Promessa eleitoral de Lula, regulamentação do trabalho por apps não resiste à conciliação de classes

Com o PLC, governo federal rebaixa sua promessa de criação de diferentes categorias de trabalho para motoristas - dentre as quais estava previsto vínculo empregatício por CLT -, e nega ao segmento proteções trabalhistas básicas.

Promessa eleitoral de Lula, regulamentação do trabalho por apps não resiste à conciliação de classes
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Por Redação

Lula III assina Projeto de Lei Complementar (PLC) que cria nova categoria de trabalho destinada aos trabalhadores de aplicativo de transporte de pessoas por veículos de quatro rodas. Na prática, a medida inibe vínculo trabalhista e restringe direitos plenos. Com o PLC, governo federal rebaixa sua promessa de criação de diferentes categorias de trabalho para motoristas — dentre as quais estava previsto o vínculo empregatício por CLT —, e nega ao segmento proteções trabalhistas como descanso semanal remunerado, férias, atuação em ambiente salubre, aviso prévio, licença-maternidade e paternidade, o 13º salário, proteção contra demissão sem justa causa, o seguro-desemprego e o depósito do FGTS, dentre outros direitos básicos. Trabalhadores por aplicativos de entrega seguem à espera de projeto de regulamentação do seu trabalho, e aceno do governo não é de ouvir ou atender as reivindicações da categoria.

O PLC de Lula limita a jornada máxima de trabalho diário em uma única plataforma em 12 horas, e institui piso salarial nacional de R$32,10 por hora de trabalho para aqueles com ao menos 8 horas de serviços prestados por dia, mas sem contabilizar o tempo de espera das viagens. Deste modo, o projeto mantém uma baixa remuneração aos motoristas em troca de direitos escassos: uma contribuição previdenciária enquanto contribuinte individual de 7,5% — a empresa arcará com outros 20% —, e a garantia de motoristas mulheres ao Auxílio-Maternidade do INSS, além de pleitear a formação do sindicato dos motoristas por aplicativo que, caso prossiga, será um dos maiores do país em representatividade laboral.

A PERSPECTIVA DOS TRABALHADORES FRENTE AO GOVERNO FEDERAL

Os meses de março e abril foram marcados por manifestações de motoristas de aplicativo, visto que suas demandas fundamentais sequer foram apreciadas para a construção do projeto. Questões como o aumento do rendimento, repartição de custos e maior controle sob sua dinâmica de trabalho — já que as empresas como a Uber têm um poder de punição arbitrário e que desconhece a ampla defesa — foram apresentadas por lideranças da categoria em audiência pública realizada em 21 março de 2024 em Brasília na Câmara dos Deputados, assim como demandas por seguridade social, 13º salário, descanso semanal remunerado e proteções em caso de doença ou acidente. Para além das reivindicações, lideranças se detiveram a expor a realidade enfrentada pela categoria. Vítimas de regimes brutais de trabalho por monopólios estrangeiros no Brasil, os trabalhadores de aplicativos foram alvo da promessa do governo ainda em 2023, quando Lula enviou seu Ministro do Trabalho, Luiz Marinho, a declarar que o PLC que regulamenta o tema seria apresentado ao Congresso mesmo sem acordo nas negociações com as empresas detentoras das plataformas[1]. Na prática, porém, o Projeto de Lei Complementar vai ao encontro dos interesses das empresas estrangeiras e, por isto, foi alvo de duras críticas da categoria.

Representantes de associações de motoristas e suas lideranças expuseram frente aos deputados federais o fato de que o projeto sequer garantia um rendimento mínimo aceitável, além de manter os motoristas enquanto únicos responsáveis pelos custos de manutenção e conserto de seus automóveis e tendo de arcar com a variação do preço dos combustíveis de maneira unilateral. Além disso, até a contribuição previdenciária da maneira como consta no projeto foi alvo de rechaço, já que os trabalhadores e trabalhadoras não terão direitos trabalhistas plenos e o caminho já indicado pelas empresas é o de repassar os custos sempre aos motoristas, o que faria os 20% de contribuição previdenciária pagos pela empresa serem novamente repassados, achatando os já baixos rendimentos dos motoristas.

Os trabalhadores foram também alvo de uma disputa ideológica acirrada durante todo o processo de preparação do projeto de lei complementar por parte da direita organizada no Congresso e fora dele. Diversos deputados e chefes de bancadas de partidos reacionários, dentre eles o PL, capitalizaram as críticas ao governo com objetivo de direcionar essa insatisfação à toda forma de regulamentação da legislação trabalhista. Nesta perspectiva, foram expressas noções que taxavam a CLT enquanto um “instrumento fossilizado” que amarrava o trabalhador a uma dinâmica de trabalho que não atendia às suas expectativas. Entretanto, todas as lideranças da categoria se pronunciaram na defesa de mais direitos e ovacionaram falas que tocavam em pontos como adicional de insalubridade, 13º salário, férias e descanso semanal remunerado, ainda que tenham como questão importante a flexibilidade para escolher quando e onde trabalhar.

