'Sobre a Escola Nacional de Formação e as disputas' (Sebastian Lacerda)

Especialmente a juventude tem fome e sede de se armar para a revolução com todo o conhecimento que ainda não tem, e com razão buscará se alimentar de tudo o que tiver ao dispor e o partido lhe recusar.

'Sobre a Escola Nacional de Formação e as disputas' (Sebastian Lacerda)
"Lemos e compartilhamos jornais de outras organizações no vácuo deixado pelo O Poder Popular, que se mostrou sempre muito insuficiente diante de outros, que ainda no espírito do "tudo que pareça de esquerda é bom", disseminam perspectivas pequeno-burguesas, revisionistas e até reacionárias em suas análises e defesas"

Por Sebastian Lacerda para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Muito já foi dito, com variada qualidade, sobre a necessidade da socialização dos acúmulos entre coletivos e partido. O atraso da tarefa da Escola Nacional de Quadros no PCB apareceu como um sintoma da crise que fundamentou o racha, por exemplo. Quero neste texto dar uns passos atrás para fomentar o debate da questão da formação num contexto mais amplo.

Em minha carta de afastamento fiz um balanço sobre a cisão no Paraná, do qual eu integraria e já podia antecipar que ocorreria de maneira generalizada. Ocasionando assim, por parte do Comitê Central uma investida liquidacionista ao partido devido a suas práticas direitistas e desonestas, seguidas de expurgos de dissidentes e profunda incapacidade de sequer fazer uma autocrítica (e não, ninguém considerou as três linhas de Eduardo Serra como uma verdadeira autocrítica), que rompia com a reputação do partido diante de suas bases de massas e, em maior nível, de sua militância orgânica. Nessa carta, uma das questões era como consistentemente construímos esse partido realizando formações por conta própria, com poucas oportunidades de formações nacionais, essas online, mas com pouca qualidade e nenhuma consistência ou planejamento.

Duas exceções foram o Curso de Formação da Revista O Futuro, da UJC (2020)[1], e o Curso de Iniciação Partidária do Jornal O Poder Popular (2022)[2] postados no youtube. Com uma certa qualidade e planejamento, essas ainda refletiram bastante da variedade de concepções ideológicas em disputa no interior do partido, material que recomendo pelas horas de pesquisa para camaradas interessades em mapear e fazer o devido balanço disso.

Localmente pudemos realizar alguns ciclos e debates voltados a textos em particular. Em 6 anos foram realizadas 3 formações do NEP 13 de Maio, mas também inúmeras rodas de leitura e discussão de textos por iniciativa própria dos núcleos e comitês de base. O enclave de Curitiba dentro do enclave do Paraná ainda se desenvolveu de maneira semi-autônoma mesmo com as dificuldades. A cumprimento do Sistema Nacional de Formação Política da UJC, chamado acertadamente por "BNCC do Comunismo" pela tribuna de camarada Ive[3], foi desmontado em 2021/22 pela CEUJC-PR o ciclo de estudos do Capital vol. 1 e de textos clássicos de combate classista às opressões em meu núcleo de base. Isso foi aplicado para o desenvolvimento obrigatório do Programa de Formação Militante - Básico, que incluía o Manifesto Comunista, alguns textos de 2 páginas de Marx e Lenin e o livro completo de Antônio Carlos Mazzeo. Resgatando a tribuna de camarada Ive, importante demonstrar que esse tipo de condução política acrítica beneficiaria a linha de Mazzeo detalhadamente logo de cara para a militância, enquanto a de Marx, Engels e Lênin de maneira introdutória ou fragmentária.

Não é de se surpreender que a ausência e artesania das formações nacionais via de regra, bem como a castração da formação interna da UJC nessas práticas ensejaria um latifúndio de dúvidas que seria preenchido por outros caminhos, como os canais de youtube, divulgações de livros, podcasts, eventos de outras organizações e tudo o que mais fosse cabível para a qualificação desses demais debates. Grupos universitários de estudo de Marx com defesas de um "marxismo autogestionário" e outras bizarrices também brotam nesse terreno. Especialmente a juventude tem fome e sede de se armar para a revolução com todo o conhecimento que ainda não tem, e com razão buscará se alimentar de tudo o que tiver ao dispor e o partido lhe recusar.

