Síria: Presos no vício do capitalismo e da guerra
Entrevista com Eliseos Vagenas, membro do Comitê Central do KKE e chefe da Seção de Relações Internacionais do CC do KKE. A entrevista foi publicada no Rizospastis, órgão do CC do KKE, em 14 de dezembro de 2024.
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Entrevista com Eliseos Vagenas, membro do Comitê Central do KKE e chefe da Seção de Relações Internacionais do CC do KKE
A entrevista foi publicada no Rizospastis, órgão do CC do KKE, em 14 de dezembro de 2024.
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Estamos testemunhando desenvolvimentos turbulentos na Síria. Antes de entrarmos nos fatos, vamos considerar um aspecto menos discutido. Por que a Síria é tão importante? Qual é a sua importância no Oriente Médio?
RESPOSTA: A Síria é um país importante na região do Mediterrâneo Oriental e do Oriente Médio, porque não é apenas uma mistura de culturas e religiões, mas também um eixo para o transporte de mercadorias e energia, além de um ponto estratégico nos planos geopolíticos de várias potências imperialistas.
Portanto, para entender a importância dos acontecimentos na Síria, temos que dizer que o que está acontecendo não pode ser separado do quê o KKE vem enfatizando há muito tempo e o que todos os outros partidos têm escondido: estamos à beira de grandes acontecimentos.
● A guerra na Ucrânia, com centenas de milhares de mortos e mutilados em ambos os lados;
● O genocídio do povo palestino, com o massacre de 20.000 crianças, mulheres e idosos;
● A troca de ataques entre Israel e Irã, que presenciamos no período anterior;
● A guerra no Líbano, bem como no Sudão e em vários países africanos, além ameças de guerra que se acumulam sobre o Indo-Pacífico e Taiwan.
Tudo isso é o prenúncio do que já começou!
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As classes burguesas e os monopólios – esses gigantes econômicos – estão manipulando o trinco dos portões do inferno, enquanto competem pela divisão das riquezas minerais e da riqueza produzida pelos trabalhadores, como energia, petróleo, gás, terras raras, lítio, urânio, entre outros, além de fatias de mercado e posições geopolíticas.
É aqui que entra a Síria, que possui seus próprios recursos energéticos e pode se tornar uma rota de dutos e transporte. Ainda hoje, existem bases militares russas e iranianas na Síria, enquanto os americanos, turcos e israelenses têm ocupado territórios sírios!
Estamos falando de um país que foi, na prática, desmembrado nos últimos 15 anos, pois foi forçado a se adaptar à “cama de Procusto” da competição inter-imperialista, até hoje, quando testemunhamos a tentativa de derrubar o regime de Assad pelos jihadistas, reinventados pelos americanos com a ajuda da Turquia.
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O que levou ao domínio atual dos jihadistas na Síria?
RESPOSTA: Antes de mais nada, a Síria, como toda a região do Oriente Médio, foi uma colônia até a Segunda Guerra Mundial. O território sírio era colônia da França.
A Síria tornou-se independente em 1946 quando, graças à influência da Uniao Sovietica e a sua contribuição para a Vitória Antifascista e o estabelecimento de regimes socialistas na Europa Oriental, o colapso do colonialismo permitiu que certos processos positivos ocorressem na correlação de forças internacional.
Desde 1963, o Partido Árabe Socialista Ba'ath esteve no poder e, alguns anos depois, formou a Frente Progressista Nacional. O Ba'ath era um partido que defendia a unidade do povo árabe e uma gestão social-democrata.
Na guerra de 1967, Israel ocupou o território sírio (as Colinas de Golã), que mantém até hoje!
Devemos lembrar também que, por muitas décadas na Síria, e de forma geral na linha do Movimento Comunista Internacional, prevaleceu a questão de alcançar a independência nacional como pré-requisito para superar o atraso em todas as áreas da vida social. Essa concepção baseava-se na equivocada "estratégia de etapas rumo ao socialismo", que foi refutada na prática.
