A reconstrução do Rio Grande do Sul

É uma política deliberada de sucateamento dos serviços básicos, como saneamento, para privatização. É uma gestão marcadamente neoliberal, que opera em favor dos empresários em detrimento dos trabalhadores.

A reconstrução do Rio Grande do Sul
Geraldo Alckmin durante Visita a área destruída pelas enchentes na cidade de Muçum no Rio Grande do Sul. Foto : Cadu Gomes / VPR

Por Redação

O estado do Rio Grande do Sul atravessa a pior tragédia humanitária em sua história.  As enchentes registradas em maio de 2024 superam o recorde histórico de 1941 em volume e em impacto nas regiões e municípios.

Para ter uma dimensão da destruição, o Rio Grande do Sul possui 497 municípios, de acordo com os dados oficiais do próprio governo do estado, 476 deles foram atingidos pelas enchentes, o que representa 95,7%. Até o momento, 176 mortes já foram confirmadas e o número ainda pode aumentar, já que 44 pessoas continuam desaparecidas. Ainda, 572.781 foram desalojadas pela catástrofe e a população total atingida é de 2.392.686 pessoas, 21,2% da população do estado.

É um cenário de devastação total, serviços públicos básicos como escolas, saneamento e hospitais deixaram de funcionar, sistemas de distribuição de energia elétrica, rodovias e toda sorte de infraestrutura foram destruídos, há cidades inteiras praticamente submersas com toda a sua população desalojada. Entretanto, uma parte significativa de seus impactos poderia ter sido mitigada ou controlada. Recorda-se que não é a primeira vez na história recente do Rio Grande do Sul que fortes chuvas provocaram alagamentos: em setembro de 2023 já haviam ocorridos fortes enchentes no estado.

Esses eventos climáticos extremos, que provocam uma drástica mudança na vida cotidiana, estão se tornando cada vez mais frequentes. Mas eles não são um acidente do destino, não ocorrem por acaso, pelo contrário, estão diretamente ligados à exploração capitalista, que cada vez mais o próprio planeta tem dificuldades de sustentar sem que biomas inteiros entrem em colapso.

Será necessário um enorme esforço para reconstrução do Rio Grande do Sul e o retorno de um mínimo condições adequadas de vida humana à população gaúcha. Contudo, há sinais claros que essa reconstrução será realizada de forma excludente, em benefício dos empresários e patrões, que irão aproveitar o momento de crise para avançar na privatização de serviços públicos, colocar no colo das grandes construtoras o papel de principal empregador das obras e completar o desalojamento de trabalhadores de áreas valorizadas em favor dos especuladores do setor imobiliário.

Os patrões veem o atual momento como uma oportunidade de expansão dos lucros. A maneira como o governo de Eduardo Leite (PSDB) tem planejado a reconstrução é semelhante aos esforços conduzidos pela destruição causada pelo furacão Katrina, que atingiu os Estados Unidos em 2005. Como exposto acima, o governo estadunidense delegou para o setor privado as principais atividades e serviços necessários para a reconstrução. As grandes empresas faturaram contratos milionários e todo o esforço foi direcionado para parcerias público-privadas, abrir fontes de lucro para os patrões, sucatear serviços para privatização, etc.

O governo de Porto Alegre de Sebastião Melo (MDB) aprovou a contratação da empresa Alvarez & Marsal, uma consultoria de gestão administrativa multinacional que promoveu a gestão privatista durante o desastre provocado pelo Katrina, para realizar o planejamento de reconstrução do município. É uma verdadeira surpresa que uma cidade com mais um milhão de pessoas tenha sofrido tanto com as enchentes no estado, supostamente espera-se que um polo urbano deste tamanho tenha um sistema eficiente e moderno de drenagem e saneamento.

Entretanto, o que ocorre é um verdadeiro sucateamento do Departamento de Águas e Esgotos (DMAE). Em volume de investimentos para infraestrutura, como a aquisição de bombas para impedir o alagamento das ruas de Porto Alegre, houve uma queda de R$239,7 milhões em 2012 para R$136,9 milhões em 2022. Em conjunto, o quadro de servidores no DMAE vem caindo nos últimos anos, indo de 2.493 funcionários em 2007 para apenas 1.050 em 2024. Em um tom de quase deboche com os servidores do departamento, o prefeito Sebastião Melo anunciou um concurso público com míseras 33 vagas em 2024.