Logo, a disputa externa da militância do PCB e coletivos foi constante, seja pela ideologia dominante do capitalismo mas também pelas organizações do proletariado mais distintas. Lemos e compartilhamos jornais de outras organizações no vácuo deixado pelo O Poder Popular, que se mostrou sempre muito insuficiente diante de outros, que ainda no espírito do "tudo que pareça de esquerda é bom", disseminam perspectivas pequeno-burguesas, revisionistas e até reacionárias em suas análises e defesas (não que o amador e economicista Jornal O Poder Popular não o seja também, e se tiver tempo também quero comentar disso em outra tribuna).

Tomemos como exemplo o conceito do "Fetichismo de Mercadoria" que se tornou um símbolo do tipo de disputa que se inseriu em nossa militância. Lutou-se com unhas e dentes contra o Ian Neves por um erro que ele cometeu em seu canal do youtube, mas que também voltimeia foi cometido de maneira igual por Gustavo Gaiofato em seu canal, mostrando que tanto num caso quanto no outro havia consequências da falta de uma Escola Nacional de Formação minimamente viva no interior do PCB, cuja militância consome ambos os canais e os referencia diariamente. Se meu núcleo de base não tivesse já estudado essa parte (a revelia do SNFP), teríamos provavelmente aprendido errado também por meio deles. Digo também que a professora que mais permitiu esse nosso estudo (Marina Machado Gouveia, no grupo de estudos Lendo o Capital na Pandemia[4]), também não o fez por iniciativa do PCB.

Vale destacar que o crescimento da militância, largamente celebrado pelo PCB-CC (que agora renegam porque não lhes proclama mais) e PCB-RR, se deu muito por resultado dessas atividades online, pouco com inserção planejada e localizada da militância onde estamos inserides (ainda que não se possa desprezar esses duros trabalhos). Mas veja que contradição que ume ou outre militante em seu apartamento consiga propagar sua linha para o país inteiro tanto quanto ou mais que o "partido de mil olhos"!

A comunicação é um exercício político de alta responsabilidade no entanto, porque uma ação melhor planejada pode manipular entendimentos, forjar convicções e confianças em figuras que serão difíceis de combater depois. Resgato novamente o História Pública/Soberana[5] de Ian Neves, porque a viragem de um discurso de "milite no PCB ou na UP, tanto faz", para "milite na UP" foi muito simples e eficaz. O conteúdo a nível teórico sempre se situou próximo à linha do PCR/UP (sobre o Partido da Albânia e suas posições sobre Stalin), mas no momento de estouro de sua popularidade passaram a borrar suas diferenças com o PCB, organizaram grupos com militantes de ambas as organizações e interessades, até que atingiu um ápice a partir o qual passou a defender somente a UP. Esse movimento pode ou não ter sido planejado diretamente pelo PCR/UP, mas não cabe uma análise moralizadora disso. Jogo é jogado, salmão é pescado, quem explorou esse flanco aberto teria sido um grupo ou partido de esquerda, de todo modo. Mas poderia não ter sido:

Imaginemos, para ilustração, que o ICL (Instituto Conhecimento Liberta, de Eduardo Moreira[6]) que se porta muito bem enquanto uma “escola nacional de formação”, seja uma proposta encoberta e planejada de desorientação da burguesia e dos militares. A partir de quais fundamentos comuns teríamos a capacidade de nos proteger dessas práticas? Não acredito que esse exercício imaginativo seja muito absurdo, porque as Forças Armadas Brasileiras possuem ao seu dispor a Escola Superior de Guerra[7], e da última vez que vi suas publicações (recomendo a todes), destacavam-se inúmeras pesquisas de ponta em cibersegurança, contrainteligência virtual, propaganda/contrapropaganda aplicadas ao campo cibernético e das redes sociais.

