'Questão eleitoral: quem quer os fins deve também querer os meios' (Leonardo Vinhó)

As oportunidades eleitorais, ao menos no futuro próximo, vão e vêm. Mas o partido permanecerá, entre elas e para além delas.

'Questão eleitoral: quem quer os fins deve também querer os meios' (Leonardo Vinhó)
Cartazes da Fronte della Gioventù Comunista em Roma, 2019 | Foto: Felvalen, CC BY-SA 4.0 [*]

Por Leonardo Vinhó para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

O Comitê Nacional Provisório (CNP) instou o conjunto da militância a debater a política eleitoral da Reconstrução Revolucionária para 2024, à luz da sua próxima reunião em 03 e 04 de fevereiro para deliberar sobre o assunto. Saudamos a iniciativa, bem como as tribunas já publicadas a respeito. 

Em especial o recém-publicado texto de Ivan Pinheiro [1], agora integrante do seleto clube de dirigentes nacionais que escreveram uma tribuna original para o XVII Congresso. A tribuna faz um excelente trabalho de dissecar todos os problemas com a ideia de filiação democrática a nível de política nacional, regional e local, sendo mais do que suficiente para enterrar esta ideia inviável. Mas o aspecto da política interna ainda precisa ser melhor debatido. Não tanto pelo debate eleitoral imediato, mas pelo que ele pode significar nos próximos anos.

Fica nítido, na leitura da ata da reunião, que existe uma certa pressa em retomarmos a tática eleitoral, seja em falas ou na prematuridade com que este debate já está sendo colocado, antes mesmo de definirmos nossa estratégia. Talvez ainda não tenha ficado claro a alguns camaradas, mas a nossa situação mudou. Não temos mais registro eleitoral, e resolve-lo não será tarefa fácil. Em certa altura do texto, Ivan pontua que

“No caso de o nosso Congresso decidir por uma campanha para o registro do partido no TSE, com vistas às eleições de 2026, o processo do registro definitivo teria que estar homologado pelo TSE até 6 de abril de 2026, seis meses antes das eleições, que será em 6 de outubro. É preciso levar em conta também que esse esforço coletivo nos obrigaria a ter como prioridade política colher essa grande quantidade de assinaturas, segundo a legislação atual no prazo máximo de dois anos após a obtenção do registro provisório, sob pena de ter que recomeçar tudo do zero.” (grifo nosso)

De acordo com o site do TSE, o total de assinaturas é calculado com base em

“0,5% dos votos válidos dados na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, não computados os votos em branco e nulos. Esses votos deverão estar distribuídos em, pelo menos, nove estados, com um mínimo de 0,1% do eleitorado que tenha votado em cada um deles.” [2]

As últimas eleições para a Câmara dos Deputados, em 2022, teve cerca de 118,5 milhões de votos válidos. Isto significa mais de 592 mil assinaturas, em pelo menos nove estados da federação, em até dois anos. 

Qualquer pessoa que tenha acompanhado o processo do PCR para legalizar a UP sabe que isto significa um trabalho que direcionaria praticamente a totalidade dos esforços da militância, com panfletagens diárias em trens, metrôs, ônibus, estações, terminais, etc., tentando convencer as pessoas a apostar nessa organização, parar e preencher uma ficha de registro com seus dados pessoais.

Se ainda há alguma ilusão de que esta tarefa será qualquer coisa que não absolutamente desgastante nas condições atuais, tomemos um exemplo bastante concreto. Ivan recorda em seu texto que o camarada Jones Manoel obteve cerca de 15 mil votos em Recife em 2022. Sua campanha para governador alcançou 33.931 votos em todo o estado. Arredondado para cima, 34 mil. Tomemos que a regra do TSE, que estipula 1% “dos votantes”, refira-se aos votos válidos para a Câmara dos Deputados. Pernambuco registrou 4.989.358 votos válidos para deputados federais em 2022. 1% disto significaria colher pouco mais de 49,8 mil assinaturas. Arredondado para cima, 50 mil assinaturas. 16 mil pessoas a mais, o dobro do esforço empreendido em Recife. 

Tudo isto fora do período eleitoral, época em que as pessoas são obrigadas a comparecer às urnas e se colocam mais abertas a ouvir as propostas de alguém. Tudo isto feito por uma organização que possui discrepâncias numéricas tão absurdas que é preciso limitar a delegação de São Paulo para garantir uma representação minimamente mais equilibrada. Problemas logísticos tão severos que ao menos uma etapa regional precisará, compreensivelmente, ser realizada de forma híbrida. Acúmulos excessivos de tarefas e cargos em instâncias, e uma lista que continua.

Desde sempre fui um militante muito favorável à tática eleitoral, e muito crítico da completa falta de vontade do PCB em eleger um vereador. Com o desprezo que tratavam a oportunidade de dar visibilidade aos nossos quadros, de poder utilizar uma fração do dinheiro público para as lutas sociais. Mas é preciso reconhecer quando a situação não é mais a mesma. Não temos mais registro, e não posso concordar que uma organização recém-parida, que ainda enfrenta inúmeros problemas organizativos, tenha como principal — e, falemos honestamente, praticamente a única — atividade política nos próximos dois anos a tarefa de legalizar o partido. 