Para além da baixa remuneração, a categoria apresenta extrema desconfiança com o método de pagamento fixado pelo PLC do governo federal, já que se estabelece o formato de horas trabalhadas sem a contagem do tempo entre as viagens. Isto jogaria os trabalhadores em uma insegurança econômica à mercê da demanda pelas corridas. E mais, com um piso estabelecido, as horas trabalhadas sem adicional noturno ou de insalubridade faria os motoristas receberem a mesma quantia por trabalhos realizados em períodos de baixa demanda, e portanto menores preços, quando comparados a períodos de alta demanda, como o período noturno e o início da madrugada, momento em que a periculosidade do trabalho do motorista por aplicativo cresce exponencialmente sobretudo nas grandes metrópoles. Diante destes argumentos, a categoria de motoristas por aplicativo propôs alterações ao projeto vinculando o critério de horas trabalhadas ao critério de quilometragem, a depender do que for mais vantajoso para o motorista, além de acrescentar à remuneração final os adicionais que os aplicativos usualmente utilizam para aumentar os valores das corridas em circunstâncias especiais.

Presidida pelo deputado federal Glauber Braga, por fim foi firmado um acordo entre o presidente da sessão e a categoria de que se solicitasse ao Executivo Nacional a retirada do caráter de urgência deste PLC, além do pedido ao presidente da Câmara dos Deputados que não se iniciasse a votação do projeto sem maior debate para melhorar qualquer medida que vise regulamentar o trabalho por aplicativo. Caso aprovado desta forma, a legislação trabalhista colocaria os motoristas em situação de vulnerabilidade econômica e sem garantia de direitos básicos para além do Auxílio-Maternidade para motoristas que gestarem filhos. O apelo geral da categoria é de buscar mais diálogos para fazer valer seus interesses frente às gigantes tecnológicas que tanto exploram seu trabalho, sobretudo desde o período da pandemia.

Reprodução: Fábio Rodrigues-Pozzebom / Agência Brasil

A POSIÇÃO DO GOVERNO FRENTE AOS TRABALHADORES E AS EMPRESAS

Vencida a eleição de 2022, o governo federal instituiu no dia 1º de Maio de 2023 um Grupo de Trabalho (GT) de 45 membros, sendo eles 15 do governo federal, 15 integrantes das centrais sindicais e representantes da categoria de trabalhadores por aplicativo e mais 15 representantes das empresas. O objetivo do GT, segundo o Ministro do Trabalho Luiz Marinho, era de “elaborar proposta de regulamentação das atividades de prestação de serviços, transporte de bens, transporte de pessoas e outras atividades executadas por intermédio de plataformas tecnológicas”. Se havia a perspectiva inicial de unificar a regulamentação, as divergências e os diferentes graus de articulação e organização dos motoristas e entregadores fez com que se separasse os projetos de lei, dividindo desde o início a luta conjunta dos trabalhadores por aplicativo no país.

Se durante a preparação do projeto o governo federal dava declarações de que uma regulamentação do serviço de aplicativos entraria em vigor mesmo sem o acordo por parte das empresas como Uber e Ifood, na prática, o PLC atende às principais exigências das plataformas. Ainda assim, isso não impediu o presidente Lula a declarar que o projeto seria um “marco no mundo do trabalho”[2]. Com a possibilidade deste projeto ser aprovado na câmara com a criação desta dinâmica laboral inédita, a Uber solicitou no mesmo dia 4 de março de 2024 em que o PLC foi apresentado e assinado pelo Presidente Lula a suspensão de todos os processos trabalhistas relativos à reivindicação de vínculo empregatício que circulam no Judiciário brasileiro. Isto pois, se a extrema direita organizada busca convencer que a CLT não corresponde aos anseios da categoria de trabalhadores por aplicativo, as empresas sabem que se seus empregados estiverem protegidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, terão mais dificuldade em expandir sua exploração sobre aqueles que proporcionam seus lucros.

A postura do governo Lula de apresentar este projeto de lei complementar denota a inabilidade que a política federal tem em apresentar uma perspectiva que corresponda às mínimas exigências de um segmento da classe trabalhadora que enfrenta uma vasta gama de humilhações diárias, vítima de uma carga brutal de trabalho em nome das remessas de lucro ao estrangeiro. E, se o projeto neoliberal do governo não é capaz de apontar uma solução factível às questões mais candentes da luta de classes entre burguesia estrangeira e os trabalhadores brasileiros jogados à informalidade pela alta do desemprego desde 2016, o campo comunista terá a tarefa histórica de apresentar essa solução por uma perspectiva revolucionária que exponha a contradição capital/trabalho e caminhe passos largos para além da dinâmica da propriedade privadas dos meios de produção.

