'Limpando o terreno sobre a África, o Brasil e o imperialismo chinês' (Guilherme Sales)

No campo da política externa burguesa entre Estados, a China estabelece em África relações diplomáticas plenamente legitimadas pelo direito internacional com outro Estado soberano. Mas isso não deixa de representar uma relação capitalista e imperialista.

'Limpando o terreno sobre a África, o Brasil e o imperialismo chinês' (Guilherme Sales)

Por Guilherme Sales para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

As tribunas que versam sobre imperialismo, China e nossas posições no campo internacional no geral assumem um tom que é mais professoral do que um diálogo com a militância, que vise o convencimento. Expondo suas posições sobre a polêmica sem apresentar uma clara e sólida argumentação, que convença de sua justeza e desarticule a posição que se julga errada, algumas tribunas são quase como instrumentos de validação, uma recompensa ao ego que contribui mais com a confusão ideológica em nossas fileiras, herdada em parte do ecletismo atroz do velho PCB, do que com algum esclarecimento. Camaradas próximos aos autores irão validá-lo intelectualmente, como se fosse grande formulador, quando na verdade dificilmente o é – não por presumida ignorância de nossos camaradas, mas pelo atual estágio de nossa organização e do movimento comunista no Brasil em termos de hegemonia e formulação ideológica. É importante, também, destacar que esse tipo de questão tem um claro recorte racial e de gênero, se tratando majoritariamente de homens brancos em posições variadas nas fileiras.

Nosso debate sobre imperialismo ainda é limitado. Quando não pela predominância de exposições parciais – que veem na tribuna de debates um grande fórum aglutinador de opiniões, com a estrutura de um blog – por uma leitura mecânica do que se entende ser a teoria leninista e por uma superficial perspectiva sobre a China e o PCCh das últimas décadas. É por isso que são muito comuns as tribunas que contestam o socialismo chinês com base em uma replicação de posições de determinado referencial teórico (geralmente europeu), mas pouco se desenvolve as consequências dessas posições para construção de um partido revolucionário no Brasil. É assim que, deparando-nos com esse debate, há uma sensação de frustração por não estarmos saindo do lugar, o que tem como uma de suas consequências o fato de parte da militância acreditar (erroneamente) que esse é um debate “acadêmico” ou descolado da prática política revolucionária. A quantidade de tribunas sobre o tema não reflete a qualidade do debate, nem mesmo o interesse da militância num geral. Por isso se faz necessário limpar o terreno e dar sentido ao debate por meio de conexões com nossa realidade.

Tendo isso em vista, pretendo fazer uma breve contribuição (quase no formato de notas, visando o enriquecimento do debate), desde já afirmando: A China é um país que ocupa uma posição imperialista na cadeia econômica global e completou sua restauração ao capitalismo. Mas, para além disso, debruçar-nos sobre o continente africano é parte essencial para compreensão desse fenômeno, e este é um dos grandes equívocos de parte das análises sobre o imperialismo no século XXI: não é possível enxergar as nuances do processo de exploração sem remontar historicamente a pilhagem feita pela Europa através da colonização e os grandes acontecimentos do século XX após a morte de Lenin, em especial as lutas de libertação. Nesse sentido, acredito que Walter Rodney surge como figura central para desenvolver a teoria do imperialismo de Lenin e legar-nos grandes contribuições ao estudo do continente africano. Somente assim é possível enxergar nas atuais relações entre China, o continente africano e o Brasil uma conexão que faça sentido na prática revolucionária.

A leitura predominante dos comunistas brasileiros do continente africano

Houve nos últimos anos um inegável esforço de resgate de autores marxistas da periferia do sistema, em especial do continente africano. Visando rebater a ideia de que o marxismo era uma teoria essencialmente eurocêntrica e que teria pouco valor às minorias nas margens da sociedade, demonstrar que revolucionários como Amílcar Cabral, Thomas Sankara, Samora Machel, Kwame Nkrumah e Frantz Fanon não só tiveram contato com o marxismo, como o tratavam como o instrumento mais avançado para pensar a libertação de seus povos foi uma virada de chave para avançarmos a práxis do movimento comunista brasileiro ao reacender a relevância do marxismo no Brasil. 

No entanto, há dois caminhos seguidos a partir dessa tendência de resgate histórico. Se por um lado a exaltação dessas figuras e a compreensão de seus papeis nos movimentos de libertação no século XX vieram num momento oportuno para combater falácias e desonestidades liberais, levando muitos a se aproximarem ideologicamente do comunismo e enxergando uma verdadeira potência revolucionária, por outro foi usado de forma vulgar e oportunista, de modo pouco qualificado, sem se apropriar verdadeiramente do que se poderia apreender das contribuições desses camaradas.

Em tese, todos reconhecem a grande importância da figura de Sankara para o marxismo, em especial de 2018 pra cá. Contudo, sabe-se pouco ou quase nada dos aspectos da linha política que o burquinense seguiu, muito menos do contexto histórico, político e econômico que o forjou em África. 

Dito isso, o debate sobre o continente africano no Brasil obedece ao fato de que perdurou durante muito tempo (e ainda perdura de certo modo) a ideologia freyreana da democracia racial. O soerguimento do Movimento Negro e o combate incisivo feito por figuras como Clóvis Moura, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e outros que continuamente refutaram essa ideia legou o início de um novo período comprometido com as raízes africanas da população negra no Brasil. Contudo, é um fato político recente e somente no século XXI surgem iniciativas voltadas para um sistemático estudo e aproximação com o continente africano, com a Lei nº 10.639/03, que institui o ensino obrigatório de História da África, junto da própria implementação das cotas raciais.