Fala-se em “evitar o isolamento do partido”. Mas que isolamento queremos evitar? Com relação a outras organizações políticas, ou com relação à classe que queremos organizar? Disto depende a resposta de qual a nossa estratégia: organizar a classe pelo poder popular, ou hegemonizar uma frente com outros partidos? Retomando as reflexões de uma tribuna anterior [3], e pegando de empréstimo o título da tribuna de Ivan, que tipo de estratégia queremos construir? A do poder popular, à qual deverá se submeter a possibilidade da tática eleitoral? Ou a estratégia eleitoreira, à qual deverão se submeter todas as táticas e esforços militantes nos próximos anos? 

Poderíamos aqui recordar a citação de Lenin de que “a ação das massas (...) é sempre mais importante que a ação parlamentar”, mas em verdade a reflexão mais fundamental talvez seja a da “importância da combinação da luta legal [parlamentar] com a ilegal [greves, por exemplo]”. Na prática, encarando nossas capacidades materiais sem otimismos ingênuos, arriscaríamos inventar um desvio de novo tipo, oposto ao dos esquerdistas que rejeitavam a atividade parlamentar: o de nos dedicarmos quase que exclusivamente a um instrumento eleitoral, sem trabalho de base algum, sem inserção em setores estratégicos, sem nada.

Pode-se pensar que o PCR o fez, mas não o fez imediatamente após uma cisão, em que se decidiu por derrubar muitas das formas organizativas prévias e construir novas. Em que muitas direções experimentadas ainda precisam aprofundar sua autocrítica e aderir às novas formas de dirigir a organização, e novas direções precisam de muita assistência para fazer seu trabalho sem quebrar. Uma campanha pela legalização nestas condições é exaurir ainda mais a militância, com uma estrutura bastante nova que sequer temos certeza se provará acertada no decurso dos próximos anos. Uma estrutura que, na eventual eleição de um candidato, invariavelmente precisaria se alterar de novo para darmos conta desta nova realidade (quem comporá o gabinete? A que instâncias este mandato se submeterá dentro do partido? Quais os mecanismos para garantir que seus votos e posicionamentos naquele espaço refletirão a posição das bases, sem atropelos mas com a celeridade que a política institucional muitas vezes exige?)

Poderão argumentar que seria idealismo acreditar em condições ideais para iniciar esse processo, e aqui concordamos. Não propomos aguardar as condições ideais que nunca virão, mas construir as condições em que estaremos maiores, bem mais organizados, capilarizados, fortalecidos em todos os aspectos da vida partidária e do trabalho de base. Estas condições podem, e aliás devem, sim, existir. Até mesmo para termos influência na conjuntura e começar a barrar os ataques à nossa classe. Até para dirigir uma frente de partidos é preciso ter inserção e respaldo da classe, não bastam as boas ideias. E estas condições tornarão a tarefa muito menos pesarosa ao conjunto da militância.

Por fim, a leitura da ata se mostrou bastante proveitosa para observarmos um fenômeno curioso: o quanto alguns dirigentes estão absolutamente descolados das bases e dessas várias dificuldades com as quais o conjunto da militância se enfrenta diariamente. Enquanto nos exaurimos para buscar entender e construir cada organismo, cada instância e cada linha das resoluções da melhor maneira, alguns parecem dirigir do partido de costas para ele. O que é ainda pior quando pensamos que foram eleitos para ocupar um espaço tão privilegiado em termos de obter uma visão mais ampla e auxiliar nessas construções, mas não o fazem. 

Sim, a conjuntura nacional é grave. Mas quem quer os fins deve também querer os meios. Se há um desejo assim tão grande de participação nas eleições, uma vontade tão ardente de que a militância dedique toda sua energia na tarefa hercúlea de coletar mais de meio milhão de assinaturas até 2026, então seria de bom tom que quem o deseja passe a dedicar esses esforços na construção do nosso instrumento político — que deve servir para as lutas sociais, mais do que para eleições. Que comece a participar dos debates sobre nossa estrutura e problemas internos, a escrever tribunas, frequentar plenárias, pensar de que mecanismos disporíamos para lidar com uma candidatura e as consequências que ela acarretaria (como o aumento da disparidade de influência interna, por exemplo). Porque as oportunidades eleitorais, ao menos no futuro próximo, vão e vêm. Mas o partido permanecerá, entre elas e para além delas.


Notas

[*] DESCRIÇÃO DA IMAGEM: Dois cartazes vermelhos da organização italiana Frente da Juventude Comunista colados lado-a-lado numa parede amarela. Ao centro, um círculo branco, com uma estrela vermelha. Dentro dela, o símbolo de foice e do martelo branco. Escrito acima e abaixo do círculo, em italiano, lê-se: “Nos dias 14 e 15 de maio, nas eleições universitárias, vote comunista”. Ambos os cartazes estão desbotados e rasgados.

[1] “Que tipo de Partido queremos construir?”, disponível em: https://emdefesadocomunismo.com.br/que-tipo-de-partido-queremos-construir/

[2] Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Fevereiro/voce-sabe-o-que-e-preciso-para-criar-um-partido-politico

[3] “O que é estratégia? O que é tática? O que é o poder popular?”, disponível em: https://emdefesadocomunismo.com.br/o-que-e-estrategia-o-que-e-tatica-o-que-e-o-poder-popular/