Sobre a liberdade de crítica e a violação da unidade de ação

E, embora não se trate aqui de avaliar o legalismo e formalismo dos argumentos do camarada, é evidente que há uma grande contradição entre uma denúncia legalista e a defesa do boicote à nossa instância deliberativa máxima.

Sobre a liberdade de crítica e a violação da unidade de ação
"Mas, além disso, o texto deflagrou também uma discussão, simultaneamente no Comitê Nacional Provisório (notificado sobre o texto pela CPN) e na Diretoria do Órgão Central: seria permissível a publicação, em nosso Órgão Central de Imprensa, de um artigo conclamando ao boicote das resoluções de nossa instância deliberativa máxima? Seria permissível um método de agitação fundado na ameaça de boicote e cisão?"
“A lógica burocrática deles não suspeita nem teme o fato de que são precisamente as lutas partidárias internas que dão força e vitalidade ao partido; que a maior prova da fraqueza de um partido é a sua dispersão e a indefinição de demarcações claras; e que um partido se torna mais forte depurando-se.”

Carta de Lassalle a Marx, 24 de junho de 1852. Citado por Lênin em Uma conversa com defensores do economicismo.
“Naturalmente, a aplicação deste princípio na prática, por vezes, dará origem a controvérsias e mal-entendidos; mas somente com base neste princípio todas as controvérsias e todos os mal-entendidos podem ser decididos de maneira honrada para o Partido. [...]

O princípio do centralismo democrático e da autonomia das organizações partidárias locais implica uma liberdade universal e plena de crítica, desde que isso não perturbe a unidade de uma ação definida; exclui todas as críticas que perturbem ou dificultem a unidade de uma ação decidida pelo Partido.”

Lênin, Liberdade para criticar e unidade de ação

Ao longo do segundo semestre de 2023, em nossos esforços pela Reconstrução Revolucionária do Partido Comunista Brasileiro, temos todos trabalhado incansavelmente pela efetivação de um centralismo democrático verdadeiramente leninista, que prime pela conjugação entre a unidade de ação e a liberdade de crítica. Nesse aspecto, demos um grande salto à frente, rompendo com o marasmo burocrático que caracterizou o centralismo do movimento comunista brasileiro ao longo de muitas décadas. Com nossa Tribuna de Debates, demos vazão às forças criativas e ao espírito de iniciativa da militância comunista, há muito represados.

Contudo, isso não isenta nossa Tribuna de Debates de uma série de debilidades. Muitas/os camaradas têm se manifestado criticamente quanto ao excesso de artigos abordando temas que consideram secundários, em detrimento dos debates acerca da realidade brasileira e de nossa estratégia e tática. Outro ponto negativo, sem dúvida, repousa no fato de que poucos camaradas do Comitê Nacional Provisório têm encontrado tempo para contribuir com tais debates diretamente, à luz da sobrecarga de tarefas de outra ordem.

Essas e uma série de outras questões são inevitáveis, talvez, no contexto de uma grande mudança em nossos métodos organizativos. É bastante difícil conceber que uma modificação tão brusca em nossas forma de organizar nossas divergências não viesse a produzir mal-entendidos e excessos. No entanto, acreditamos que, também nesse tocante, apenas o debate franco e aberto pode servir de baliza à solução das controvérsias, produzindo por meio da literatura comum uma compreensão cada vez mais coesa e uma crescente unidade ideológica. Este é, afinal de contas, o principal objetivo da liberdade de crítica: a formação de uma disciplina consciente, da unidade pelo convencimento, e não apenas pela autoridade. Nesse aspecto, a análise de casos particulares pode ser bastante instrutiva, se desejamos compreender o significado e os limites dessa referida liberdade de crítica - limites, segundo a concepção leninista, relativos à unidade de ação.

No dia 27/12/23, o camarada Leonardo (Silco), militante de base sob a circunscrição do Comitê Local de São Paulo, publicou na plataforma “Educação Revolucionária” um artigo, previamente endereçado à nossa Tribuna de Debates congressual, intitulado "Golpe dos Dirigentes, Delegados Natos". Este texto havia sido encaminhado menos de uma semana antes da referida publicação, e o autor já havia, antes do envio do texto, buscado engajar-se no debate sobre o tema dos delegados natos com o Comitê Nacional Provisório (CNP) por meio de correspondência eletrônica, recebendo pronta resposta, como é direito de todos os militantes.