Portanto, não é um acidente, um raio em céu azul, uma tragédia que não tem culpado as mortes decorrentes das enchentes, é uma política deliberada de sucateamento dos serviços básicos, como saneamento, para privatização. É uma gestão marcadamente neoliberal, que opera em favor dos empresários em detrimento dos trabalhadores.

Essa característica neoliberal é confirmada pelo nome de Pedro Capeluppi, escolhido por Eduardo Leite para dirigir o processo de reconstrução do estado, atuando na Secretaria de Parcerias e Concessões. Um membro chave no programa privatista do governo Bolsonaro, Capeluppi foi nomeado em 2022 pelo presidente para a Secretaria de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, sob o comando de Paulo Guedes no Ministério da Economia. Assim, o objetivo de Capeluppi é dar prosseguimento aos mesmos métodos de destruição promovida por Bolsonaro, todo e qualquer aspecto da vida humana servirá de fonte de lucro, até a água será mercantilizada, é um programa privatista máximo, que põe os custos da crise nas costas dos trabalhadores.

Cátia Araújo em sua casa, após a água baixar | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

O orçamento neoliberal do governo Leite

Elementos que certamente potencializam a tragédia vista estão ligados à maneira em que os recursos disponíveis estavam sendo alocados. No Orçamento Anual 2024 do Rio Grande do Sul podemos verificar o gasto delimitado para o Fundo Estadual de Defesa Civil, com um orçamento total correspondente a R$7,6 milhões (em valores correntes) para o estado durante o ano. Deste valor, quase metade dele (R$3,6 milhões) está alocado para investimentos, ou seja, compras de novas máquinas, criação de programas, ampliação da capacidade de ação.

A baixa importância do fundo da defesa civil na composição do orçamento estadual fica evidente quando comparamos ele com o valor total do orçamento do estado que é de R$83,0 bilhões, sendo que a defesa civil corresponde a 0,009% do orçamento estadual aproximadamente. Mesmo quando comparamos dentro do seu grupo de contas, o orçamento referente ao órgão do governo do estado (que é de R$221,0 milhões), a defesa civil corresponde a apenas 3,4%. Olhando dentro deste órgão temos, por exemplo, o orçamento da Secretaria de Comunicação do governo do estado, que tem um orçamento de R$125,8 milhões de reais, em níveis percentuais, 56,9% do gasto total do órgão do governo do estado.

Em relação ainda aos gastos com a Secretaria de Comunicação, poderia ser argumentado que a pasta é importante, que ela constrói programas de fomento relevantes. Neste caso, podemos ver que os programas de fomento também não são o foco, já que anualmente o governo do Rio Grande do Sul irá alocar míseros R$10 mil para editais de fomento à produção jornalística independente, R$33 mil para modernização da TVE e FM Cultura e míseros R$10 mil para fomento à produção audiovisual.

Em uma análise minuciosa sobre os dados do orçamento da defesa civil podemos observar o que teve de prioridade para impedir que uma tragédia desta magnitude tivesse uma resposta adequada. Neles, se destacam, pelos extremos, dois programas de gastos especificamente, o primeiro diz respeito ao “Aperfeiçoamento da Comissão Estadual P2R2” que tem agregado a si um valor total de R$2,5 milhões de reais. A comissão estadual P2R2 lida principalmente com emergências ligadas a produtos químicos perigosos, estes podem se enquadrar desde combustíveis, a ácidos ou produtos radioativos. Esta despesa, que sem dúvidas é relevante, corresponde porém a 33,2% do gasto total do fundo da defesa civil. No outro extremo temos um exemplo que foi bem veiculado que é o orçamento do programa que diz respeito ao aparelhamento da defesa civil. Este programa, nas palavras da própria lei, é em relação a “aparelhar a Defesa Civil com equipamentos necessários para atuação preventiva e de resposta em situações de emergência”. Entretanto, essa faixa no orçamento recebeu apenas R$50 mil, alocados apenas na área de investimentos. Ou seja, o investimento neste ano do estado do Rio Grande do Sul para a compra de todo tipo de equipamento necessário para prevenção ou resposta a emergências compôs míseros 0,7% do orçamento total da defesa civil do Rio Grande do Sul.