É interessante notar o descompasso brasileiro em relação aos estudos do continente africano levando em conta o Departamento de Estudos Africanos mantido na URSS e na China Popular no século XX. Claro, foram países que passaram por processos revolucionários de caráter paradigmático, mas não deixa de ser relevante para compreensão do que está sendo posto: O Brasil, país com maioria negra em sua população, um dos últimos a conceder a liberdade aos escravizados, pilar central do sistema escravista no Atlântico, não possui e não tem intenção de possuir um sistemático centro de estudos africanos consequentes. Tendo iniciativas pequenas e centradas nas universidades, é ainda insuficiente e sintomático que não se tenha nenhuma ligação com um continente extremamente próximo da cultura e sociedade brasileira. Isso é ainda pior quando se trata da militância comunista, pois os bisnetos de Caio Prado Jr. ainda predominam no debate, negando (não intencionalmente, claro, na sua santa inocência) a centralidade do debate racial e de gênero no Brasil e dentro do espectro do marxismo-leninismo. Chegou a hora de pararmos de lamentar a ausência de um Órgão Central e de direções a altura dessas tarefas no antigo PCB e começarmos a agir.

O Imperialismo nas obras de Lenin e Rodney

O debate sobre imperialismo inevitavelmente permeia a clássica obra de Lenin, escrita em 1916 e visando tanto a crítica da Segunda Internacional quanto a análise do panorama mundial do capitalismo naquele período. A constatação de que o capital industrial e o capital financeiro estavam se fundindo numa nova etapa do capitalismo, caracterizada pelo domínio dos monopólios das grandes potências europeias e dos EUA foi acertada e serviu de base para análises posteriores a morte de Ilyich. 

Com isso, de 1924 pra cá, é evidente, não apenas ocorreram milhares de fatos políticos e desdobramentos históricos, como a conjuntura econômica não é a mesma. E mesmo assim, as análises em nossas fileiras parecem presas em uma concepção muito esquemática da definição de imperialismo, ignorando o próprio Lenin, que aponta “o caráter condicional e relativo de todas as definições em geral” [1]. É importante ter isso em mente, porque hoje a análise de Lenin serve como base da literatura sobre imperialismo, mas sua leitura como uma checklist muito pouco tem a nos dizer sobre o atual estágio deste fenômeno. 

É nesse sentido que o guianense Walter Rodney nos legou sua monumental contribuição não só acerca do debate sobre imperialismo, mas principalmente para o marxismo no geral. Como a Europa Subdesenvolveu a África é uma abrangente continuação criativa da teoria leninista do imperialismo, dando cabo das complexas relações entre as colônias e as metrópoles durante todo período colonial.

Além de refutar os argumentos burgueses sustentados no racismo científico, que colocavam o continente africano num patamar essencialmente inferior, negando as consequências brutais do colonialismo, Rodney preenchia uma lacuna no marxismo deixada pela predominância de autores europeus que, se não negavam as nuances da exploração, pouco contribuíram para que esse aspecto tornasse parte central do debate. Comentando as referências para seu livro, Rodney aponta:

“O próprio Marx deu grande ênfase às fontes de acumulação de capital no exterior. Mas mesmo marxistas proeminentes (como Maurice Dobb e E. J. Hobsbawm), que se dedicaram por anos a analisar a evolução do capitalismo europeu desde o fim do feudalismo, fazem referência apenas marginal à exploração massiva de povos originários da África, da Ásia e das Américas”. [2]

Por essa e outras razões, é impossível falar sobre imperialismo sem falar da exploração colonial e do tráfico de escravos. A pobreza do debate em nossas fileiras passa muito, assim, pela ausência de referenciais teóricos que elaboram a partir de suas realidades marginais, bem como de elementos que superem a perspectiva tipicamente brasileira da prática freyriana e do ecletismo – alimentando um discurso antirracista e anticapitalista que colhe seus frutos de debates variados, especialmente estadunidenses, mas que na prática secundariza os elementos raciais, obedecendo um enraizamento culturalista que tem bases na democracia racial. É nesses termos que o continente africano e autores como Rodney, Nkrumah e Amílcar Cabral, bem como Clóvis Moura e Lélia Gonzalez, são deixados de lado na prática, sendo o debate sobre imperialismo centrado em preciosismos dogmáticos quase economicistas ou simplesmente esvaziado pela ausência de uma política efetiva de formação. 

O contato africano com a China e sua posição na história mundial

A relação entre China e continente africano remonta ao menos o século IX. As dinastias chinesas conservaram durante vários séculos relevantes grupos especializados na engenharia naval, o que permitiu a navegação no oceano índico, atingindo em certo período a península arábica e a África Oriental, mantendo comércio com os reinos locais, em especial o reino de Axum, na atual Etiópia.

Conhecido por suas sete grandes viagens ao extremo ocidente, o almirante Zheng He (Cheng Ho), um muçulmano de Yunnan, serviu às cortes imperiais, trazendo produtos de diferentes locais e atuando como uma espécie de diplomata em diversos reinóis no oceano índico. É nesse período que surgem alguns relatos da costa africana, indicando como a sociedade ali se organizava. Relatos que, infelizmente, se perderam. Segundo Basil Davidson:

“[...] é muito provável que os relatos das expedições de Cheng Ho tenham sido deliberadamente aniquilados para que não pudessem vir a tentar, mais tarde, outros mareantes. Contudo, alguns mapas chegaram até nós, e um destes, pelo menos, resultante das viagens de Chang Ho ao litoral africano [...]” [3]

Isso serve para se ter a perfeita noção de que o desenvolvimento fora da Europa ocorria de determinada maneira, com características próprias e com elementos gerais, observados em diferentes locais do globo. A relação comercial entre os continentes em tempos pré-capitalistas era, assim, baseada em vantagens mútuas (como quase todo comércio na História), sem que houvesse uma lógica exploratória ou de deliberada extração de recursos. 