Tomando ciência do texto, a Comissão Política Nacional encontrou de imediato uma afirmação falsa em seu conteúdo, que por si só ensejaria o diálogo com o camarada para retificação do escrito: a afirmação da existência de delegados natos para a etapa nacional de nosso Congresso. Essa informação incorreta, a partir da qual se erguem uma série de acusações contra o Comitê Nacional Provisório, já havia sido corrigida previamente, inclusive, em nossa Tribuna de Debates (vide o artigo “'Sobre a polêmica dos delegados natos de São Paulo”, de Nicolas CF.) Portanto, fazia-se necessária uma conversa com o camarada Silco a fim de elucidar a questão e solicitar a devida retificação da informação incorreta - conversa que seria solicitada logo após o Natal, levando em conta as dificuldades de agendamento no entorno do feriado. Ademais, seria necessária a revisão das palavras de baixo calão com as quais tão fartamente o camarada buscou preencher de conteúdo seu escrito - uma vez que, conforme já informado diversas vezes, a Tribuna de Debates tem como critério “a vedação à publicação de ofensas pessoais e palavrório de baixo calão” (vide, por exemplo, “Sobre a reorganização editorial das Tribunas”).

Mas, além disso, o texto deflagrou também uma discussão, simultaneamente no Comitê Nacional Provisório (notificado sobre o texto pela CPN) e na Diretoria do Órgão Central: seria permissível a publicação, em nosso Órgão Central de Imprensa, de um artigo conclamando ao boicote das resoluções de nossa instância deliberativa máxima? Seria permissível um método de agitação fundado na ameaça de boicote e cisão?

A direção do Órgão Central e do CNP debateram, com base no texto do camarada, a possível violação de um dos princípios fundamentais que orientam nossa organização política: a unidade de ação. Vale destacar que o objeto deste debate não diz respeito ao mérito das posições do camarada. Prova inegável disso é o fato de que já foram publicadas em nossa Tribuna uma série de outros escritos sobre o mesmo tema (a crítica à decisão do CR de SP acerca dos delegados natos para a respectiva etapa regional), bem como outros muitos escritos tecendo críticas à direção partidária, seja por suas decisões coletivas ou por posturas individuais.

Porém, ao incitar o boicote ao XVII Congresso Extraordinário e às deliberações tomadas pelas instâncias de direção ou pelo próprio Congresso, o camarada desrespeita os limites da liberdade de crítica, rompendo a unidade de ação daqueles que se submetem voluntariamente a uma organização baseada no centralismo democrático. Ressaltamos que o rompimento com a unidade de ação ocorreu no ponto de princípio mais fundamental, legítimo e consensual até o presente momento do funcionamento provisório de nossa organização: a necessidade da realização de um Congresso em torno de cujas resoluções possamos todos nos centralizar. Atualmente, o Movimento em Defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB (PCB-RR) tem como tarefa primordial a construção do XVII Congresso Extraordinário, e todos que se submetem às suas instâncias provisórias de direção unem-se sob um documento fundamental: o Manifesto do PCB-RR.

Avaliamos que o camarada não centra sua discussão em um conteúdo político ou programático, mas tão somente exige que sua posição seja acatada imediatamente a qualquer custo. Não há argumentação sobre possíveis desvios ou divergências com as posições e tendências políticas do PCB-RR, bem salientadas nas pré-teses em debate. O camarada ignora debates e críticas legítimas sobre delegados natos e outras questões do partido discutidas em nossas tribunas, elevando a uma posição de princípio uma questão formal do funcionamento do congresso. E, embora não se trate aqui de avaliar o legalismo e formalismo dos argumentos do camarada, é evidente que há uma grande contradição entre uma denúncia legalista e a defesa do boicote à nossa instância deliberativa máxima.

Diante dessa avaliação política, encaminhou-se uma tentativa de diálogo do Comitê Nacional Provisório com o camarada, a fim de informar que, caso desejasse a publicação de suas críticas, deveria editar o texto também a fim de abster-se de conclamar ao boicote do XVII Congresso - o que, na prática e nos termos expostos pelo camarada, equivaleria de fato a uma nova cisão. Evidentemente, não faria sentido exigir de um órgão de imprensa de um partido que veicule materiais propondo a cisão do partido, ou convidando à saída do partido. É preciso publicar toda contribuição que pretenda modificar uma situação em nossa organização por meio do convencimento. Não faz sentido publicar uma peça cuja premissa seja a impossibilidade do convencimento, o esgotamento das esperanças na mudança da situação por meio da agitação e da luta política, e que portanto apenas registre o chamado o boicote ou à evasão.

