Editorial: Os 102 anos do Movimento Comunista Brasileiro

Há 102 anos, sem exceção, no dia 25 de março, os comunistas brasileiros comemoram o aniversário de fundação do Partido Comunista no Brasil, mais avançado instrumento de luta do proletariado brasileiro pelo socialismo-comunismo e por sua emancipação de todas as opressões.

Editorial: Os 102 anos do Movimento Comunista Brasileiro

Há 102 anos, sem exceção, no dia 25 de março, os comunistas brasileiros comemoram o aniversário de fundação do Partido Comunista no Brasil, mais avançado instrumento de luta do proletariado brasileiro pelo socialismo-comunismo e por sua emancipação de todas as opressões.

Neste dia 25 de março, o primeiro após mais uma dura cisão do PCB, feita com a intenção de impedir o aprofundamento de sua reconstrução revolucionária, contribuímos com a memória de nosso movimento, nossos heróis e nossos mártires, compreendendo que somente um aprofundado balanço de nossa história nos permitirá continuar e concluir a tarefa histórica com a qual somos confrontados: a revolução brasileira.

A luta histórica da classe trabalhadora no Brasil

O desenvolvimento particular do capitalismo no Brasil, desde seu início, levou ao confronto das distintas classes e camadas trabalhadoras da sociedade contra seus exploradores.

A luta do proletariado revolucionário é a continuação direta das lutas que empreenderam os trabalhadores escravizados, povos oprimidos e da pequena-burguesia urbana contra a dominação colonial portuguesa, contra o latifúndio e o Estado monárquico-burguês que se conformou após a independência.

Porém, somente com a formação do início de nossa indústria e, especialmente, seu desenvolvimento com o andamento da Primeira Guerra Mundial, conforma-se um proletariado suficientemente desenvolvido para iniciar suas lutas, culminando com um salto de qualidade na greve geral de São Paulo, em 1917. Esse proletariado, ainda imaturo e pouco experimentado, era fortemente influenciado por tendências pequeno-burguesas, em especial o anarcossindicalismo.

Essa influência ideológica passou a ser, paulatinamente, quebrada com o poderoso impulso da Revolução Russa de Outubro de 1917, que, mesmo com grande dificuldade de comunicação, espalhou o leninismo ao mundo, especialmente após a fundação da Internacional Comunista. Guiado pelo farol da ditadura do proletariado na União Soviética, os elementos mais avançados do proletariado brasileiro passaram a se apropriar, ainda que de forma débil, dos princípios do leninismo, da necessidade do Partido Comunista como vanguarda da classe trabalhadora e da tomada do poder político do Estado para a construção do socialismo-comunismo enquanto horizonte estratégico.

Em 25 de março de 1922 esses elementos proletários se encontraram em uma pequena residência em Niterói para fundar o Partido Comunista que conduziria, sem trégua, a luta da classe trabalhadora no Brasil durante o próximo século. Eram ainda poucos (9 delegados representando menos de 100 comunistas em todo o país), mas condensavam as franjas mais conscientes da classe e traziam como bagagem toda a luta da classe trabalhadora brasileira, levantando as bandeiras de Zumbi, de Palmares, dos povos indígenas, da Cabanagem, da Greve de 1917, entre outros, bem como levando a experiência da pequena organização proletária que já surgia com os sindicatos revolucionários e, especialmente, conduzidos pelo farol da Internacional Comunista e da admiração profunda ao proletariado soviético e às lições do Partido Bolchevique na conquista e manutenção do poder político.

Foi essa combinação de fatores que permitiu que o Partido Comunista, mesmo não sendo profundamente numeroso ou versado no leninismo à época, continuasse suas atividades nas mais adversas condições de clandestinidade e perseguições.

Os primeiros anos da construção do Partido Comunista

Após a fundação, nosso Partido Comunista ainda demorou muito a consolidar-se. Os primeiros dez anos de sua construção foram anos de luta ideológica contra os resquícios anarquistas e reformistas, de tentativa de construção de uma base teórico-política sólida e de uma leitura marxista da formação social brasileira, o que se fez em termos débeis e fragilizados pelas dificuldades de comunicação, nacional e internacional, pela artesanalidade do trabalho e pela ainda frágil organização do próprio proletariado brasileiro, pouquíssimo destacado das outras camadas trabalhadoras e ainda disperso e confuso em um país de desenvolvimento econômico complexo e contraditório.