Walter Rodney aponta que, nesse período, a Europa interrompeu o desenvolvimento do continente como um todo, mesmo levando em conta suas dimensões. A alteração das relações comerciais, levando reinos como Daomé a especializarem-se no comércio de escravos, afetou diferentes grupos e reinos ao seu redor, que passaram a antagonizar entre si. 

Ao longo dos séculos a tecnologia europeia se encontrava em desenvolvimento, dada a extração de recursos nas coloniais e a produção de excedentes que eram investidos em inovações. A África, como assinala Rodney, contribuiu para o desenvolvimento capitalista na Europa. Além de financiar a ascensão industrial inglesa, com James Watt “expressando gratidão eterna aos senhores escravistas das Indias Ocidentais que financiaram diretamente sua presunçosa máquina a vapor e a levaram da prancheta do projetista para fábrica” [4], os recursos africanos deram condições para que surgisse uma camada da sociedade europeia dedicada à pesquisa. É nesse sentido que a Europa reteve os avanços tecnológicos nas sociedades africanas e continuou a explorar brutalmente estes povos enquanto desenvolvia suas forças produtivas.  

Da mesma forma, instituições financeiras se estabeleceram com base na exploração. Exemplo disso é o fato dos fundadores do banco Barclays estarem ligados diretamente com o comércio escravista. Além disso, marcas como Unilever são citadas por Rodney como grande exemplo de um monopólio que se estendeu da Europa e do comércio escravista para todo o globo. São esses mecanismos expostos pelo autor guianense que demonstram a magnitude de sua obra, pois dão cabo de esmiuçar todos os processos que Lenin cita em sua obra seminal, mas não expõe profundamente, além de sistematizar outros tantos processos que o revolucionário russo não pode acompanhar em vida. 

É essa gama de processos econômicos, políticos, sociais e culturais que dão as bases para os acontecimentos do século XX, com o detalhe de que em 1917 a URSS emerge no cenário internacional, bem como em 1949 Mao Zedong e os revolucionários chineses dão cabo da Revolução na China, inaugurando um novo período, em especial para o continente africano.

As relações da África com a China no século XX

O século XX é caracterizado por sua complexidade, pela amplitude numérica dos acontecimentos políticos e pelas nuances dos processos em curso. É importante ressaltar que a dimensão do continente africano não permite falar em processos homogêneos. Ao mesmo tempo, e essa é uma escolha política não só de Rodney mas também de outros pan-africanistas, o continente é tratado na sua unidade, tanto pelo entendimento de que somente a desagregação dos limites impostos pelo colonialismo poderia levar a libertação, quanto porque em termos de exploração, o colonialismo afetou invariavelmente toda extensão do continente.

Um breve parêntese. Como na imagem, é possível falar em quatro regiões no continente: África do Norte, África Ocidental e Central (que podem ou não se ramificar), África Oriental e África Austral. Não tanto por aspectos econômicos, a divisão se baseia tanto em agregação de processos políticos no século XX como pela caracterização do processo colonial, baseado na presença de uma ou outra potência europeia. Mesmo assim, não é suficiente e serve mais a princípios pedagógicos.

Com a ascensão dos bolcheviques, as relações internacionais passam por severas mudanças e o surgimento da Internacional Comunista demarca momentos para os processos de libertação no continente africano. É possível, assim, falar em um intervalo considerável entre o lançamento da Liga Contra o Imperialismo em 1927 até a Conferência de Bandung, em 1955, onde lideranças nacionais do chamado Terceiro Mundo, reunindo marxistas, democratas radicais e oportunistas, disputam os movimentos de libertação e o caráter das Revoluções em curso. 

Nesse contexto, os processos de independência política no continente africano são marcados por contradições severas que caracterizam as faces dos governos na segunda metade do século XX e o início do século XXI. Essas contradições são essenciais para compreender a perspectiva africana frente a diplomacia e o comércio com a China atual.

Em primeiro plano, há uma disputa no movimento pan-africano que leva, sem reservas, ao retrocesso. Enquanto W.E.B. Du Bois, Aime Cesaire e outras figuras, em concordância com a concepção leninista de imperialismo, passam a defender o processo de unidade africana e levá-lo ao continente, um outro grupo, parte da intelectualidade das elites africanas, forjado em processos de integração paternalista com as metrópoles, defendem a independência em abstrato, mas são irredutíveis quanto a alternativas econômicas ao capitalismo imperialista. 

Um dos grandes exemplos desse processo é a figura de Félix Houphouët-Boigny, que assumiu o cargo de primeiro presidente da Costa do Marfim em 1960, ano em que o Império Francês realizou um plebiscito na África Ocidental oferecendo a integração com a metrópole numa independência política limitada ou a independência [política] completa (o único país a recorrer à via da independência foi a Guiné de Sekou Touré). Para explicar o papel de Boigny, nos serve a seguinte passagem de Frantz Fanon:

“Esse senhor se transformou, há mais de três anos, no testa de ferro do colonialismo francês. Com assento em todos os governos, o sr. Houphouët-Boigny assumiu diretamente a política de extermínio praticada na Argélia.

[...]

O africano sr. Houphouët-Boigny, o doutor em medicina Houphouët-Boigny não hesitou em reivindicar essa barbárie e declarar-se solidário aos militares franceses.” [5]

Fato é que a África Ocidental, marcada pela presença francesa e a chamada Françafrique, a ideologia paternalista de integração, contou com processos violentos de libertação em todos os territórios, de Serra Leoa à própria Argélia de Fanon. No restante do continente não foi diferente. Do Quênia à Namíbia diversas guerrilhas se formaram para enfrentar tanto a conciliação das elites africanas com a metrópole, quanto a permanência de forças imperialistas em solo africano. Nesse sentido as relações com China e URSS são significativas tanto pela mudança de paradigma oferecida quanto pelas contradições.