AOS ESQUECIDOS, A LUTA

O serviço terceirizado realizado com a tecnologia de aplicativos — como Rappi, iFood, UberEats, etc — se tornou um dos trabalhos essenciais durante a pandemia. Em 2023, o Brasil já tinha 1,5 milhão de pessoas que trabalhavam por meio de plataformas digitais e aplicativos de serviços, o equivalente a 1,7% da população ocupada no setor privado.[3] Destes, 50% atuam diretamente com transporte de pessoas por veículos de quatro rodas e, por esta representação numérica da categoria em um ano eleitoral, o governo preteriu a inclusão dos trabalhadores de aplicativos de entregas de alimentos, aqueles que em geral trabalham via motocicleta ou bicicletas.

Essa massa de trabalhadores levada à precarização protagonizou o Breque dos Apps, realizando paralisações nacionais nos dias 01/07 e 25/07 de 2020, e permanece em movimento na busca da regulamentação do seu trabalho. Entretanto, os detalhes do projeto de lei voltado à categoria de entregadores por aplicativo ainda não foram divulgados pelo governo pois não foi finalizado. Isto, porém, não impediu a categoria de se organizar para atos, manifestações e, de modo mais expressivo, sintetizar suas pautas e reivindicações concretas.

Entidades representativas de entregadores de aplicativos, reunidos com lideranças de entregadores e centrais sindicais propuseram uma contraproposta ao documento redigido pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia, a Amobitec, que reúne Amazon, iFood, Uber, 99, Zé Delivery, Buser, Lalamove e Flixbus, e entregue ao governo no dia 14 de agosto de 2023, no Grupo de Trabalho tripartite. Nesta proposta inicial dos empresários, havia previsão de 10,20 reais por hora aos entregadores de motocicletas e 6,54 reais na modalidade bicicletas, sem a previsão dos demais benefícios.

Na contraproposta dos entregadores de aplicativos, consta: um piso de remuneração de R$35,76 para entregadores de motocicletas e 29,6 para entregadores de bicicleta por hora trabalhada; garantia de plano de saúde no valor de R$44,90, um seguro de vida com cobertura de 24 horas e indenização de 41 mil reais por morte ou invalidez; 3 mil reais de auxílio-funeral; o fornecimento de uma cesta básica mensal de R$83,00 e o descanso semanal remunerado de 208 reais para motos e 192 reais para bicicletas. Uma proposta mais vantajosa apresentada desde o início impediu o preparo de um projeto de lei tão rebaixado quanto o proposto pelo governo aos motoristas de aplicativo. A previsão do Executivo é que houvesse um acordo entre as partes ainda no dia 29 de agosto do ano passado.

É significativo como este setor bastante recente de jovens trabalhadores, ainda que não possuam um histórico consolidado de organização sindical e de lutas econômicas, se organiza de diversas formas e consegue pautar um projeto para sua categoria mais avançado que aquele proposto pelo governo em conluio com as empresas. Diante desta realidade, o dever dos comunistas é apresentar um horizonte socialista pois é somente em um outro projeto de sociedade que estes trabalhadores terão suas demandas plenamente acatadas.

Fazer frente aos interesses estrangeiros e transnacionalizados que hoje ditam os rumos do governo Lula III nas lutas concretas na pauta dos trabalhadores de aplicativos é condição para a disputa de um projeto emancipatório para não somente esta categoria, mas todas as categorias de trabalhadores, expondo as contradições do sistema capitalista atual. Neste entremeio, é necessário levantar a pauta da proibição de todas as formas de exploração privada da intermediação de força de trabalho por meio de “plataformas”, com a unificação de todos esses serviços em uma plataforma única e pública, sob controle dos próprios trabalhadores. Nesta perspectiva de unidade, os trabalhadores terão as condições objetivas e subjetivas para ditar os rumos de seu trabalho e de suas vidas.


[1]https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/10/09/interna_politica,1573949/regulamentacao-de-aplicativos-sera-enviada-mesmo-sem-acordo-diz-ministro.shtml

[2] https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2024/03/lula-pl-dos-motoristas-de-aplicativos-e-201cmarco-no-mundo-do-trabalho201d

[3] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38160-em-2022-1-5-milhao-de-pessoas-trabalharam-por-meio-de-aplicativos-de-servicos-no-pais#:~:text=Em%202022%2C%20o%20Brasil%20tinha,popula%C3%A7%C3%A3o%20ocupada%20no%20setor%20privado.