Faço esses alertas para que percebamos que estamos sob disputas de outras linhas que não necessariamente são as nossas, e vulneráveis a essas práticas ao nos ausentarmos dessa disputa não estruturando uma Escola Nacional de Formação. No último movimento de disputa interna mais encarniçada o PCB teve apenas como recurso político emitir circulares e notas políticas extremamente evasivas e com emprego de mentiras ou informações inverificáveis num esforço para converter as questões políticas em questões burocráticas ou morais.

Por essas fragilidades, a disputa interna constante no interior do PCB enquanto uma "geringonça marxista" não leva às últimas consequências suas análises, e muito vacila no território da indefinição sobre temas que deveriam ser investigados cientificamente. Por exemplo, no campo da nossa linha política internacionalista, é muito defendida uma neutralidade política contra um "sectarismo" ou "isolacionismo", completamente incapaz de contribuir criticamente com os demais partidos comunistas e não se defende, assim, os acúmulos do que temos de mais avançados, como as contribuições dos coletivos partidários ao combate classista às opressões. Como que podemos ser tão fracos em permitir que partidos comunistas e movimentos de esquerda em todo o mundo saiam incólumes de suas vacilações reacionárias que atacam proletáries negros e negras, mulheres e LGBT+ (de partidos como o da Rússia, Grã-Bretanha, Estados Unidos e Japão) apenas pela "boa convivência", sob o princípio de uma aliança a qualquer custo? Exemplo esse que jamais deixou de ser observado e reprovado pela militância. Nesse tema, indico também a tribuna de Mendes e Sagaranam "Depois da Tempestade, haverá um arco-íris? (…)"[8], que considero importante. Ainda no campo do internacionalismo, é flagrante o quanto a indefinição sobre o capitalismo chinês, e sua disputa de hegemonia com os Estados Unidos se tornou grande questão para o racha, pois o aceleramento da conjuntura e proximidade da guerra mundial tensionaram o partido a se posicionar. Quem rompeu o silêncio foi beneficiado diante de quem se calou acerca desses elementos.

Outro exemplo é o da construção da estratégia revolucionária e suas táticas. Sem menosprezo de suas contribuições ou subestimação de suas falhas, estimulo a comparação do A Estratégia Democrático-Popular: um inventário crítico, organizado por Mauro Iasi (publicado em 2019)[9] com os 6 primeiros capítulos do livro Anti-Dimitrov de Francisco Martins Rodrigues (1985)[10], buscando entender o que se preserva e o que se destrói na análise de ambos. O primeiro estudo se alimenta e fundamenta parte da nossa Estratégia da Revolução Socialista Brasileira do PCB[11]:

No papel, nos opomos à estratégia democrático-popular, do etapismo e seus organismos adeptos. E logo adiante, a nova estratégia socialista se encaminha na idéia de que não seremos apenas nós os comunistas a fazer a revolução, mas um amorfo Bloco Revolucionário do Proletariado composto por diversos partidos e movimentos organizados da classe. É como se todas as táticas e estratégias fossem igualmente eficazes e levassem no mesmo sentido, e assim fôssemos todos chegar na largada de mãos dadas num amplo acordo, em que depois os comunistas teriam salvaguardada a sua tímida parte.

Além de que o que fundamenta essa estratégia são páginas e mais páginas de análises socioeconômicas que buscam (apenas?) validar que o capitalismo "está maduro" para a revolução, análises essas progressivamente agonizantes sob as críticas dos etapistas agora com a aceleração da reformulação do papel brasileiro na divisão internacional do trabalho, desde o impeachment da Dilma em 2016. Pois se recusamos o etapismo da estratégia Democrático-Popular, que coloca a luta revolucionária para um futuro cada vez mais distante, como que damos a entender que caso a estrutura econômica do país fosse diferente isso atestasse que ela seria democrática-popular? Tanto Iasi et al. quanto Rodrigues vão contra essa linha. Se conforme o país se desindustrializa pelos governos reacionários e ultraliberais e temos a assim chamada "maturidade" do capitalismo demolida para atendimento dos centros do Capital, precisaremos aderir ao etapismo junto ao PCdoB então?

