'Salve as Marias! Salve Zé! O que é ser brasileiro? Uma discussão sobre brasilidades e memórias ancestrais sobre territórios' (João Thiago)

Primeiramente, buscarei debater rapidamente sobre a dita 'estética nacional' a partir das figuras dos 'Zés' e 'Marias'. Logo após isso, buscarei o malandro Zé Pelintra para perguntar: 'Meu velho, o que é ser brasileiro?'

'Salve as Marias! Salve Zé! O que é ser brasileiro? Uma discussão sobre brasilidades e memórias ancestrais sobre territórios' (João Thiago)
Registo do esquento de terno no Maracatu de Baque Solto Cambinda Brasileira do Cumbe. Nazaré da Mata-PE, 2023. Autoria da foto: Hugo Munis. Instagram: @hugomunizzz

Por João Thiago para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

A ideia de escrever essa tribuna, vem de inquietações e discussões que venho tendo junto a camaradas de núcleo e de militância em geral. Onde o principal estalo, vem do livro de Luiz Antonio Simas [1], “O Corpo Encantado das Duas” que discute sobre diferentes identidades que se movimentam e ousam não entrarem na história oficial, que resistem e reesistem nos centros subúrbios zonas afastadas.

Primeiramente, buscarei debater rapidamente sobre a dita “estética nacional” a partir das figuras dos “Zés” e “Marias”. Logo após isso, buscarei o malandro Zé Pelintra para perguntar: “Meu velho, o que é ser brasileiro?” Obviamente se tratará de uma breve análise sobre o arquétipo de tal figura e seu potencial de interseção entre diferentes camadas sociais que vivem sobre esse solo, em que hoje ouso bradar o chamado para a revolução da malandragem cabocla.

“Mas camarada, tu ta falando daquele Seu Zé de forma abstrata? Que ideia biruta é essa de estigmatizar o povo pobre…blablabla”. Calma lá, Lênin  do Leblon, estou me remetendo às figuras presentes no culto religioso de origens indígenas da Jurema Sagrada, onde “Zé” é um nome comum entre os ancestrais cultuados cotidianamente. É preciso ter a noção que todo Zé que reaparece de forma mística nos terreiros, segundo o culto, foi alguém que viveu sob o jugo da exploração do trabalho no Brasil até o século XX.

Zé Pelintra, Zé Pretinho, Zé Cego, Zé da Risada, Zé Boiadeiro e companhia, carregam consigo histórias distintas que se conversam a partir das vivências de opressão que cercam não só os “Josés” como os trabalhadores brasileiros. Com as proporções geográficas que o Brasil possui, tal Estado Nacional consegue comportar Zés de diversas identidades étnicas, profissões, culturas e sexualidades.

Não quero que entendam que estou tornando figuras religiosas em figuras políticas. O caminho é o inverso. Diferentes povos brasileiros viveram e vivem sobre exploração excessiva de seu trabalho ou territórios. Dentro de espaços de culto a ancestralidades negras e indígenas, tais figuras foram antes de tudo gente que veio antes, seus tataravós, tios distantes, primos e etc. Não cabe ao materialismo o julgamento sobre a realidade ou não de qualquer culto ou religiosidade, e obviamente tais entendimentos não podem ser base única de análises históricas. O ponto central de minha defesa desses Zés e Marias é que eles caracterizam: as memórias ancestrais sobre lutas e vivências dos povos brasileiros. 

Faço também a defesa de tais trabalhadores do passado como parte fundamental da dita “estética” que os bondosos comunistas buscam construir. Camaradas, o que seria a estética da revolução se não seu Zé Boiadeiro, trabalhador do campo que fez de sua vida, cuidar do gado que não será seu e que nem poderá desfrutar dos lucros de seu cuidado. Não acreditar que as contradições do capitalismo por si só expressas nas vivências dos povos brasileiros são a própria estética da revolução é algo anti-leninista por essência. O que cabe sim aos comunistas é ser povo e apontar que tais contradições hoje têm um denominador comum, o capitalismo, assim, sendo o próprio Zé encarnado a ser parte da revolução.