Ainda dentro da alocação orçamentária do governo do Rio Grande do Sul, o drama em relação à dívida pública é bastante conhecido entre a população gaúcha. Com um valor inicial de R$7,7 bilhões em 1998, hoje o saldo devedor da dívida pública do estado atinge R$64,6 bilhões no fechamento de 2023. De acordo com os dados do orçamento do governo do Rio Grande do Sul, entre 2001 e 2024, foram gastos, com juros e amortizações, R$58,9 bilhões para o serviço dessa dívida. Ou seja, trata-se de um caso absurdo, uma vez que a dívida já foi paga várias vezes, restringindo o espaço no orçamento do governo para outras áreas muito mais importantes.

Um bom exemplo dessa restrição em decorrência da dívida do estado é o fato de que foram reservados R$3,1 bilhões em juros e amortizações no orçamento de 2024. É razoável sugerir que parte considerável da população gaúcha preferia que esse dinheiro fosse alocado para a Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura, sendo que esta recebeu apenas R$122,7 milhões em verbas neste ano. As comparações são múltiplas, a Secretaria da Saúde recebeu apenas R$140 milhões em investimentos, assim, o dinheiro gasto com a dívida poderia ser utilizado para aumentar a qualidade do serviço da saúde pública do estado, ou poderia também melhorar a infraestrutura da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, que obteve R$133,8 milhões em verbas para 2024.

Mesmo somando todos os valores acima citados, do meio ambiente, saúde e educação, o total seria de R$397,3 milhões, ainda inferior ao que o governo paga para a dívida pública do estado. Comparando o gasto anual com a defesa civil com o que foi gasto neste ano com a amortização apenas da dívida temos que o valor total alocado para a defesa civil corresponde a meros 0,2% do total pago à União com os encargos da dívida. Fica claro onde estão as prioridades do governo Eduardo Leite, um governo que certamente irá sucatear todos os serviços públicos do estado, estrangulando o orçamento para o serviço de uma dívida que já foi paga diversas vezes.

Portanto, é preciso colocar nesses termos o absurdo da dívida pública do Rio Grande do Sul para entender a razão de que não é uma ideia tão “mirabolante” o perdão dessa dívida. O projeto de lei (PLP 80/2024), de autoria da deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL), apresenta o chamado Regime de Recuperação Socioambiental (RRS), que condiciona a anistia da dívida pública do estado à instituição de políticas de sustentabilidade ambiental e responsabilidade social, como a promoção de investimentos em infraestrutura responsável, com o objetivo de prevenção aos desastres climáticos, além de uma interrupção completa nos projetos privatistas em curso no Rio Grande do Sul.

Entretanto, o governo federal sugeriu o congelamento da dívida por três anos, o que pode parecer um ótimo começo, porém não o é, isso porque não se elimina o problema central que é o sistema da dívida. E neste momento devemos apontar para todos, porque sim, o governo federal é responsável e merece críticas pela manutenção deste modelo draconiano de contas nacionais onde ele atua endividando os estados em um sistema que diz promover um controle eficiente a aplicação de recursos, mas que atua em prol de uma suposta responsabilidade fiscal baseada em princípios nos quais as vidas dos trabalhadores brasileiros nem estão presentes na lista de prioridades.

Um programa comunista para a reconstrução do Rio Grande do Sul

De acordo com os dados do próprio governo federal, estima-se que a suspensão da dívida por três anos irá liberar por volta de R$11 bilhões para reconstruir o estado. A totalidade deste valor deverá ser utilizado para ajudar as famílias desabrigadas com as enchentes, nenhum centavo sequer para financiar projetos privatistas em favor de empresários. Contudo, com o cenário de devastação completa em curso em muitos municípios, a expectativa é que a volta da normalidade anterior às enchentes demore mais que três anos, sendo insuficiente apenas a suspensão da dívida.

É em razão disso que o projeto de lei da deputada federal Melchionna, que perdoa a dívida do estado é tão importante, não apenas por encerrar essa dívida injusta contra o povo gaúcho, mas também por condicionar a maior liberdade fiscal do governo do estado com a promoção de investimentos sociais e ambientais, não é uma carta branca para Eduardo Leite.

Quem perdeu tudo deve ser interinamente indenizado pelo descaso promovido pelo governo do estado, esses trabalhadores não tem culpa do atual governador operar unicamente no interesse dos patrões. A construção de casas para todo o povo atingindo, de graça e não via financiamento, é prioridade; a adoção de medidas que garantam uma renda básica, por parte do governo federal, para que essas pessoas tenham a oportunidade de reconstruírem suas vidas é essencial, o mínimo. Além disso, adotar um planejamento urbano inclusivo, que dê fim às diferenças entre as áreas de periferia dos centros metropolitanos, que todos tenham acesso aos mesmos serviços públicos e tenham o direito de morar, de fato, na mesma cidade.