Vou além, essas questões de internacionalismo e estratégia revolucionária permitem largamente o abandono da tarefa de diferenciação do PCB junto a outros partidos e movimentos, criticando os por sua insuficiência e falta de compromisso com o proletariado, coisa que a análise de Rodrigues aponta de maneira muito melhor ao criticar as Frentes Populares e Frentes Nacionais[12] (linha apoiada pela UP inclusive), desde seu fundamento por G. Dimitrov no 7º Congresso da IC, e examinando suas derrotas e capitulações com a burguesia, bem como suas consequências diretas para a liquidação do Movimento Comunista Internacional.

Rodrigues nos convida a analisar as razões do revisionismo e liquidacionismo para além da condenação individual dos liquidacionistas que conduziram esse programa, mas pelos terrenos ideológicos que permitiram a elevação e permanência desses quadros na liderança dos Partidos Comunistas com largo apoio das bases até seu rompimento. Contribuição essa, que considero crucial para que entendamos e possamos fazer um balanço científico do terreno envenenado que permaneceu do Liquidacionismo do PCB (1992)[13]. Notadamente, Dimitrov está um tanto ausente nos textos do Inventário de Iasi et al. e da Estratégia do PCB.

Rodrigues também nos convida a engajar a militância nessas polêmicas sem deixar contaminar pelo medo de fantasmas do "sectarismo" que, em nosso caso, se apresenta muito mais como o medo da vanguarda. Esse medo nos faz vacilar a benefício apenas dos nossos inimigos de classe, que hoje mal nos consideram perigosos por saberem claramente que estamos desarmados material e ideologicamente, envaidecidos, contando com forças alheias e suscetíveis a qualquer mínima intervenção.

Levanto todas essas questões por ter sido convencido do potencial do Movimento pela Reconstrução Revolucionária do PCB em levar adiante uma tarefa que o velho PCB fracassa e agoniza, que nos colocou e coloca a militância que lá permanece em risco. Obviamente que a formação não é a panaceia que irá fazer cessar por si própria todas essas questões, mas é um dos pilares que nos prevenirão de formar um partido vacilante, que esquiva de afirmar suas posições, que vê tudo como “igualmente bom” e finalmente não arma ideologicamente com consistência e planejamento a sua militância, pelo menos, e isso já é um bom começo. Porém, a Reconstrução pode sim também ser vítima dessa vacilação se não se responsabilizar decididamente com uma Escola Nacional de Formação de Quadros, com ousadia e sem medo nem mesmo de sua própria militância.

Nenhume de nós poderá mais aceitar autocríticas de três linhas, nem que o partido continue sem Escola Nacional de Formação. Essa ferramenta irá amolar a todas as demais no acirramento da luta de classes que se avizinha.


Referências:

[1] https://www.youtube.com/playlist?list=PL6acuzpdKbjdY_-QBlYQhRpS9BhdxwpKM

[2] https://www.youtube.com/playlist?list=PLpXMt17sAsDjv6nI5owGQjNTmUFhj850R

[3] https://emdefesadocomunismo.com.br/bncc-do-comunismo/

[4] https://www.youtube.com/@lendoocapital7533

[5] https://www.youtube.com/@HistoriaPublicaOficial

[6] https://icl.com.br/

[7] https://revista.esg.br/index.php/revistadaesg/index

[8] https://emdefesadocomunismo.com.br/depois-da-tempestade-havera-um-arco-iris-para-uma critica-da-lgbtfobia-no-movimento-comunista-internacional/

[9] https://lutasanticapital.com.br/products/pdf-a-estrategia-democratico-popular-um-inventario critico

[10] https://www.marxists.org/portugues/rodrigues/1985/anti-dimitrov/index.htm

[11] https://pcb.org.br/portal/docs1/texto8.pdf e https://drive.google.com/file/d/1F_5SvtoZsxCyfsp6dx1gek0kMYEoDTvX/view

[12] https://www.marxists.org/portugues/dimitrov/1935/fascismo/index.htm

[13] https://pcb.org.br/portal2/28166