Aqui entramos no cerne da questão. As relações do Estado chinês em África pós-Revolução pautaram-se, num primeiro momento, por pilares como o benefício mútuo e o internacionalismo. A China foi a principal financiadora de movimentos guerrilheiros como o Exército Revolucionário Popular do Zimbabwe (ZIPRA), mas também a principal fornecedora de armamentos e apoio tático a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), que combateu frontalmente o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), liderado por Agostinho Neto. Essas contradições de apoio a movimentos de libertação se dão em função de alguns aspectos, como a rivalidade sino-soviética, baseada na acusação de revisionismo e a desconfiança ideológica das lideranças, em uma disputa de linha que transborda para o campo das relações internacionais típicas entre Estados. 

Essas desconfianças são baseadas tanto no recuo dimitrovista consolidado na década de 1930, quanto nas interpretações pós-segunda guerra que viam na pequena-burguesia e na intelectualidade das burguesias nacionais africanas os protagonistas da revolução. Esse princípio nas relações entre URSS e África, por exemplo, quase levou ao apoio à FNLA, não fosse a intervenção de figuras dos departamentos africanos em Moscou sobre a decisão de Khrushchev, que mantinham contato direto com Agostinho Neto, Amílcar Cabral e outras figuras. Já a posição chinesa, seguindo o mesmo princípio, falhou decisivamente em compreender que as burguesias nacionais africanas assumiriam o papel de testa de ferro do neocolonialismo pós-independência.

Economicamente, o auxílio chinês e soviético à África teve momentos distintos. Se em primeiro plano houve o patrocínio das guerrilhas pela libertação, num segundo momento a ajuda passou a ser mais pragmática, baseada na mesma noção retroativa de que a pequena-burguesia e a elite intelectual e burocrática africana seriam superadas pela necessidade de avançar rumo a radicalização. Dessa forma, o apoio soviético baseou-se muitas vezes em estender sua influência a países (neo)coloniais ou em ligação estreita com o ocidente, como Quênia nos anos 1970, o Egito de Nasser (lembrado por perseguir e dizimar o Partido Comunista Egípcio e PCs de países árabes próximos, como a Jordânia) e a Nigéria. 

Um ponto fundamental para nosso debate é que as relações econômicas no início da segunda metade do século XX incluíam a transferência de tecnologia e não configuravam uma mera exportação de capital, elemento central na estruturação do imperialismo. Um grande exemplo disso é a construção da uhuru (liberdade), ou Tanzania Zambia Railway Authority (TAZARA) em 1970, ferrovia ligando Dar es Salaam na Tanzânia a Kapiri Mposhi na Zâmbia. O projeto da República Popular da China, envolvendo 15 mil chineses e 30 mil africanos na construção de mais de 2 mil quilômetros foi em primeiro lugar um ato político, pois forneceu uma saída para Zâmbia em conflito com as forças do apartheid da Rodésia. Esse conflito, contando com grande apoio do mundo socialista às forças da Organização do Povo do Sudoeste Africano (SWAPO) na Namíbia e à outras guerrilhas marxistas na África Austral contra os imperialistas patrocinadores do apartheid sul-africano marcou o não rebaixamento dos princípios socialistas até a derrocada do regime racista. Mas ao mesmo tempo, a solidariedade internacional foi limitada pelo caráter burguês da diplomacia soviética e chinesa que, atendendo seus interesses imediatos, mediaram sua posição em organismos internacionais. Em segundo plano, a construção foi subsidiada por anos pela China, importando locomotivas e facilitando empréstimos até a ferrovia ser lucrativa e trazer benefícios para os africanos.

Como típica relação comercial entre duas nações, buscava benefícios mútuos, mas diferente das relações coloniais, a relação da China com a Tanzânia e Zâmbia eram de solidariedade internacional, haja vista a longa luta chinesa pela libertação do imperialismo nipônico e estadunidense até 1949 – e mesmo posteriormente. Contudo, estes eram princípios marcantes da linha de Mao, que entrou em decadência no movimento das disputas internas do PC Chinês. Essas relações, portanto, são permeadas por ambiguidade, o que torna complexa a definição de solidariedade internacional de forma consequente tanto pelo Estado Soviético quanto pelo Estado Chinês. 

O continente africano e suas relações com a China no século XXI

Para compreender as relações atuais é necessário ter em mente uma premissa que é completamente esquecida ou negada desde o século passado: A luta de classe em África existe. Já foi mencionado o papel de Boigny e semelhantes na perpetuação do capitalismo e das relações coloniais no continente, mas esta é a superfície do problema.

Rodney, em texto escrito em 1974 e direcionado ao VI Congresso Pan-Africano, expõe uma clara disputa do pan-africanismo, tendo em vista o curso tomado pelos países após a independência, bem como a estruturação dos organismos internacionais como a Organização da Unidade Africana (OUA). Essas organizações internacionais criadas no fim do século XX, em diálogo com a Organização das Nações Unidas (ONU), os EUA, os países da Europa e países socialistas, tiveram um papel importante nas políticas africanas não pela mera formalidade diplomática, mas porque em determinado momento serviram como instrumento de intervenção militar contra movimentos populares e disputas entre burguesias africanas. 