Por sua vez, a União Soviética e outros estados socialistas formularam uma política de cooperação econômica e outras formas de apoio aos novos regimes que surgiram com a queda do colonialismo, incluindo a Síria, com o objetivo de impedir sua integração no mercado capitalista internacional e nas uniões imperialistas. A União Soviética tinha boas relações com o regime sírio, por exemplo, tinham bases navais no país.
Claro, essas relações não mudaram o caráter de classe da Síria nem o fato de que os meios de produção permaneciam nas mãos da burguesia. Era um regime burguês que perpetuava a exploração de classe e a injustiça social enquanto, para promover seus próprios interesses, tentava parecer estar sob a bandeira da luta de libertação nacional e, objetivamente, impedia os vários planos das potências imperialistas.
Após o colapso do socialismo na União Soviética, o regime burguês Ba'ath realizou grandes reestruturações capitalistas, “aberturas de mercado”, como costumavam chamar, e impôs novos encargos ao povo.
O regime de Assad foi então abordado pelos EUA, nações imperialistas da Europa, pela Turquia e outros, que exigiram mais “aberturas” e facilidades para seus próprios monopólios. Parte da burguesia síria que se agrupou ao redor do Ba'ath escolheu outras parcerias geopolíticas com o Irã e a Rússia. Por exemplo, deu à Rússia o direito de explorar hidrocarbonetos em sua ZEE, continuou comprando armas russas, etc. Além disso, em 2011, foi assinado um acordo entre Irã, Iraque e Síria para um gasoduto que levaria gás iraniano do Irã a Bagdá, Damasco, Beirute e Europa Ocidental.
Esse plano contrariava o proposto pelos EUA e Israel, que estavam interessados em construir um gasoduto do Catar para a Europa via Arábia Saudita, Jordânia, Síria e Turquia.
Além disso, a Rússia tinha sua única base naval no Mediterrâneo em Tartus.
Foi assim que chegamos aos acontecimentos da chamada Primavera Árabe, quando as forças burguesas, aproveitando os problemas sociais acumulados na sociedade devido ao caminho capitalista de desenvolvimento, começaram a lutar contra o regime Ba'ath, primeiro com manifestações e depois formando grupos armados, com o apoio da Turquia, Catar, Arábia Saudita e dos imperialistas EUA-Europa.
Não nos esqueçamos de que os jihadistas têm sido um elemento da guerra híbrida dos imperialistas euro-atlânticos há décadas no Afeganistão, Chechênia, Oriente Médio, etc.
E o regime Ba'ath, liderado por Assad, teria caído em 2015 se não fosse pela intervenção militar da Rússia, Irã e Hezbollah libanês, que mudaram o equilíbrio militar e facilitaram a continuidade do regime Ba'ath.
Como o regime de Assad, que estava no poder há mais de 50 anos e era apoiado por países poderosos como Rússia e Irã, caiu em uma semana?
RESPOSTA: Antes de mais nada, devemos esclarecer que Rússia e Irã se envolveram na Síria por seus próprios interesses capitalistas, seja por gasodutos, bases, comércio de armas ou outros motivos.
Obviamente que, na época, algumas pessoas acreditavam que o engajamento militar da Rússia e do Irã estava começando a moldar o chamado mundo multipolar.
Foram criadas ilusões de que, neste mundo de contradições imperialistas, um equilíbrio poderia ser mantido, o que seria benéfico para o povo sírio, sem abalar ou derrubar o capitalismo.
Porém, na realidade, a Turquia continuava a ocupar 10% do território sírio e havia transformado a região de Idlib em um terreno de proliferação e formação de jihadistas (com a tolerância da Rússia). Cerca de 30% do território sírio continuava sendo controlado pelos curdos com a ajuda dos EUA, que também exploravam ilegalmente o petróleo sírio. Israel também continuava a controlar as Colinas de Golã e a bombardear a Síria.
Na prática, através do chamado Processo de Astana (com a participação de Rússia, Irã, Turquia e alguns países árabes), a interferência estrangeira nos assuntos internos da Síria tornou-se normal.