Sob a condução de Astrojildo Pereira, Secretário-Geral do Partido, e Octávio Brandão, membro da Executiva Nacional, os comunistas conseguiram sair de umas poucas dezenas para um Partido centralizado nacionalmente, com mais de mil trabalhadores organizados, um Órgão Central consolidado (A Classe Operária) e um jornal diário de boa circulação (A Nação), além de uma organização de Juventude, dirigida por Leôncio Basbaum, com crescente influência entre os jovens trabalhadores.

Ainda na década de 20, o Partido elegeu os dois primeiros vereadores (intendentes) comunistas do país, Octávio Brandão e Minervino de Oliveira, bem como lançou este último, em 1930, como o primeiro candidato negro à presidência da República. Começaram a iniciar um trabalho de consolidação e unificação do proletariado brasileiro a partir do Bloco Operário e Camponês (BOC).

Nada disso seria possível sem um núcleo duro de militantes convictos que, nas piores condições políticas, dedicaram toda a sua vida, todos os seus momentos, para a construção do Partido e sua inserção na classe trabalhadora. Mesmo a pequenos passos, esse esforço hercúleo de poucos militantes foi fundamental para estabelecer o Partido Comunista como organização revolucionária, centralizada e disciplinada, capaz de agir em quaisquer condições contra o Estado capitalista.

Porém, já nessa época, o Partido iniciou sua leitura da realidade brasileira a partir da ótica da suposta “semicolonialidade” e da predominância das relações agrárias, tirando daí a necessidade de uma estratégia de desenvolvimento anti-feudal, numa etapa de revolução democrático-burguesa antes da realização de uma revolução socialista, erro teórico que marcará toda a sua história no século XX.

Tenentismo, revolução e insurreição

Ainda na década de 20, um evento marcou a vida política do país: o capitão Luiz Carlos Prestes liderou a maior empreitada militar da história do país, conduzindo uma coluna de militares insurretos em uma marcha de mais de 25.000 km em todo o país, propagandeando uma revolução contra a República oligárquica e propondo um programa de reformas políticas e econômicas, incluindo a Reforma Agrária. Mesmo recuando organizadamente ao exílio após 3 anos de intensa atividade, a Coluna Invicta convergiu com a esperança de milhões de brasileiros na mudança do sistema econômico e político do país, consagrando seus dirigentes e, especialmente, Luiz Carlos Prestes, como heróis do imaginário revolucionário popular.

A aproximação de Prestes com o marxismo, apesar de demorar a entrar no Partido, o fez o único dos “tenentistas” a dirigir uma oposição consequente à Revolução de 1930, permitiu também o aumento da influência das ideias comunistas no setor militar, aumentando as possibilidades de penetração do Partido nos quartéis.

Essa influência se consolidou na Aliança Nacional Libertadora (ANL), organização ampla de luta democrática, contando com avançado programa antiimperialista que incluía a reforma agrária e a nacionalização de empresas estrangeiras, mesmo sendo organizada também pela burguesia liberal mais avançada. Elegendo Prestes, ainda exilado, mas já membro da Internacional Comunista, como seu “Presidente de Honra”, a ANL permitiu aos comunistas ampla influência sobre setores proletários, pequeno-burgueses e militares, contando com um milhão de filiados em 1935.

Nessas condições, Vargas decide decretar a ilegalidade da ANL, e esta responde iniciando, inicia a organização de uma insurreição militar para depor Vargas, cujos pioneiros foram os trabalhadores e militares, de Natal, que tomaram o poder no estado do Rio Grande do Norte. O Governo operário de Natal, único governo dos trabalhadores na história de nosso país, mesmo durando apenas 3 dias, foi heróica conquista do proletariado brasileiro, que realizou seu primeiro “assalto aos céus” sob a direção de um ainda inexperiente Partido Comunista.

