'Questão eleitoral: fim e meios, estratégia e táticas' (Leonardo Vinhó)

É preocupante como uma tática com nenhuma centralidade em qualquer dos nossos principais documentos até agora aparece em algumas tribunas como solução para uma infinidade de problemas internos e da conjuntura.

'Questão eleitoral: fim e meios, estratégia e táticas' (Leonardo Vinhó)
Manifestantes no Comício das Reformas de João Goulart, na Praça da República, Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964 | Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã

Por Leonardo Vinhó para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Escrevo com urgência para as tribunas desta vez, buscando contribuir uma última vez antes que o Comitê Nacional Provisório (CNP) decida sobre o tema das eleições. Não se trata de uma intervenção planejada, mas em resposta à tribuna “Questão eleitoral: quais são os fins e quais são os meios?”, de Ju Sieg e Vinícius Okada. Agradeço aos dois camaradas, antes de tudo, pela atenção dispensada à centralidade dos meus argumentos.

A tribuna pontua, com razão, que muitos elementos não estão totalmente esclarecidos ou se encontram ausentes no meu último texto. Apesar disso, a dupla redatora conseguiu captar e traduzir muito bem quase todos os sentidos que ficaram subjacentes. Tomemos então mais algumas linhas para esclarecer e apresentar respostas mais propositivas.

O núcleo do debate, identificado corretamente por Ju e Vinícius, está sintetizado no seguinte trecho:

“Basicamente, o camarada apresenta como argumento contrário à legalização do partido, a nossa insuficiência organizativa, e distancia o debate sobre organização de uma perspectiva política, isto é, não apresenta qual deve ser o método de trabalho correto, não apresenta qual deve ser o caráter do trabalho comum a todos que possibilitará a reconstrução revolucionária, e, sobretudo, não debate quais as táticas adequadas para fazer avançar a estratégia socialista no período em questão.”

Assim, eu estaria transformando “questões táticas em questões de princípios, ao invés de formularem uma tática orientada por princípios firmes.” Entendemos aqui “princípios” como sinônimo de estratégia, que é ao menos um dos sentidos que o texto parece dar à palavra, embora já tenhamos feito a discussão sobre os significados destas categorias em outra oportunidade [1]. É este o sentido e nestes termos que pretendemos seguir o debate.

Tenho discordância de que minhas questões táticas com as eleições neste momento sejam elevadas a nível de estratégia. Antes o contrário, me impressiona o tamanho do espaço e importância que uma tática complementar aquire conforme nos aproximamos do período eleitoral. É preocupante como uma tática com nenhuma centralidade em qualquer dos nossos principais documentos até agora aparece em algumas tribunas como solução para uma infinidade de problemas internos e da conjuntura. 

Voltemos ao núcleo da questão para posteriormente debatermos a tática eleitoral. A tribuna suscita a apontar “qual deve ser o caráter do trabalho comum a todos que possibilitará a reconstrução revolucionária” e “quais as táticas adequadas para fazer avançar a estratégia socialista no período em questão”. Ora, camaradas, a estratégia e as táticas não cabem a mim decidir, cabem ao conjunto do partido em seu período congressual. Se temos dificuldade de responder essa questão a ponto de precisar identifica-la com a participação nas eleições, então os problemas são de outra ordem: nossa estratégia e nossas táticas ainda não estão claras ao conjunto da militância.

Façamos um exercício de imaginação para ilustrar. Suponhamos por um instante que, magicamente, não existem mais eleições no país. Também não nos interessa saber os motivos, nem querer lutar pela sua restauração. Até porque não sabemos que existe, ninguém nunca inventou a democracia burguesa nesse mundo paralelo. É simplesmente uma carta fora do baralho, uma impossibilidade. Que fará o partido nessas situações? Ainda é possível combater as classes dominantes? Ainda é possível ganhar sem alterar profundamente nossas resoluções? 