Por problemas de agenda e detalhes de condução da conversa, ela não ocorreu nos últimos cinco dias, que incluíram o período das festas de final de ano. O camarada, mais uma vez demonstrando sua pouca preocupação com a unidade de ação, optou por publicar o escrito em outra plataforma, em meio à denúncia de “censura” - sem sequer, antes disso, recorrer a qualquer via partidária para questionar a demora na publicação, seja sua célula, Comitê Local ou o próprio Órgão Central, do qual o camarada inclusive faz parte!

A conversa com o camarada visava debater de maneira franca e politizada as críticas em questão, bem como demovê-lo de convocar um boicote ao XVII Congresso sem qualquer conteúdo político-programático aparente, no intuito de sugerir o reenvio de sua tribuna com base nessas ponderações. A sua publicação por outros meios, no entanto, retirou qualquer sentido a essa mediação, uma vez que o documento agora é de conhecimento público em sua forma original. O Comitê Nacional Provisório não encontra outro meio para o desenvolvimento sadio da controvérsia em questão, portanto, senão por meio da presente publicização de suas posições.

Informamos também que, após o ocorrido, o organismo de base ao qual pertence o camarada se reuniu para debater o episódio. Excetuado o próprio militante em questão e um ausente, os demais foram unânimes a) na discordância quanto à caracterização da existência de um “golpe” em nossa organização e b) na crítica ao procedimento adotado pelo camarada, solicitando por meio de votação sua retratação pública, considerando que a nenhum militante assiste o direito de agitar pela boicote como método legítimo de luta interna; entre outras deliberações.

Ademais, no tocante aos encaminhamentos da questão, respondendo à pergunta provocativa feita pelo próprio camarada em seu escrito, é importante elucidar: a despeito da violação do centralismo democrático pelo camarada, o Comitê Nacional Provisório (e também seu organismo de base) não julga que haja qualquer vantagem para nossa organização na resolução do episódio com solicitação de uma expulsão do camarada. Ao contrário: consideramos que esse infeliz episódio pode, apesar de tudo, servir a uma finalidade pedagógica, não apenas para o camarada em particular, mas para toda nossa militância.

Com esse intuito, inclusive, veiculamos abaixo excerto de discurso pronunciado por Lênin acerca da inaceitabilidade de métodos de boicote à luz do centralismo democrático, e recomendamos o estudo sistemático das obras de Lênin a respeitos dos princípios organizativos do marxismo-leninismo.

Sessão do Conselho do POSDR (excertos)

[...] Nenhuma diferença entre os membros do Partido, nenhuma insatisfação com a composição pessoal de um ou outro organismo central pode justificar boicotes ou métodos similares de luta, que denotam uma falta de princípios e ideais e mostra que os interesses do Partido estão sendo sacrificados em prol dos interesses de um círculo, e os interesses do movimento operário estão sendo sacrificados em prol de considerações sobre cargos e postos. Ocorrem casos, claro, em nosso Partido, como sempre ocorrerão em qualquer partido grande, em que alguns membros estão insatisfeitos com alguma nuance nas atividades de um ou outro organismo central, com algumas características de sua linha, ou com sua composição pessoal etc. Tais membros podem, e devem, colocar as causas e a natureza de sua insatisfação em uma troca camarada de opiniões, ou pela controvérsia nas colunas da imprensa partidária; mas seria absolutamente impermissível e indigno de revolucionários expressarem sua insatisfação recorrendo a boicotes ou se recusando a apoiar de toda maneira possível o trabalho positivo coordenado e dirigido pelos dois organismos centrais do Partido [Comitê Central e Órgão Central]. Apoiar ambos os organismos centrais e trabalhar junto sob sua direção direta é nossa tarefa comum e evidente como membros do Partido.

Esses métodos de luta sem princípios, grosseiramente mecânicos, mencionados acima são merecedores de uma condenação total, porque eles poderiam destruir completamente todo o Partido, cuja atividade depende inteiramente da boa vontade dos revolucionários. E o Conselho do Partido lembra a todos os membros do Partido que essa boa vontade foi expressa de forma bem definida em nossa decisão comum – à qual nenhuma objeção foi feita – de considerar todas as decisões do Segundo Congresso e todas as suas eleições como obrigatórias para todos os membros do Partido. [...]” - Do livro: O centralismo democrático de Lênin.

Comitê Nacional Provisório