Quando chegamos ao momento em que a prioridade da Rússia não era mais a guerra na Síria, mas a guerra na Ucrânia, e quando o Irã e o Hezbollah foram enfraquecidos pela guerra com Israel, que também vinha bombardeando infraestruturas críticas dentro da Síria há muito tempo, os jihadistas foram mobilizados, sendo agora rebatizados como “rebeldes” e supostos revolucionários, com a Turquia e os imperialistas EUA-Europa por trás deles.
Também deve ser destacado que esses acontecimentos foram influenciados pelo fato de que grandes setores da população perderam a confiança no Ba'ath há muito tempo devido às sanções estrangeiras e medidas antipopulares que exacerbaram a pobreza e a repressão estatal. Além disso, não viam perspectiva de uma vida melhor por causa da divisão do país.
Tudo isso minou qualquer apoio político e militar ao Ba'ath e levou à sua rápida derrubada. Em um artigo da Seção de Relações Internacionais do CC do KKE na Revista Comunista (Nº 1/2016), intitulado “A equação militar-política na Síria”, descrevemos todo o curso dos eventos que vemos se desenrolando hoje.
Agora, os apologistas ao massacre do povo palestino enlouqueceram e têm a audácia de falar sobre a queda do “sangrento regime sírio”, como se não soubessem o que está acontecendo em suas “aliadas” monarquias do Golfo, como a Arábia Saudita.
Para resumir sobre a Síria, este país fazia parte do sistema capitalista internacional, realizou reformas estruturais visando sua integração mais profunda à economia capitalista internacional, sem hesitar em atacar as conquistas dos trabalhadores e das camadas populares, e finalmente foi pega na teia de competição monopolista pela divisão dos mercados capitalistas. A derrubada do regime Ba'ath não é uma revolução, mas uma mudança no poder do sistema capitalista, acompanhada por uma alteração nas orientações geopolíticas da nova forma de governo.
Quem são os vencedores e perdedores dos acontecimentos na Síria?
RESPOSTA: O grande perdedor é claramente o Irã, que, segundo várias fontes, investiu dezenas de bilhões na economia síria nos últimos anos. Também parece estar perdendo o canal de comunicação que tinha através do território sírio com as forças político-militares que apoia no Líbano, como o Hezbollah.
A Rússia também está do lado perdedor, independentemente de conseguir ou não manter sua base naval em Tartus e sua base aérea em Khmeimim como resultado de negociações com os jihadistas pró-Turquia. Isso porque seu prestígio foi abalado. Em 2017, V. Putin, falando na base de Khmeimim, declarou que não havia chance de os jihadistas tomarem o controle da Síria e que a Rússia garantiria isso com seu poder militar. Hoje, ele parece pouco confiável aos olhos de quem acreditou nele. O golpe à liderança da Rússia será ainda maior se não conseguir manter suas duas bases, que têm sido um ponto de apoio para suas forças militares na África, em vários conflitos que estão sendo travados lá.
Outras classes burguesas, como as do Iraque ou até mesmo de Chipre, também podem perder. Lembremos que o desmantelamento da Líbia pela OTAN, com a participação da Grécia na época e com a única voz de oposição sendo a do KKE, levou ao inaceitável pacto entre Turquia e Líbia, que contesta os direitos soberanos da Grécia no Mediterrâneo Oriental.
A Turquia vem tentando há anos legitimar os resultados da ocupação turca no Chipre e o reconhecimento da chamada República Turca de Chipre do Norte, que, coincidentemente, está geograficamente oposta à Síria, agora governada por jihadistas intimamente ligados à Turquia.
Os vencedores são as classes burguesas da Turquia e de Israel. A burguesia turca já ocupou parte dos territórios sírios nos últimos anos e praticamente rasgou o Acordo de Lausanne, que define não só as fronteiras com a Síria, mas também com a Grécia. À luz desses acontecimentos, vemos que a Turquia fortaleceu significativamente sua posição na região do Oriente Médio. Conseguiu que muitos gasodutos e rotas de transporte passem por seu território. Está liderando a exploração dos recursos naturais e da força de trabalho da Síria. Também está sendo fortalecida dentro da OTAN, pois, na prática, está se provando particularmente útil para encurralar os concorrentes da coalizão imperialista euro-atlântica, como Irã e Rússia.