Em conjunto, é importante salientar as casas que já existem e estão desocupadas, existem apenas para os especuladores do setor imobiliário. Durante os últimos 12 anos, cresceu assustadoramente o número de imóveis vagos no estado como consequência da especulação imobiliária desenfreada. De 326,2 mil em 2010, o número chegou a 604,3 mil em 2022. Há, assim, mais imóveis desocupados do que pessoas desalojadas no Rio Grande do Sul. Portanto, as condições para abrigar famílias desabrigadas já existe pelas enchentes já existem: é preciso destinar estes imóveis para programas de moradia.

Tais ações, inclusive, já são previstas em legislação, o que demonstra mais uma vez a postura marcadamente neoliberal do governo Lula, que se recusa a tomar essas medidas. Na letra fria do Decreto-Lei nº 3.365/41, a desapropriação já existe, ocorre quando o Estado obriga a venda de um bem para o poder público após declaração do imóvel como “de utilidade pública”, sendo possível de ser aplicada em situações de “socorro público em caso de calamidade”, o que já foi declarado pelo governador Eduardo Leite ainda no início de maio.

Não seria preciso, entretanto, contar com a boa vontade de Eduardo Leite para decretar a utilidade pública dos imóveis vagos, tanto o governo federal como os municipais, além do poder legislativo, têm essa prerrogativa. Mais uma vez, é que poderia e deveria ser executado pelo governo Lula, o que não ocorre porque o PT não quer enfrentar os interesses dos empresários do setor imobiliário.

Ressalta-se, como uma evidência ainda mais escancarada dos recuos do presidente Lula, que mesmo que a desapropriação seja efetivada, os proprietários ainda serão indenizados, não sendo nem uma medida revolucionária. O que ocorre é um processo de venda, a entidade requerente (ou seja, o governo federal) faria propostas iniciais para os donos dos imóveis requeridos, que deveriam aceitar ou recusar num prazo de até 15 dias. Haveria, ainda, a possibilidade de se declarar a urgência do processo de desapropriação, fundamentada no grande número de famílias desabrigadas. A urgência permitiria a posse provisória dos bens, desde que depositada para o dono do imóvel uma quantia arbitrada, permitindo que se iniciassem vistorias para identificar quais imóveis já estão em condições de habitabilidade e quais ainda precisam de reformas antes que se possa destiná-los às famílias necessitadas.

Os donos desses imóveis, é claro, poderiam recusar as ofertas iniciais do Estado. Esta recusa não impediria a continuidade da venda, apenas a submeteria a um processo jurídico. Neste caso, o preço do imóvel seria avaliado por perito indicado por um juiz, entretanto, mesmo assim o imóvel seria vendido por este valor ao Estado.

Há ainda a possibilidade de devedores para a União, como grandes empresários com dívidas com o Estado venderem seus imóveis. É o caso da adjudicação, onde a desapropriação é um processo de venda, que portanto exige a compensação financeira por parte do Estado, a adjudicação é o confisco de um bem para quitar uma dívida existente. Assim, ao contrário da desapropriação, ele não pode ser empregado apenas com fundamento na utilidade pública: é preciso que o dono do imóvel tenha uma dívida em valor igual ou superior ao valor do imóvel.

Absolutamente todas as medidas mencionadas acima são possíveis de serem realizadas ainda dentro dos limites da democracia burguesa. Não estão sendo realizadas não por erros ou acidentes do presidente Lula, mas partem de um bem delimitado projeto político da agenda petista. Os tambores da austeridade batem forte no terceiro governo Lula, seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, deixará um legado marcadamente neoliberal, o descaso com a população gaúcha é mais uma das faces de sua política.

É um governo completamente rendido, recuado, com uma tônica pacificadora para os patrões enquanto censura greves e ataca direitos des trabalhadores. Há de ter uma saída a isso, uma alternativa proletária para essa verdadeira luta de classes, que ocorre não nos palácios presidenciais, mas nas casas destruídas pelo capitalismo. 

Uma luta socialista, consequente, enérgica e ativa, que dê cabo ao necessário enfrentamento aos barões do setor imobiliário!