Analisando o movimento pan-africano em seu caráter nacionalista, que é, segundo Rodney, onde se expressa o conteúdo de classe, o guianense aponta que “seria anti-histórico negar o caráter progressista da pequena burguesia africana em um determinado momento no tempo”, mas:

“[...] a pequena burguesia era reformadora e não revolucionária. Suas limitações de classe foram estampadas no caráter da independência que eles negociaram com os mestres coloniais. No próprio processo de exigir independência constitucional, eles renegaram o princípio cardeal do pan-africanismo: a unidade e a indivisibilidade do continente africano.” [6]

É, assim, inegável que na grande maioria dos países africanos, formados nos limites territoriais das antigas colônias, perdurou uma estrutura neocolonial em maior ou menor grau (maior, por exemplo, na África Ocidental, especialmente nas ex-colônias francesas e menor no África Oriental nas antigas colônias britânicas), que se expressou de diferentes formas. O neocolonialismo, segundo Kwame Nkrumah:

“exerce controle econômico através do sistema de “ajuda”, de “empréstimos” e de “trocas comerciais e financeiras”; controla economias locais através do vasto dispositivo de corporações internacionais; controla politicamente governos fantoches; penetra na sociedade através do desenvolvimento da burguesia nativa, da imposição de acordos “defesa”, da instalação de bases militares e aéreas, da infiltração ideológica, nitidamente anticomunista, através dos meios de comunicação modernos (imprensa, rádio, televisão); fomenta discórdias entre países e tribos.” [7]

Dito isso, a China após a derrota da Revolução Cultural, já com Deng Xiaoping a frente dos processos de abertura, mudou a chave em suas relações econômicas e políticas com o continente africano. Se por um lado a fraseologia de apoio à libertação foi continuada, os laços foram muito incertos até os anos 2000. Muitos países africanos, mantendo relações estreitas com o ocidente e suas organizações econômicas, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, foram comedidos no reconhecimento da República Popular. Da mesma forma, com a propagação de um discurso anticomunista típico da Guerra Fria, houve um afastamento mesmo de países com uma formação marxista de libertação, como o Quênia. 

Nos anos 1980 e 1990, com a decadência da URSS e o golpe que deu fim ao regime soviético, a China se volta para o desenvolvimento interno lidando com uma conjuntura internacional desfavorável e processos políticos complexos que legaram um redirecionamento do PCCh. Esse redirecionamento, caminhando para a restauração de elementos capitalistas deu origem às concepções propagadas hoje de “socialismo de mercado” ou “socialismo com características chinesas”.

Já nos anos 2000, as relações entre China e os países africanos passam a evoluir no sentido de reconhecimento formal da China continental e início de parcerias econômicas. Com a fundação do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC), são estabelecidos os nortes das parcerias estratégicas adotas pela China a partir do momento de retorno às relações internacionais com o sul global. 

O desenvolvimento das relações econômicas fica evidente no fato dos investimentos terem passaram de US$ 500 milhões em 2003 para US$ 22,9 bilhões em 2012. Além disso, o caráter dessas parcerias é claramente voltado para o desenvolvimento interno chinês, onde os principais recursos buscados são fontes energéticas como petróleo. Não à toa Angola, Nigéria e Líbia (primeiro, segundo e terceiro maiores produtores de petróleo no continente africano), foram as principais parcerias estabelecidas. 

A Nigéria é um caso específico de como o desenvolvimento capitalista em África está em curso acelerado. Com os conflitos iniciados na década de 1960 no país, que passou por uma brutal guerra civil, a burguesia forjada na indústria do petróleo passou a monopolizar o que pôde no país sendo sócia menor na cadeia imperialista. O avanço da financeirização fez com que instituições nigerianas, também ligadas ao petróleo, se expandissem concretamente para países como Costa do Marfim, Senegal, Níger, entre outros, através da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e outros organismos regionais. Ao mesmo tempo a Nigéria perdeu US$ 467 bilhões entre 1970 e 2018 por meio da fuga de capitais, promovida pela aquisição ou transferência ilegal de ativos por empresas transnacionais. A mesma coisa ocorre com Angola e Costa do Marfim, que perderam respectivamente 103 bilhões e 55 bilhões de dólares no mesmo período. No último caso, a Costa do Marfim lidera a produção de Cacau, com 2,18 milhões de toneladas produzidas em 2022, mas recebe apenas de 5 a 7% dos lucros. [8]

O grau de soberania política africana foi sendo cedido conforme as burguesias locais passaram a estruturar sua posição na cadeia de valores e reivindicar maiores ganhos. Com a alternativa chinesa aos investimentos, a dependência do capital ocidental passa a ser cada vez menor, mesmo que ainda muito relevante. Disso surge um grande erro de análise das políticas chinesas em África, que é o entendimento de que a libertação da dependência europeia ou estadunidense represente um avanço “progressista”. 

A despeito de quaisquer fúteis significados morais que a palavra “progressista” adquiriu hoje, como algo positivo e desejável, pode-se considerar que a presença chinesa em África é progressista, mas no sentido de que trabalha guiada pelo favorecimento do desenvolvimento capitalista no continente. O colonialismo, como afirmado anteriormente apoiado na análise de Rodney, impediu o desenvolvimento africano através da imposição do comércio escravista e estagnação do avanço tecnológico, somadas as influências culturais impelidas pelas relações sociais. 

Contudo, e aí a questão se torna mais complexa, por mais que a relação da China com os países seja buscando um benefício mútuo – na terminologia contratual clássica burguesa – e seja apoiada numa diplomacia que tem histórico de oposição ao jugo colonial e imperialista, a relação estabelecida é, invariavelmente, caracterizada como imperialista

Alguns pontos são relevantes para essa caracterização. Em primeiro lugar, não há transferência tecnológica real em nenhuma relação estabelecida. Isso pode ser exemplificada na recente construção da Linha Férrea de Bitola Padrão (SGR) no Quênia [9]. Parte da Belt and Road Initiative (BRI), um plano estratégico da China para integração comercial através do investimento em infraestrutura em diversos países do globo, a ferrovia foi construída pelas empreiteiras China Road & Bridge Corportation e China Communications Construction Company foi designada para operar a ferrovia por 5 anos, tendo mais de 500 quilômetros e indo de Mombaça até Nairóbi na primeira fase, com a pretensão de ligação com ferrovias em Uganda, República Democrática do Congo (RDA), Ruanda, Burundi e Etiópia.