Evidente que sim. Voltemos às teses, qual o nosso objetivo (objetivo, não estratégia)? A revolução socialista. Qual a nossa estratégia para atingir este objetivo? A construção do poder popular, isto é, um duplo poder assentado em conselhos operários. Qual a nossa tática para atingirmos esta estratégia? Recrutar e organizar setores estratégicos do proletariado para esta luta. Qual a nossa forma de organização interna, em linhas gerais, para corresponder à esta tática? Células por local de trabalho, somadas a um Órgão Central que centralize a nossa comunicação. Eis o “caráter do trabalho comum a todos que possibilitará a reconstrução revolucionária”, bem como a principal tática “para fazer avançar a estratégia socialista”.

Nenhuma resposta mais assertiva do que esta pode ser dada em pleno período congressual, onde o conjunto da militância se coloca a repensar absolutamente todos os aspectos das teses e um texto completamente novo pode emergir da etapa nacional. Surgem questionamentos se esta tática deve mesmo ser a única ou principal, se repetir a estratégia bolchevique é adequada ou se devemos investigar melhor a história e realidade brasileiras para descobrir qual será nossa estratégia. Todos estes debates estão acontecendo, das tribunas ao nível interpessoal, e eu mesmo tenho minhas dúvidas com relação a vários destes pontos. Mas não é possível afirmar que eu ou qualquer outra pessoa não temos um trabalho comum.  

Vimos que nosso objetivo, estratégia e a principal tática são bastante independentes da questão eleitoral, tendo uma razoável chance de sucesso se as eleições desaparecessem. Tendo isto nítido em mente, tragamos de volta a variável eleitoral. Passamos a depender dela enquanto tática para atingir nossa estratégia, exclusiva ou essencialmente? Não. Ela é fundamentalmente contraditória com a nossa estratégia ou nossas outras táticas? Também não, e neste apontamento Ju e Vinícius estão corretos. Afinal, um dos trabalhos do partido leninista fora de um período de insurreição ou ascenso revolucionário é agitar pelo poder popular, disseminar esta ideia entre a classe, e nisto as eleições podem ajudar bastante. 

Contudo, também não é uma tática que conseguimos delimitar tão perfeitamente em consonância com as demais, e com isso há que se ter cautela ao eleva-la a tamanha proeminência. 

As eleições correspondem a um período muito específico, um semestre intercalado por 18 outros meses onde a eleição já não é o principal assunto, em que a população em geral está mais aberta e disposta a discutir política, discutir seus problemas cotidianos. O conceito-chave aqui é “em geral”. É muito mais difícil delimitar quais classes e quais setores de classe vão ser atingidos por nossa agitação eleitoral. Se não nos atentarmos para direcionar a agitação, ou se passarmos a depender excessivamente do alcance indiscriminado da tática eleitoral, podemos acabar trabalhando contra nossa tática principal e fazer uma agitação que apele a setores tão amplos que acabe trazendo para o partido uma leva de recrutamentos de eixos completamente de fora dos nossos setores estratégicos. Neste sentido, voltaríamos a um dos problemas que nos levaram a uma cisão: avançaremos em números mas não em qualidade, não em setores “dinâmicos ou nevrálgicos da economia capitalista, sendo capazes de afetar com suas mobilizações a produção e reprodução capitalista de maneira mais ou menos profunda.” [2]

Por fim, a tribuna aponta para a existência de “uma contradição entre o trabalho de legalização do partido (e talvez o próprio trabalho eleitoral no geral) e o trabalho de construção de um partido revolucionário com plena firmeza ideológica.”

Embora entenda que o aspecto da firmeza ideológica diga mais respeito ao texto de Ivan Pinheiro, discordaria deste apontamento ainda que o conceito fosse substituído por estratégia. Não me oponho às eleições por princípio, apenas não acredito no que parece implícito em quase todas as defesas da participação nas eleições, isto é, que “atuação” seja sinônimo indistinto de agitação eleitoral. Temos uma estratégia, a do poder popular. Temos uma tática principal, de atuar e recrutar junto aos setores estratégicos. A tática eleitoral é complementar a esta elaboração, e o contrassenso reside em fazer dela principal pelos próximos dois anos (falemos sinceramente, alguém acredita em conseguir 592 mil assinaturas em seis meses?).