As Marias das Juremas e Umbandas remetem a memórias de mulheres oprimidas dentro do sistema patriarcal que as colocou em perigo em inúmeras ocasiões, até mesmo nas mãos dos próprios Zés citados anteriormente. As histórias repassadas de forma oral através dos ensinamentos de terreiro, preservam o imaginário social de um passado não tão distante, que remonta o século XIX até meados do século XX. Onde mulheres que não aceitavam o casamento cristão ou que tivessem a ousadia de não aceitar a castidade imposta, acabam assumindo um “corpo pecador” em cabarés exercendo trabalhos sexuais.

As Pombas Giras e Mestras se tornam símbolo da resistência aos abusos de homens que não respeitam mulheres que lutam por sua liberdade e independência. Até hoje como forma de ameaça aos homens abusados quem não ouviu alguém dizer: “ Vou jogar minha Pomba Gira pra cima de você!”. Ou até mesmo a cantiga que diz “Arreda homem que aí vem mulher…”, segundo Simas, elas gargalham na cara dos que as limitam ao pecado enquanto dançam na rua. 

Outra face dessas mulheres, é a face das garotas, quero dizer através pedofilia normalizada em seu tempo histórico, tomando por exemplo a história da Mestra Ritinha, moça que fora explorada sexualmente durantes anos em cabarés de Recife e tem seu fim assassinada por um de seus abusadores aos 15 anos. Es revolucionáries devem compreender que as distintas realidades dessas mulheres e meninas do passado devem não só serem lembradas com pesar, mas com o entendimento de suas continuidades e memórias presentes na sociedade atual. Sendo assim, parte da identidade revolucionária, como forma de respeito e justiça popular. Salve as Marias! 

O homem que aparece na chamada da tribuna é seu Zé Pelintra, que segundo as histórias, nasce em Pernambuco, na Vila do Cabo de Santo Agostinho e se cria em Afogados da Ingazeira e vai morar em Recife, próximo as ruas da boemia recifense, onde se apaixona por Maria Luziara e não tem seu amor correspondido. Tenta então esquecer dessa mulher percorrendo regiões do nordeste brasileiro, indo aos sertões de Pernambuco, Alagoas e Paraíba onde nessas andanças é iniciado em uma rama Caeté de Jurema Sagrada. Existem outras versões que contam que ele chega até o Rio de Janeiro e é daí onde vem a imagem mais difundida do malandro, de terno de linho branco, chapéu panamá e gravata vermelha. 

A característica de ser um “malandro” se torna parte central de Zé. Malandro é trabalhador? Acho que sim, só não pode ser otário! O bom malandro busca subverter a lógica do trabalho e ganhar a vida nas frestas e encruzilhadas do subúrbio. Como citei na minha tribuna anterior [2], existem populações que simplesmente não compreendem e não se submetem à lógica do trabalho capitalista. Zé como um bom caboclo malandro, ganha a vida de bar em bar, com apostas, trabalhos rápidos e muita esperteza, sem “pegar no pesado”. 

Mas como esse cara pode compreender o que é ser brasileiro? Eu particularmente não acho que ele teria a resposta pra isso. Mas quem sabe um dia não pergunte lá no terreiro? Tenho a compreensão de que seu arquétipo pode ser a cara de milhares de brasileiros, que na realidade do êxodo ao eixo sul sudeste, vivem as dificuldades do capitalismo tardio brasileiro.

Se analisarmos tais homens e mulheres hoje em seus territórios, muitas vezes são católicos ou evangélicos (em suas diferentes vertentes). As faces cristãs atuais não podem ser desconsideradas como perfil médio da grande maioria da população nacional, sendo assim muitas vezes arredias às macumbas e catimbós pela forma que estão acostumades a tratar suas espiritualidades. A crescente intolerância religiosa nada mais é do que parte da onda fascista vivida nos últimos anos, que ao redor de falsos demônios, levam as Marias e Zés ao pânico moral e o afastamento de sua ancestralidade. Mas que se encontram nas ruas, praças, encruzilhadas e comunidades afastadas. 