O projeto de integração das ferrovias. Partindo de Mombasa até Nairobi, capital queniana, a primeira fase de implementação. De Nairobi à Rongai, Kisumu e Malaba, integrando as ferrovias ugandenses a segunda fase de implementação.

A construção traz inúmeras questões. O gargalo infraestrutural no continente africano remonta o histórico do colonialismo, uma vez que as metrópoles direcionaram a construção de ferroviais, estradas, portos, hospitais e outros serviços nas áreas lucrativas das colônias e, portanto, os locais isolados no continente são, ainda hoje, uma problemática enfrentada. Um dos casos que ilustra esse panorama talvez seja a construção da ferrovia que ia de Matadi a Stanley Pool, no Congo-Kinshasa, no início do século XX. Construída a mando de Leopoldo II, rei da Bélgica, levou a morte de centenas de congoleses, chineses e caribenhos, devido as gigantes irregularidades do terreno, para a entrega de 388km de malha ferroviária, num trecho de trânsito de mercadorias e, portanto, do lucro dos colonialistas. 

Como dito anteriormente, o continente africano não está imune a luta de classes. A burguesia queniana, que aliás cresce no setor financeiro participando ativamente da extração de minérios na RDC, está satisfeita com a construção da SGR porque representa uma política de ganhos. Com a ferrovia instalada, os serviços ao redor dos locais de coleta irão certamente ter lucro, bem como a especulação imobiliária atuará no encarecimento dos terrenos. O comércio queniano, assim, encontra novas possibilidades na integração com outras regiões. Isso é um avanço para o Quênia se levarmos em consideração o genocídio perpetrado pela Inglaterra, o Massacre dos Mau-Mau e os campos de concentração mantidos pelo imperialismo britânico. No campo da política externa burguesa entre Estados, a China estabelece em África relações diplomáticas plenamente legitimadas pelo direito internacional com outro Estado soberano. Mas isso não deixa de representar uma relação capitalista e imperialista. 

A construção da ferrovia no Quênia, num primeiro momento, gerou diversos empregos em numerosos ramos da economia. No entanto, grande parte destes empregos são temporários e, em relação a administração da ferrovia, quem ocupa os cargos são, na maioria, chineses. Isso por duas razões, em primeiro lugar a barreira linguística e em segunda a ausência de formação técnica dos quenianos. Frente a isso e com evidente indignação da população, foi oferecida a formação para quenianos, que podem ir à China estudar e compor os cargos nas empresas de administração. Este número, contudo, é limitado. 

Apesar de alegar não oferecer contratos com contrapartida, a China estabelece em quase todas negociações em solo africano a condicionante da presença de chineses na administração das construções e importação de mercadorias chinesas para criar a demanda para suas cadeias produtivas. São fatos que podem ser exemplificados na análise de contratos de empréstimo para construção em Angola, onde 70% do montante de US$ 2 bilhões devem ser subcontratados com firmas chinesas. [10]

Em termos gerais, mas contemplando o exemplo do Quênia, chegamos a algumas ponderações. A construção das ferroviais, portos, estradas e outros serviços incluídos no BRI contemplam interesses essencialmente chineses. Beneficiando as burguesias africanas e setores médios da população, não contemplam as necessidades de integração dos países e do continente, marcados pelo isolamento e pelo trabalho forçado na construção de uma infraestrutura que obedece aos interesses estrangeiros. Longe de ser a integração regional imaginada por Nkrumah e outros pan-africanistas marxistas, a ligação das ferroviais é um projeto capitalista de fomento da lógica do mercado. 

A China, neste movimento, está exportando capitais, seguindo a tendência do atual rearranjo imperialista da economia global. Isso fica evidente comparando o empreendimento da TAZARA e da SGR, a primeira seguindo uma necessidade da Zâmbia frente ao conflito com o regime do apartheid e dado seu isolamento no centro do continente (num período onde a China não tinha ainda grandes monopólios consolidados que estivessem presentes em todo planeta, e não fazia frente com os monopólios estadunidenses e europeus) e o segundo buscando a integração com outras ferroviais que servirão, no futuro, para escoar os recursos naturais, extraídos principalmente da República Democrática do Congo (RDC), lapidando sua influência na região através das relações com as burguesias locais. 

Aliás, não é de hoje que a RDC representa o grande foco global de extração de recursos naturais, que somam, em estimativas, o valor de aproximadamente 24 trilhões de dólares. Em O fantasma do Rei Leopoldo, Adam Hoschschild expõe as condições que os africanos enfrentavam na mineração:

“Depois da guerra houve um crescimento nas atividades de mineração de cobre, ouro e estanho. Como sempre, os lucros deixavam imediatamente o território. Os administradores das minas tinham permissão legal de usar o chicote, e nas minas de ouro de Moto, no alto rio Uele, os registros mostram que foram administradas 26.579 chibatadas só na primeira metade de 1920. Um número equivalente a oito chibatadas para cada trabalhador africano. [...]