E, ainda assim, se insiste nesta equivalência inexata. Numa tribuna destinada a defender a nossa participação nas eleições, traz-se como argumento todos os problemas de atuação que enfrentamos. A quê isto serve, se não produzir uma correlação direta entre problema e solução? Se insiste na confusão de falar da posição dos partidos quando se quer falar da consciência da classe, como se todo mundo no país tivesse um partido como tem um time de futebol. Isto também é sinal do nosso distanciamento, conforme apontei em outra tribuna. Mas distanciamento da classe, que uma aproximação com partidos pode remediar apenas muito parcialmente e nunca com a mesma qualidade de um partido leninista de vanguarda, inserido nas lutas cotidianas nos 18 meses de intervalo entre períodos eleitorais, ele mesmo um termômetro próprio desses avanços. 

Tratando das proposições que foram solicitadas, e tirando da frente as dúvidas pessoais, “o caráter do trabalho comum a todos que possibilitará a reconstrução revolucionária” que proponho é a estratégia do poder popular. A “tática adequada para fazer avançar a estratégia socialista” é recrutar entre os setores estratégicos do proletariado. O “método de trabalho correto” é a organização do partido em células por local de trabalho. Estes, junto com o programa do partido, são os nossos princípios, que podemos debater em congresso e alterar, mas sem nunca perder de vista de que trata-se do principal. Pode parecer óbvio, mas frente a argumentações que parecem borrar essas distinções, reafirmar o óbvio ainda é importante.

A partir disto, podemos discutir a questão eleitoral como tática complementar à nossa estratégia e nossa tática principal, para um período bastante específico e até bem curto de tempo. Tenho acordo com quase todas as proposições da tribuna, isto é, execução da agitação do nosso programa (que estará finalizado até o início das campanhas) em eventos de pré-campanha e demais atividades, e apoio crítico a candidaturas de determinados partidos onde for possível, já que complementam parcialmente a tática principal, bem como na disseminação do nosso programa.

Me oponho, contudo, ao ponto número 2:

2) O partido deverá tomar como tarefa imediata a nossa legalização, com o objetivo de concluir este processo em tempo hábil para a participação nas eleições de 2026; essa tarefa exigirá um planejamento nacional, precedido de um estudo rigoroso das normas e metas a serem atingidas para o cumprimento legal do processo.”

Defendo que o CNP execute este estudo, bem como elabore um planejamento a partir dele, e os apresente para apreciação e discussão da militância antes que se tome qualquer decisão. Primeiro porque trata-se de decisão relativamente distinta da participação nas eleições que se avizinham. Segundo que fazer o contrário disto seria decidir pela execução de uma tarefa sem a real dimensão do tamanho do esforço e de qual plano será executado, o que seria não só pouco científico como não permitiria mais discussões nem alterações propositivas por parte do conjunto da militância, em especial de estados em que nossos números são muito menores e as dificuldades muito maiores. Frente a todas as debilidades elencadas conjuntamente nas duas tribunas, seria importante estimular mais contribuições destas regiões, que valeriam muito mais do que o preço pago por elas em tempo antes de iniciar a campanha.


Notas

[1] “O que é estratégia? O que é tática? O que é o poder popular?”, disponível em: https://emdefesadocomunismo.com.br/o-que-e-estrategia-o-que-e-tatica-o-que-e-o-poder-popular/

[2] Caderno de Teses ao XVII Congresso, parágrafo 59 da seção de Estratégia e táticas. Disponível em: https://emdefesadocomunismo.com.br/caderno-de-teses-xvii-congresso-extraordinario/