Em seguida, em Recife e no Rio de Janeiro, os comunistas se lançaram em uma audaciosa ofensiva contra o governo. Porém, sem apoio decisivo nas fábricas, ainda mal preparados e mal coordenados, os focos revolucionários foram suprimidos, um a um, derrotando assim a primeira insurgência militar do proletariado revolucionário brasileiro contra o Estado burguês. Após atirarem-se ao combate de forma corajosa, mas despreparada, os comunistas brasileiros foram brutalmente reprimidos, presos e assassinados. A direção central e os Comitês de São Paulo e do Rio de Janeiro foram dizimados pela repressão e os comunistas foram gradualmente desarticulados, passando a existir somente de forma localizada. Prestes e os principais líderes do Partido foram presos, e muitos (como Arthur Ewert e Marighella) torturados pela polícia política. Olga Benário, militante da Internacional Comunista, foi enviada, grávida, aos campos de concentração nazistas.

Porém, nessa derrota, o Partido Comunista provou-se como mais decisivo partido brasileiro, como mais consequente oposição ao domínio burguês no Brasil. Em seus primeiros 15 anos de existência, adquiriu a organização e a experiência que lhe permitiria elevar amplamente sua atividade no próximo período.

Ao mesmo tempo, porém, consolidou os fundamentos estratégicos da revolução nacional-democrática que entendia necessária no país, e que sobreviveria nos principais erros oportunistas do Partido nas décadas seguintes.

A reconstrução do Partido e a Conferência da Mantiqueira

Após sucessivas quedas da direção nacional, sem contato com a IC (em vias de dissolução) e a impossibilidade de distribuição do Órgão Central em 39, o Partido chegou a tornar-se apenas um punhado de direções locais fragmentadas. Nessas condições, três distintas linhas partidárias trabalham para reorganizar o Partido: o Comitê de Ação, do CR de São Paulo, formado majoritariamente por intelectuais que advogavam pela linha de União Democrática Nacional com os liberais para lutar contra Vargas; a Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP), formada a partir do CR da Bahia (Diógenes de Arruda, Marighella) e de militantes saídos da prisão (Pedro Pomar, João Amazonas) defendia a União Nacional com o governo Vargas para lutar contra o nazifascismo na guerra; e os liquidacionistas reunidos em torno de Fernando Lacerda e da revista Diretrizes, de Samuel Wainer, que defendem o fim do Partido e criação de uma organização ampla e democrática para os “novos tempos”. Nesse momento, todas as linhas em disputa são variações distintas da mesma tática de Frente Popular aprovada no VII Congresso da IC.

A Conferência da Mantiqueira, realizada em 1943, marca reunificação do Partido com a vitória da CNOP, que havia conseguido o apoio dos dirigentes presos, inclusive Prestes, tinha a direção das principais entidades democráticas (especialmente a UNE), conseguira sucessos na pressão pela entrada do Brasil na guerra e chegou até a organizar uma estrutura paralela ao CR em São Paulo para escapar das perseguições policiais e isolar as lideranças do Comitê de Ação. Nesta Conferência, foi eleita a direção nacional e aprovada a política de União Nacional que, com pequenas variações, conduziu a atividade do Partido até sua autocrítica em 1948.

Dentro da política de União Nacional, os comunistas optaram por eleger o nazifascismo internacional (eixo) e nacional (integralistas) como inimigo principal, “poupando” confrontos diretos com a burguesia nacional e mesmo com as potências imperialistas aliadas. Mesmo assim, em contradição a esses termos, o Partido seguiu advogando uma política de independência de classe frente aos partidos burgueses (UDN, PSD e PTB), construindo suas próprias entidades e, inclusive, lançando seu próprio candidato na redemocratização.

Mesmo com essa política oportunista, o pequeno respiro de legalidade entre 1945 e 1947 permitiu ao Partido uma influência decisiva na massa trabalhadora: de cerca de 2.000 militantes por volta da Conferência da Mantiqueira, o Partido chegou à 1947 com 200.000 filiados e, mesmo com a drástica redução nos quadros em decorrência da clandestinidade, chegou a 1950 com cerca de 20.000 quadros, dois deputados federais (Pomar e Arruda).