Por sua vez, a burguesia israelense está se livrando de um país árabe que era poderoso até 15-20 anos atrás, apoiava os movimentos de resistência palestino e libanês e tinha forte poder militar e político-econômico para confrontar Israel e seus planos. Israel já está expandindo seus territórios ocupados na Síria e também tomou o Monte Hermon, de onde pode bombardear Damasco sem o uso de bombardeiros. Seu plano, como o dos EUA, é enfraquecer ainda mais a Síria e fazer de Israel um jogador-chave no Oriente Médio e um eixo de trânsito, como o chamado Corredor Econômico Índia-Oriente Médio-Europa (IMEC), etc. Assim, em poucos dias, Israel destruiu dezenas de infraestruturas do desmantelado exército sírio e, se conseguir, também procederá ao desmembramento da Síria, com o estabelecimento de uma “formação” curda que será usada como seu principal sustentáculo político-militar no Oriente Médio.
Por fim, não podemos colocar o povo sírio entre os vencedores, apesar das expressões de triunfo da mídia burguesa internacional. O sofrimento do povo sírio continuará e aumentará. O KKE permanece solidário com o povo sírio e com os comunistas nas novas condições que têm surgido.
E agora? O campo euro-atlântico afirma que todos devem agora trabalhar por um “futuro inclusivo” na Síria, que proteja todas as comunidades religiosas, com paz, etc...
RESPOSTA: Bem, os desejos sobre “unidade na diversidade”, “inclusividade” e “paz” são o jargão dos governos burgueses, da UE e da OTAN; é apenas um discurso vazio.
O resultado final é que um capítulo da competição imperialista no Médio Oriente está agora encerrado e outro capítulo é automaticamente aberto. A competição entre as classes burguesas por todas as coisas que realçamos acima, ou seja, por aquelas coisas das quais os capitalistas esperam aumentar os seus lucros, “colocando os seus concorrentes de joelhos”, não vai parar!
A derrubada desse regime poderia facilitar os planos imperialistas dos EUA e de Israel, como um ataque ao Irã, ou até levar a um novo desmembramento dos estados da região e a um efeito dominó de desestabilização e derramamento de sangue.
As contradições estão tão entrelaçadas que inevitavelmente levarão a novas intervenções imperialistas, conflitos e guerras. Em Israel, por exemplo, grande parte do sistema político burguês acredita que chegou a hora de buscar a dissolução do Irã, a emergência de um “Grande Azerbaijão”, e não é coincidência que Israel (junto com a Turquia) apoiou o Azerbaijão na última guerra contra os armênios.
Portanto, não podemos confiar nas classes burguesas e suas alianças como a UE e a OTAN.
A juventude e os trabalhadores não devem morder a isca e confiar nas declarações de que essas instituições podem garantir paz e segurança para nosso povo e outros povos.
Devemos nos fortalecer ainda mais para enfrentá-los! Nas lutas de massa para parar o envio de armas, munições e tropas para os massacres imperialistas na Ucrânia, no Oriente Médio, etc. Pelo retorno dos militares gregos enviados em missões imperialistas no exterior! Pelo fechamento imediato das bases dos EUA que tornam nosso povo alvo de retaliações pelo outro lado dessa guerra! Pelo desligamento da Grécia da guerra, por exemplo, não respeitando as sanções contra a Rússia, que aumentam o fardo sobre nosso povo com os altos preços da energia, fertilizantes, etc. Pelo reconhecimento do estado palestino e as fronteiras anteriores a 1967 e Jerusalém Oriental como sua capital, e o fim imediato das relações com o estado assassino de Israel enquanto o genocídio do povo palestino continuar. Pelo desligamento de todos os planos e alianças imperialistas, com o povo sendo o dono de sua própria terra!
Essa deve ser nossa mensagem a ser levada por todo o país e assumida pelo povo.