Poderes da República colocam os direitos indígenas em negociação

São os povos originários que que vêm sofrendo as verdadeiras perdas: direitos, terras e vidas. Assim, como um ato de recusa à forma como a negociação estava sendo conduzida, a APIB acabou abandonando a reunião.

Poderes da República colocam os direitos indígenas em negociação
Indígenas protestam durante sessão realizada no dia 28/08/2024. Foto: Tukumã Pataxó/APIB

Por Redação

No último dia 5 de agosto, ocorreu a primeira reunião da comissão de conciliação, criada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, visando negociar os direitos indígenas com a bancada ruralista. O encontro, sem exibição pela TV Justiça para o povo e com o limite imposto pelo STF de 6 representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), marcou uma nova fase na luta dos povos indígenas contra os ataques do agronegócio. Ao mesmo tempo, ruralistas se organizaram para promover mais ações violentas contra os povos indígenas.

No fim de semana anterior às negociações começarem (3 de agosto), ruralistas atacaram os indígenas da retomada Yvy Ajere, Terra Indígena Lagoa Panambi, em Douradina/MS, com munição letal e de borracha, ferindo 11 pessoas, duas gravemente. E esse não foi o único ataque, tampouco um caso isolado de violência e assédio contra povos originários. Em 14 de julho, outro indígena foi atingido na perna. Esta Terra Indígena está delimitada desde 2011, mas com a demarcação está parada e corre o risco de não ser realizada, caso a tese do Marco Temporal seja aceita.

Este trecho retomado pelo povo Guarani Kaiowá em Douradina, havia sido expropriado pelo fazendeiro Cleto Spessato. Um ruralista que assim como vários outros é apoiado pelos deputados federais Marcos Pollon e Rodolfo Nogueira, ambos do PL-MS. A Guarda Nacional foi acionada e delimitou um espaço para que os dois grupos, indígenas e ruralistas, ficassem separados. Entretanto, momentos antes do ataque, a Guarda se retirou do local sob o pretexto de patrulhar outra região.

A violência contra os indígenas em Douradina não é um caso isolado. O ano de 2023 terminou com mais de 200 indígenas assassinados brutalmente. Além disso, cerca de 670 crianças morreram de doenças evitáveis se tivessem tido assistência médica adequada. A APIB e outras organizações alertaram o STF sobre a situação e reivindicaram coerência ao Supremo com a própria decisão. Uma vez que em setembro de 2023, o próprio STF decidiu que a tese jurídica do Marco Temporal violava a Constituição Federal.

Assim, o PL 2903, que aceita a tese do Marco Temporal, deveria ter sido considerado igualmente inconstitucional. Além disso, em documento enviado também pela APIB ao presidente Lula (PT) em 16 de outubro de 2023, foi pedido o veto total do PL 2903, projeto criado para transformar em lei o Marco Temporal e respaldar completamente o genocídio indígena feito pela burguesia do agronegócio, que vê nas Terras Indígenas (TI) local fértil e estratégico para a expansão da fronteira agropecuária, a exploração do meio-ambiente e de trabalhadores.

Em 20 de Outubro de 2023, data limite para interferir, o Presidente Lula, em um gesto de traição às bases populares que o elegeram, vetou parcialmente o PL 2903. Os pontos vetados foram: “o artigo que fixava a tese do marco temporal em 05 de outubro de 1988; a flexibilização da política de não contato com povos isolados e de recente contato; da retomada de áreas indígenas reservadas em caso de ‘perdas de traços culturais’ da previsão de instalação de postos, bases e equipamentos públicos sem consulta prévia, livre e informada à comunidade indígena afetada; a permissão de cultivo de transgênicos em terras indígenas; e a celebração de contratos entre indígenas e não indígenas para exploração de atividades agrossilvopastoris”.

Em contrapartida foram sancionados três trechos: o Artigo 5º, que propõe a participação de estados e municípios nas demarcações, o que pode fazer o processo demorar mais; o Artigo 26º que regulamenta uma suposta cooperação entre indígenas e não indígenas para a exploração econômica da região, fato que dá brecha para o assédio por terceiros sobre as TIs; e o Artigo 20º que dispõe que o direito de usufruto não deve estar acima da política de defesa e soberania nacional. Sabendo da posição dos militares brasileiros sobre o tema da demarcação, esse último Artigo desencadeia uma preocupação nas organizações de defesa dos direitos dos povos originários.

Na reunião, o advogado da APIB, Maurício Terena, pediu para o ministro uma liminar que suspendesse imediatamente os efeitos da lei. Porém, o ministro Gilmar Mendes, conhecido publicamente por ser contra os direitos dos povos indígenas, não deu nenhuma resposta e ainda sugeriu um novo olhar para a tese do Marco Temporal, propondo a negociação com a bancada ruralista. Com isso, a organização protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) solicitando a declaração de inconstitucionalidade da lei e a suspensão das negociações até uma decisão do STF.

Mesmo assim, nada disso teve algum efeito, pois os falsos esforços do Governo Lula-Alckmin não impediram a derrubada do veto parcial e a aprovação na íntegra da nova Lei do Genocídio Indígena (14.701/2023), pelo Congresso Nacional. E, uma semana após a decisão do STF sobre a inconstitucionalidade da tese do Marco Temporal, o senador Hiran Gonçalves (PP-RR), que era base do governo Bolsonaro e hoje compõe a base governista, criou a PEC 48/2023 que pretende colocar a tese do Marco Temporal na Carta Magna, o que a tornaria constitucional.

A pressa em discutir a PEC reflete os interesses escusos do grande número de congressistas, principalmente os vinculados à Frente Parlamentar de Agricultura (FPA). Bem como os da base bolsonarista, pois tais interesses não se limitam apenas ao agro, mas se estendem para a mineração e extração de madeira, uma vez que o território pega parte das regiões Centro-oeste, Sudeste, Norte e Nordeste. Áreas ricas em minérios como: ouro, prata, cobre, lítio, nióbio, silício e estanho, e também em gás natural e petróleo. É uma região em disputa constante que abriga cerca de 37 mil indígenas em 6 TIs, lar dos povos Ingarikó, Patamona, Taurepang, Wapixana, entre outros.

Os ruralistas exigiam que a lei genocida fosse cumprida e argumentaram que não deveriam pagar por uma decisão do governo, bem como exigiam uma indenização pela perda das terras. E ainda mantém um discurso cínico dizendo que estão buscando um acordo que seja satisfatório para ambas as partes. Todavia, são os povos originários que que vêm sofrendo as verdadeiras perdas: direitos, terras e vidas. Assim, como um ato de recusa à forma como a negociação estava sendo conduzida, a APIB acabou abandonando a reunião.

Como um governo que se diz preocupado com a segurança dos povos originários, bem como com a defesa de seus direitos se comporta de maneira tão passiva e até mesmo permissiva em relação às violências que esses grupos vêm sofrendo de maneira mais incisiva? Formas de violência que se concretizam não apenas nos ataques, mas também na omissão do poder público, na morosidade das regulamentações e das desintrusões do garimpo ilegal. Na insuficiência do debate público, que agora o STF tenta restringir aos gabinetes. É importante pontuar que a luta dos povos indígenas transcende a simples posse da terra. É uma luta pelo direito de existir no mundo.

Os povos indígenas estavam espalhados por todo território nacional muito antes de 1988, cultivaram e preservaram essas terras por muito tempo. No entanto, continuam lutando para defender o seu direito de existência. Mesmo sob um governo que diz se preocupar com a defesa dos povos originários e com a preservação da natureza.