Sem conseguir organizar lutas consequentes contra a cassação dos mandatos ou resistir às intervenções nos mais de 150 sindicatos sob sua direção, o Partido recuou e, a partir de janeiro de 1948, realiza uma autocrítica do oportunismo institucional, desembocando no Manifesto de Agosto de 1950, que marca a passagem a uma tentativa de implementação de uma política revolucionária e de independência de classe, lutando contra a autocracia burguesa por todos os meios e denunciando todos os partidos como fantoches da burguesia e do imperialismo. Porém, mesmo com a consolidação de uma direção nacional experimentada nos processos de mais rígida clandestinidade e de mais ampla legalidade – abrindo caminho para uma decisiva influência no proletariado brasileiro e suas lutas, especialmente a partir da Greve dos 300 mil em São Paulo e na luta armada de Trombas e Formoso e de Porecatu –, essa autocrítica não tocou nos fundamentos da equivocada estratégia etapista dos comunistas brasileiros, que seguiam fundando sua luta na “libertação nacional” e na construção de uma revolução democrática.

Do Manifesto de Agosto de 1950 até a Declaração de Março de 1958

Em síntese, a debilidade dos comunistas para consolidar uma firmeza ideológica – em sentido ortodoxamente marxista-leninista – e de efetivar uma política independente em termos de classe – que não derivasse numa posição a reboque da burguesia – pôde ser vista, a princípio, na adoção da tática da união nacional contra o fascismo entre 1938 e no curso da Segunda Guerra Mundial. Ainda que os comunistas tenham sido protagonistas de um amplo movimento em favor da paz e contra o fascismo, tenderam progressivamente a uma dissolução ideológica dentro do nacionalismo, por conta do recurso às alianças táticas com a social-democracia.

Em 1948, o PCB buscou abandonar essa tática, afirmando, assim, uma autocrítica a respeito de sua insuficiência na resistência contra o avanço das forças reacionárias – tanto em sentido político quanto em sentido organizativo. Em 1949, o PCB buscou aprofundar essa autocrítica delineando os problemas da tática da união nacional como decorrentes de um caráter pequeno-burguês dos dirigentes do partido e do baixo nível de consciência do proletariado. Em 1950, essa autocrítica atingiu o seu auge através da publicação do Manifesto de Agosto, no qual se adotava a linha de conquista de um governo democrático e popular através de uma solução revolucionária, na qual os comunistas deveriam a organizar uma Frente Democrática de Libertação Nacional na perspectiva da conquista do poder pela luta armada. Neste momento, o partido declarava abandonar as alianças que, até então, incluíam setores da burguesia nacional e enfatizavam a primazia da via eleitoral. Apesar de um giro tático à esquerda, o partido manteve sua estratégia: a revolução de libertação nacional de caráter democrático-burguês, “democrática em sua forma e burguesa pelo seu conteúdo econômico e social” – primeira etapa da revolução brasileira, pela qual se realizariam as “tarefas a cumprir” dentro da ordem capitalista.

A mudança tática proclamada pelo Manifesto de Agosto de 1950, contudo, não encontrou bases materiais para ser implementada de fato. Em primeiro lugar, o partido não tinha capacidade real para organizar uma luta armada pela tomada do poder. Em segundo lugar, o apelo tático à esquerda caiu no vazio, pois não era possível forçar uma radicalização consequente nos setores de atuação do PCB por meio da mera proclamação fraseológica; esbarrava-se na realidade decorrente de um trabalho sindical, popular e ideológico imiscuído com a social-democracia e forças nacionalistas. Assim, na prática, a linha nunca foi aplicada de fato.

Desse modo, nos anos seguintes, a mudança de linha política pela luta armada e pela recusa da aliança com a burguesia foi progressivamente abandonada. Em 1954, no IV Congresso do PCB, ratificou-se a aliança com a burguesia nacional e a via pacífica, o partido novamente caiu na ilusão de endossar a aliança com a burguesia como um das forças capazes de levar a cabo “a revolução agrária e anti-imperialista”. Desse modo, o partido acabava por alimentar ilusórias esperanças na possibilidade de um desenvolvimento capitalista autônomo como contraponto ao imperialismo.