As ruas carregam a história da brasilidade. É também ruas onde a maioria do povo trabalhador caminha e transita até seus trabalhos e ocupações, é nela também onde se encontram as diferenças, as inquietações e revoltas, afinal, quando queremos chamar a atenção, é para as ruas que vamos! Os comunistas ousam ocupar o local sagrado de Exu e não pedem licença? A revolução não vai passar! A não ser que se peça licença, que se respeite os donos da rua, que sejam matéria pura do asfalto.

A Revolução da Malandragem Cabocla nada mais é do que a Revolução Brasileira. Entendo que o atual racha também nos coloca na situação de repensar os limites geográficos impostos pelo federalismo e como devemos superá-lo em nossas fileiras, através quem sabe sobre compreensão histórica de que sobre esse solo vivem diferentes identidades nacionais que através de comprovações históricas, podem construir um projeto emancipatório de libertação socialista.

Falo de um território onde a escravidão indígena marca com bastante força as características do período colonial e do desenvolvimento capitalista. A zona da mata norte pernambucana, onde a monocultura da cana e o latifúndio segue norteando a economia e a política dos territórios. Onde o “caboclo” da terra, segue sendo a mão de obra explorada. Existem particularidades e manifestações culturais pertencentes a essas realidades que por si só seriam tema de outra tribuna, mas o que quero apontar aqui é: se os comunistas devem escrever sobre a realidade material, cá estou eu, um caboclo revolucionário!(às vezes malandro).

Nas pré teses para o XVII Congresso Extraordinário, por muitas vezes é colocado “o proletariado brasileiro” de forma abstrata, para definir todos os povos oprimidos desta terra. Isso foi debatido dentro do nosso organismo de debates e creio que dialoga abertamente com a tribuna do camarada Veva onde ele diz:

“Ainda precisamos avançar muito em ambas as reflexões que se entrelaçam mutuamente. Afinal, o poder popular é, antes de tudo, a capacidade que um dado povo alcançou, em dado processo histórico, de organizar seus modos de vidas e de existir em coletividade a partir do bem comum, dos interesses da maioria, do bem viver, em termos usados por muitos povos indígenas do Brasil e da América Latina. E esse processo não escapa do território, antes disso, o constitui. Nessa reflexão que não é minha e me antecede em muito, territórios, mais do que áreas geográficas, são as próprias relações sociais, humanas e espirituais que se projetam no espaço.” [4]

Sigo em acreditar que seguimos sem a devida compreensão coletiva dos possíveis perfis do “proletariado brasileiro” e seus territórios. A simples reprodução dele em palavras herdadas do movimento internacional não é o suficiente. O que existem são múltiplos povos que sobre o jugo do capital, são oprimidos de diferentes formas, não somente sobre a exploração do trabalho. Então faz sentido se referir a elus somente como “proletariado”? Creio que não. A identidade nacional revolucionária deve passar por essa compreensão.

Ser brasileiro a final, não é algo uniforme. Zé ainda precisa andar mais um pouco! Ele vai dar outra volta lá fora. Enquanto isso, comunistas seguem dentro das quatro paredes discutindo a materialidade dos problemas do Brasil, o que é bom, mas que sem o olhar encantado sobre a terra, faz com que cheguemos aos 100 anos de luta pela revolução sem horizontes materiais revolucionários. Enquanto isso, Zé e Maria seguem subvertendo as falhas da sociedade classista que tanto massacram seus devotos que vão de norte a sul do Brasil em busca da vida.


Referências: 

[1] SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro-RJ, Civilização Brasileira, 2023.

[2] https://emdefesadocomunismo.com.br/os-comunistas-e-a-questao-indigena-reflexao-sobre-palavras-de-ordem-e-horizontes/ 

[3] https://emdefesadocomunismo.com.br/qual-o-papel-dos-comunistas-na-luta-pela-terra-e-por-territorio-e-por-que-nos-recusamos-a-assumi-lo/