualitativa da grande produção socialista, mas sim seu desenvolvimento submetido à produção mercantil, à privatização, à submissão parcial do desenvolvimento ao capital estrangeiro e à exportação de capitais, ao desenvolvimentismo nacional capitalista e à rendição completa de qualquer pretensão de internacionalismo proletário.” [6]

Além disso, gostei da leitura da tribuna de le camarada Guilherme Sales [7], recomendo também.


Referências bibliográficas

[1] AZUL, Ouriço. Uma resposta sobre a delegação do Distrito Federal: como se transformar em um liberal medíocre. (link).

[2] BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. (Insular, 2024) p. 82.

[3] LÊNIN, Vladimir. Duas táticas da social-democracia na revolução democrática. (Boitempo, 2022) p. 65-6.

[4] LÊNIN, Vladimir. Duas táticas da social-democracia na revolução democrática. (Boitempo, 2022) p. 71-2.

[5] MANOEL, Jones. A batalha pela memória: reflexões sobre o socialismo e a revolução no século XX. (Ruptura, 2024) p. 192-3.

[6] GLUSHKOVINHO. Ensaios sobre a ortodoxia do pensamento econômico marxista-leninista (parte 1): Porque não defendemos modelo Chinês. (link)

[7] SALES, Guilherme. Limpando o terreno sobre a África, o Brasil e o imperialismo chinês. (link)