Por fim, tais ilusões se consolidaram com a Declaração de Março de 1958, a qual tinha como ponto principal a defesa de um “governo nacionalista e democrático” apoiado pela burguesia “interessada no desenvolvimento independente e progressista da economia nacional”, em conjunto com o proletariado, os camponeses, a pequena-burguesia urbana e, inclusive, setores latifundiários que possuíssem “contradições com o imperialismo”. De modo temerário, a contradição “entre o proletariado e a burguesia” até chegava a constar no documento, no entanto, ponderava-se que tal contradição não exigiria “uma solução radical” naquela etapa, na medida em que o desenvolvimento capitalista correspondia “aos interesses do proletariado e de todo o povo”.

A Declaração de Março de 1958 foi uma resposta direta do PCB ao avanço das forças contrarrevolucionárias no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), a partir do qual o partido soviético passou a adotar a política de uma transição pacífica ao socialismo em escala internacional, a noção de que o Estado soviético se tratava de um Estado de todo o povo – e não mais um Estado proletário – no qual não se havia mais luta de classes, e a linha de coexistência pacífica do bloco socialista com os países capitalistas, restringindo a disputa entre ambos ao nível meramente econômico. Os pontos fundamentais da Declaração de Março de 1958 guardam relações notórias e diretas com a vitória da ala contrarrevolucionária no XX Congresso do PCUS e, inclusive, a política de “desestalinização” dos Partido Comunistas após esse congresso fomentava e abria margem para o crescimento de tendências reformistas, pacifistas e social-democratas no interior do PCs sob a máscara de um processo autocrítico de “renovação teórica”, deixando em muitos casos o caráter de partido revolucionário para se tornarem “partidos de todo o povo”.

É neste período que surge também a primeira cisão de peso no PCB, com Pomar, Amazonas e Grabois levando cerca de 10% da militância para construir o PCdoB, organização que rapidamente iria se demarcar ao lado do Partido do Trabalho da Albânia e do PC Chinês como combatentes do "revisionismo kruschevista", formando um campo relativamente independente e dividindo o MCI. Porém, também nesse movimento, seguiram sem revisar a estratégia etapista para a revolução socialista. Combatendo o giro à direita do PC da União Soviética, deixaram de analisar cientificamente as posições anteriores que abriram as condições para o desenvolvimento do revisionismo. No Brasil, essa tendência vai desembocar, poucos anos depois, no oportunismo social-liberal que hoje marca a linha estratégica do PCdoB.

O desarme ideológico do PCB contribuiu de maneira determinante para a resistência irrisória contra o golpe de 1º de Abril de 1964. A ilusão a respeito do “dispositivo militar” do governo João Goulart e a greve geral convocada às pressas e sem adesão significativa são provas históricas de que o partido não se preparou para o combate frontal contra a burguesia e as forças reacionárias – ao abrir mão de uma independência política de classe, o partido desarmou a si próprio e ao proletariado brasileiro. Ademais, o desarme ideológico se aprofundou com o decorrer da ditadura empresarial-militar: o PCB ficou a reboque da burguesia e de seus representantes e se dissolveu no seio da “oposição consentida” no parlamento, sob a legenda do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), fazendo proliferar ainda mais confusões ideológicas com a democracia burguesa e, na prática, descaracterizando a política comunista até o final dos anos 1980.

Esse reboquismo manteve-se como marca por toda a década de 1980, marcada pela saída do Secretário-Geral Luiz Carlos Prestes pouco depois de sua volta ao Brasil pela Lei da Anistia, em 1979. O VII Congresso do PCB, em 1982, chegou a ser interrompido pela invasão da polícia e tampouco representou o avanço estratégico necessário. O Partido teria seu próximo grande documento estratégico promulgado pelo Comitê Central apenas em 1984, a chamada “Alternativa Democrática para a Crise Brasileira”, um dos pontos mais baixos da formulação partidária, amplamente influenciado pelo eurocomunismo presente em grandes PCs da Europa, como o italiano e o espanhol.