Assim como em outras partes da África, as condições de segurança nas minas eram péssimas: nas minas de cobre e fundições de Katanga, 5 mil trabalhadores morreram entre 1911 e 1918.” [11]

O trabalho forçado foi via de regra tanto nesse período quanto no anterior, quando o Congo ainda era propriedade exclusiva do Rei Leopoldo II. Com a administração passando para as mãos do governo Belga, tudo tendeu a pior, criando condições absurdas. Em 1940, com a guerra entre as potências imperialistas, as brutalidades se intensificaram: 

“Com o início da Segunda Guerra Mundial, o limite máximo legal para o trabalho forçado no Congo foi aumentado para 120 dias por ano para cada homem. Mais de 80% do urânio usado nas bombas de Hiroshima e Nagasaki vieram da superprotegida mina de Shinkolobwe, no Congo.” [12]

A conjuntura congolesa após a independência criou as condições perfeitas para que as potências imperialistas trilhassem um caminho de cooperação na extração de recursos. A morte de Lumumba, estopim para um conflito interno sem precedentes, legou duas guerras que contaram com o envolvimento de diversos Estados africanos. Rodney, criticando a postura das supostas lideranças “pan-africanas”, comentou à época:

“As massas da África estavam ansiosas demais para se juntar a seus irmãos congoleses na luta contra os mercenários brancos e negros. De fato, as linhas foram traçadas com tanta clareza que a solidariedade revolucionária internacional surgiu de muitas partes do mundo. No entanto, o continente sofreu um revés no Congo. Os assuntos no Congo foram “normalizados” a ponto de mudar o nome do país para o Zaire. Enquanto isso, um dos princípios mais importantes aceitos pelos governos africanos na esteira da derrota dos congoleses foi que nenhum movimento dissidente popular em um país africano independente pode ser apoiado por qualquer grupo ou governo em outro país africano independente. Em termos constitucionais, isso é expresso na frase que soa bem a “não-interferência nos assuntos internos de um estado-membro”. Em termos práticos, é assim que os elementos mais reacionários da pequena burguesia atam as mãos das massas da África.” [13]

Quando Mobutu toma o poder no Congo, o que se seguiu foi a completa desmobilização do exército nacional, temendo que este rivalizasse com sua liderança. Foram fechados diversos centros de treinamento e os cargos foram ocupados por pessoas de sua confiança, também diminuindo o efetivo. Isso fez com que, a longo prazo, o Estado congolês fosse incapaz de enfrentar as forças insurgentes financiadas pelo imperialismo e outros poderes locais, promovendo a especialização na repressão interna. Dito isso, as guerras no Congo durante toda segunda metade do século XX, principalmente nos anos 1990, foram marcadas por focos de poder encabeçados por senhores da guerra e forças da ONU, que passou a intervir de forma incisiva após a morte de Lumumba.

Diante do exposto, o Estado no Congo ao longo dos anos perdeu a capacidade coercitiva e a unidade foi sendo completamente deteriorada. A institucionalização das rivalidades étnicas, promovida pelos belgas e Leopoldo II, como forma de favorecer a exploração, gerou uma estrutura hierárquica que pautou os conflitos nas diversas províncias. Nesse sentido, a província de Alto Catanga (Haut-Katanga), que concentra grande parte dos recursos minerais no Congo, foi o epicentro dos conflitos, com Moïse Tshombe ascendendo como líder do grupo separatista e principal exemplo de uma elite congolesa.

Hoje, após os conflitos que perduraram até o início dos anos 2000, produzindo ao menos 6 milhões de mortes, entre combatentes, vítimas da fome e de doenças, a RDC ainda enfrenta consequências, entre elas conflitos internos, com o exemplo das forças rebeldes do Movimento 23 de Março (M23) que, financiado por forças ruandesas, tem o controle de regiões na província de Kivu do Norte. 

A RDC possui a maior reserva de Cobalto do mundo (cerca de 60% das reservas mundiais) e a China lidera a produção do mineral refinado. O cobalto é usado em ligas metálicas presentes em peças de maquinário industrial e espacial, além de estar nas baterias de íon-lítio, essencial na produção dos carros elétricos. As maiores reservas se encontram justamente na província de Catanga. Paralelamente, a RDC também possui as maiores reservas de Coltan (cerca de 80% das reservas mundiais), a combinação de columbita e tantalita. Deste último se extrai o tântalo, que é usado em diversos aparelhos eletrônicos. Daí é fácil imaginar o interesse dos grandes monopólios da tecnologia na RDC. Apple e Samsung são recorrentemente acusadas de adquirir estes minérios a partir dos mercados paralelos, que desviam os recursos até as fronteiras de Ruanda e Burundi, contribuindo para o aprofundamento da miséria na fuga de capitais. A mineração encabeçada pelas empresas chinesas, todavia, não fogem da mesma lógica de perpetuação da exploração. 

A China controla, hoje, 70% dos contratos de mineração na RDC. Entre os investidores chineses no país, está a Tenke Fugurume Mining. Esta empresa, fundada nos anos 2000, deu continuidade ao projeto de mineração local que ocorria desde o século XIX com a empresa belga Union Minière du Haut-Katanga (UMHK). Em 2017, a estatal chinesa China Molybdenum Co. se tornou sócia majoritária e em 2019 adquiriu 80% da empresa, uma das maiores produtoras de cobre e cobalto da RDC. Tendo isso em vista, é relevante destacar que os royalties pagos à RDC pela mineração giram em torno de 2.5%, enquanto na África do Sul, por exemplo, é de 5 a 7% [14]. Nos últimos anos o governo congolês tenta renegociar os contratos, mas fato é que a China, não inocentemente, é a maior beneficiada pela estrutura de exploração continuada da RDC, construída desde o período colonial. 

A mesma China Molybdenum Co., está presente no Brasil, atuando na mineração de nióbio e fosfatos, que são usados na fabricação de fertilizantes, invariavelmente parte essencial do agronegócio, de onde surge a soja exportada para China e outros países centrais. Como podem ver, a conexão entre a exploração no continente africano e no Brasil com a posição imperialista da China é mais latente do que o senso comum faz parecer. 

Como os minérios são de grande valia para o desenvolvimento chinês, a maior parte dos projetos de infraestrutura negociados com diversos países do continente seguem interesses próprios. Um exemplo disso é que a RDC é a terceira maior transportadora de mercadorias no porto de Mombaça, ponto de partida da SGR instalada no Quênia, que desemboca nas ferrovias de Uganda, com a pretensão futura de se ligar a malha ferroviária da RDC. 