A perda de influência no movimento operário foi atroz: o PCB se nega a construir a CUT (em um momento em que ela era, efetivamente, uma Central Única dos Trabalhadores, fruto de um amplo processo de mobilização e avanço operário) e começa a perder vários de seus trabalhos, representando, à época, uma linha de maior reboquismo à burguesia liberal do que o próprio PT, que de alguma forma apresentava uma linha de independência de classe. Foi também já nesse momento que começam a se desenhar as diferentes alas que, entre o IX e o X Congresso fraudulento, iriam se degladiar pelo futuro do PCB.

A Reconstrução Revolucionária do PCB

A virada dos anos 1980 para 1990 foi o auge da crise do Movimento Comunista Internacional. Diversos PCs, já tendo abandonado a estratégia revolucionária, abandonaram finalmente seus nomes, siglas, cores e símbolos. Com a vitória da contrarrevolução na União Soviética e a consequente dissolução do bloco de países do Leste Europeu, era a hora do golpe final contra os que ainda resistiam, no seio dos PCs, às metamorfoses ideológicas e estratégicas. No Brasil, o X Congresso do PCB foi convocado de maneira atropelada, com a função única de mudar o nome e o programa do Partido e transformá-lo em uma agremiação social-democrata, o PPS (hoje, Cidadania).

Uma parte significativa da militância do Partido não aderiu a esse movimento de liquidação do Partido e organizou o Movimento Nacional em Defesa do PCB, com foco em manter a existência do Partido a todo custo, inclusive registrando provisoriamente o “PC” junto ao TSE. Convocando uma Conferência Nacional de Reorganização do PCB para a mesma data e cidade do congresso fraudulento, os militantes mantiveram a continuidade política do Partido iniciando o processo chamado de “Reconstrução Revolucionária”. Esse primeiro passo foi fundamental para que, diferente de outros países (como México ou Itália), o Partido Comunista não deixasse simplesmente de existir. Mas também esse passo não foi sem suas contradições: já em 1993 foi realizado o X Congresso, reconhecido pelos militantes que mantiveram o PCB, e em 1996 seu XI Congresso. Ainda havia, dentro do Partido, esforços para fazer avançar uma autocrítica estratégica profunda, que desse conta de avaliar concretamente as políticas equivocadas que levaram o PCB à beira de sua dissolução total, depois de décadas buscando apoiar-se, de maneiras distintas, na estratégia democrático-nacional, de colaboração com a burguesia nacional.

Tendo passado por um XII Congresso em 2000 ainda num período de debilidades organizativas e materiais e indefinições políticas e ideológicas, o PCB assenta sua autocrítica apenas no XIII Congresso, em 2005, ao recusar finalmente a estratégia democrático-popular (hegemônica na esquerda) e aferrar-se à estratégia socialista, determinando finalmente o giro político que daria força para um crescimento mais ideologicamente comprometido com a Revolução Socialista no Brasil. O XIV (2009) e o XV (2014) Congressos definiram pelo aprofundamento dessas medidas e da Reconstrução Revolucionária do PCB – inclusive derrotando a linha que se posicionava contra o marxismo-leninismo e a ditadura do proletariado.

É nesse período, impulsionado pelo ascenso de massas de junho de 2013, mesmo com as contradições de seu desfecho, que o Partido alcança seu crescimento mais significativo em décadas. O trabalho da então Juventude do PCB, a União da Juventude Comunista, era um dos motores mais dinâmicos nesse processo, crescendo em influência e aglutinando novos militantes por seu envolvimento com as lutas da classe trabalhadora, especialmente a partir do movimento estudantil.

As contradições ideológicas dentro do Partido, que eram gestadas desde o começo da Reconstrução Revolucionária, começaram a ficar mais aparentes principalmente depois do golpe de 2016. Isso porque, enquanto uma ala do Partido mantinha firmes os princípios estratégicos, uma outra ala cada vez mais buscava recuar para táticas de maior aproximação e conciliação com a social-democracia, colocando-se a reboque de seus setores mais radicais. As contradições entre as alas, como não é incomum, foram levadas ao extremo com a situação internacional, em que secretamente alguns representantes do PCB começaram a participar de uma articulação internacional em defesa do Estado e da burguesia russas na Guerra da Ucrânia. Abriu-se então uma crise no seio do PCB.

Essa crise se resolveu como muitas na história do movimento internacional dos trabalhadores. A maioria da direção do PCB, com a necessidade de completar o giro reboquista que o XVI Congresso (2021) a havia impedido temporariamente de dar, decide por cindir o PCB. O processo de Reconstrução Revolucionária, que essa mesma maioria tentou apresentar como “ultrapassado” no Congresso, entrava em choque com as táticas de “independência, mas não oposição” ao governo neoliberal de Lula e a única solução possível, um Congresso unitário, foi desprezada.

Começava, assim, um novo período da Reconstrução Revolucionária. Enquanto a maioria do CC do PCB mantinha o controle partidário e seu registro eleitoral, uma ampla mobilização das bases começa a organizar por si própria o XVII Congresso, ainda em curso, e uma parte significativa da militância é formalmente expurgada do Partido às centenas. Hoje, quase 8 meses depois do lançamento do Manifesto Nacional em Defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB, fica bastante claro que a tática de Reconstrução Revolucionária, empreendida a partir de 1992, foi abandonada pelo PCB e abraçada pela militância que se aglutinou em torno do Manifesto, que se organizou no PCB-RR.

Sobre o Movimento Comunista Brasileiro

Mas quais são as conclusões que devemos tirar desse processo, hoje, nos 102 anos de fundação do Partido Comunista no nosso país como Seção Brasileira da Internacional Comunista?

A primeira e mais óbvia dessas conclusões é que nos parece hoje contraproducente para uma análise histórica científica do movimento comunista brasileiro a tese de continuidade absoluta de um único Partido, o PCB, como organização unitária do movimento. As continuidades e rupturas são processos comuns no movimento dos trabalhadores e isso também é verdade para os Partidos.

Podemos traçar uma continuidade absoluta entre o PCB de 1922 e o de 1943? Entre o de 1967 e o de 1992? Entre o de 1992 e o de 1993? Seria um pouco infantil se assim o fizéssemos, dados os graus de ruptura que vieram da Insurreição de 1935, da Ditadura Militar, do liquidacionismo. O “pecebismo” representa essa visão, a visão do chauvinismo partidário acrítico, o espírito de seita, na contramão do profundo espírito autocrítico que marca a Reconstrução Revolucionária. Esse “pecebismo” nada mais é do que a vinculação a uma organização política sem a preocupação com seu desenvolvimento histórico e político para tornar-se vanguarda do proletariado no Brasil.

Mas podemos, também, verificar uma ruptura total nesses momentos históricos? Tampouco nos parece correto afirmar isso. O desenvolvimento de formas de luta da vanguarda proletária, da fragmentação e recomposição dessas forças, demonstra a viabilidade de manter um certo nível de unidade nos momentos de quase dissolução, seja ela organizativa, seja ela política. A linha de continuidade aberta com o Movimento Nacional em Defesa do PCB, em 1992, fez com que surgisse um novo PCB que era ao mesmo tempo uma parte do velho PCB; a linha de continuidade aberta com o Manifesto de Agosto de 2023 fez com que a Reconstrução Revolucionária do PCB fosse abandonada por uma forma organizativa e rapidamente resgatada por outra.

Poderíamos, inclusive, estender essa mesma análise para formas que há muito deixaram a unidade com o PCB. Esse é o caso, por exemplo, do rompimento que deu origem ao PCdoB em 1962, ou do rompimento deste de 1966, o PCR; também da Dissidência da Guanabara (1964), posteriormente MR-8; e do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, de 1968. Também não podemos deixar de mencionar as organizações trotskistas que surgiram como rompimentos do PCB, como a Liga Comunista Internacionalista, o Partido Operário Leninista e o Partido Socialista Revolucionário.

A data de hoje, 25 de março de 2024, marca os 102 anos do começo dessa história e deve ser comemorada por todos os revolucionários brasileiros. Ainda que, particularmente, consideremos o marxismo-leninismo como abordagem verdadeiramente revolucionária, entendamos a Revolução Socialista como objetivo estratégico cientificamente correto para o atual estágio da luta de classes brasileira e o processo de Reconstrução Revolucionária como tática organizativa mais adequada para a superação do descenso do movimento comunista no Brasil, consideramos que o marco de 1922 pertence ao conjunto da classe trabalhadora e por ela deve ser reivindicado.