Dito isso, as construções financiadas pela BRI, a facilitação do acesso ao crédito, os juros baixos, o perdão de dívidas e outros elementos da relação econômica chinesa em África configuram uma relação imperialista, que pode ser resumida pela constatação de 1) Exportação de capitais; 2) Ausência de transferência tecnológica; 3) Presença crescente dos monopólios chineses no mercado africano; 4) Subversão das política de desenvolvimento locais em seu próprio interesse; 5) Superexploração da força de trabalho africana; 6) Extração de recursos e fuga de capitais; e 7) Presença crescente de instituições financeiras chinesas em África. Não por coincidência, são aspectos cada vez mais visíveis na relação entre a América Latina e a China.

Conclusão

O avanço do capitalismo pós-queda da URSS demonstra com profunda clareza que este continua entrando em suas crises cíclicas e que as contradições continuam sendo agudizadas. A crise climática e a cada vez mais latente financeirização dão ares de que não há fim para o quanto o sistema pode tirar da classe trabalhadora. Estar a par desse sistema e conseguir realizar as análises políticas e econômicas corretamente, “adivinhando” a conjuntura num exercício constante é decisivo para construir as estratégias e as táticas do partido da classe, fazendo avançar a construção da revolução. Uma análise justa sobre a China passa pelo desapego das vontades pessoais e das abstrações infundadas, pela apropriação do método e distanciamento constante dos ecletismos e das tentativas de conciliar posições antagônicas, esforços estes que são fruto da ideologia burguesa. 

Por que o estudo do continente africano é relevante na análise geral do imperialismo? Para além da centralidade do colonialismo na acumulação primitiva de capital, tema abordado, como bem colocou Rodney, de modo marginal na literatura marxista, a extração de recursos e as cadeias de valor cada vez mais se centram no continente africano. Além disso, a centralidade de África na análise é uma escolha política, contra um marxismo ocidental que ignora esse aspecto nas análises gerais. No caso do Brasil, esse escanteamento do continente africano significa a negação e a negligência a nossa própria realidade. Um país forjado no colonialismo e possuindo uma maioria negra em sua população não pode se furtar de estabelecer conexões com o continente africano. Essa conexão muitas vezes é turva na perspectiva de certos militantes tanto por desconhecerem a realidade quanto por uma questão de raça, classe e gênero. Um ambiente universitário moldado pelas mãos europeias e revestido com a ciência burguesa certamente não irá favorecer as brechas necessárias para o surgimento de intelectuais orgânicos capazes de apreender não só aspectos do nosso povo, mas o próprio método marxista no seu caráter emancipatório, como ferramenta de luta dos condenados da terra. 

Evidentemente nem todo imperialista possui a honestidade de Cecil Rhodes, o grande representante do imperialismo na África Austral que não escondia suas intenções racistas na exploração do continente. A Unilever, por exemplo, foi uma das principais marcas que emergiu do colonialismo e apoiou a escravidão e o trabalho forçado. Hoje é normalizada e se infiltrou no mercado brasileiro de forma extensa. A China, diferente desses setores capitalistas emergentes do período inicial da acumulação de capital, passou por um processo revolucionário e períodos de luta interna intensos entre alas do marxismo-leninismo. Porém, os comunistas saíram derrotados. A abertura econômica e o avanço do capitalismo, mais do que representação de um suposto socialismo de mercado, com características chinesas ou grande exemplo de como a China parou de sonhar e passou a trabalhar com a realidade concreta, é a falência dos grandes princípios do marxismo. A China caminha pelas vias do desenvolvimento capitalista, mas não só. Promoveu a desestruturação da linha revolucionária e através do oportunismo e da desonestidade seguiu uma linha muito específica, que não deixa de ser a linha seguida por todos os renegados do marxismo.


Referências:

[1] Lenin em Imperialismo, estágio superior do capitalismo (pg. 114, Boitempo Editorial) 

[2] Walter Rodney em Como a Europa Subdesenvolvou a África (pg. 326, Boitempo Editorial)

[3] Basil Davidson em Revelando a Velha África 

[4] Walter Rodney em Como a Europa Subdesenvolvou a África (pg. 113, Boitempo Editorial)

[5] Frantz Fanon em Por uma Revolução Africana (pg. 181-182, Editora Zahar)

[6] Walter Rodney em Aspectos da Luta de Classes Internacional na África, Caribe e América. Disponível em https://traduagindo.com/2019/07/11/aspectos-da-luta-de-classes-internacional-na-africa-caribe-e-ameriica/

[7] Kwame Nkrumah em A Luta de Classes em África. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/nkrumah/1970/luta/10.htm

[8] Ver As veias da África, abertas da novo. Disponível em https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/veias-da-africa-abertas-da-novo/

[9] Ver Os impactos econômicos locais das vias férreas: a Ferrovia de Bitola Padrão (sgr1) no Quênia em Revista Brasileira de Estudos Africanos | Porto Alegre | v. 8, n. 15, Jan./Jun. 2023 | p. 121-14

[10] Ver Os interesses econômicos da China na África em Boletim de Economia e Política Internacional (Bepi) nº1 

[11] Adam Hoschschild em O Fantasma do Rei Leopoldo (pg. 289)

[12] Idem 

[13] Walter Rodney em Aspectos da Luta de Classes Internacional na África, Caribe e América. Disponível em https://traduagindo.com/2019/07/11/aspectos-da-luta-de-classes-internacional-na-africa-caribe-e-ameriica/

[14] Ver A crise na República Democrática do Congo. Disponível em https://operamundi.uol.com.br/opiniao/a-crise-na-republica-democratica-do-congo/