'Pela profissionalização da luta interna contra as opressões! Proposta de estatuto especial para o combate interno às opressões' (Gustavo Guimarães)
O oportunismo e a política pequeno-burguesa, direitista que tomou conta da direção do PCB não oferecem caminho algum para o avanço dos setores oprimidos: somos nós, sempre, os primeiros a serem descartados para apetecer a consciência média, das parcelas vacilantes
Por Gustavo Guimarães para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Introdução
Camaradas,
Conforme explodiu a crise do complexo partidário, logo multiplicaram-se as cartas de expulsão e desligamento, bem como textos, manifestos e desabafos públicos de militantes do Brasil todo no Medium, Twitter e outros sites e redes sociais. Um traço comum e claramente marcante desses relatos era o intenso sofrimento imposto aos diversos camaradas por uma política sistemática de ocultamento, secundarização e mal direcionamento de casos de opressões em nossas fileiras – especialmente quando envolviam quadros de direção ou protegidos do Comitê Central. Da mesma maneira, ficou mais aparente do que nunca o grau de normalização que havia adquirido posturas misóginas, racistas, elitistas, transfóbicas etc. no tratamento de militantes da base ou discordantes da linha política então predominante.
Hoje é fato conhecido o que sabíamos há muito tempo – que a direção atual do PCB não possui nem nunca possuiu qualquer preocupação em formular e colocar em prática uma política séria e coesa de tratamento interno de opressões; e muito menos com construir um pólo proletário no interior dos movimentos anti-opressão.
No entanto, nada garante – a princípio – que os comunistas que lutam pela Reconstrução Revolucionária tomarão uma postura radicalmente diferente. Muitos camaradas, exauridos pelo intenso desgaste psicológico e emocional que experimentaram com a reprodução de práticas discriminatórias e opressivas dentro do PCB, levantam – com certa razão – esse questionamento para o PCB-RR.
Eles certamente sabem que o oportunismo e a política pequeno-burguesa, direitista que tomou conta da direção do PCB não oferecem caminho algum para o avanço dos setores oprimidos: somos nós, sempre, os primeiros a serem descartados para apetecer a consciência média, das parcelas vacilantes; os primeiros a terem suas pautas e reivindicações apagadas em nome da frente comum, da respeitabilidade, dos acenos aos nossos inimigos… Sabem, enfim, que não há futuro para nós em nenhuma organização que se contente em ser apêndice do social-liberalismo petista que empobrece mulheres proletárias e opera o extermínio da juventude negra. Ou, ainda, numa organização que lute debaixo das bandeiras da Rússia putinista e da China do PCCh, cujo projeto de expansionismo imperialista – como todo projeto imperialista – é tão racista, misógino e LGBTfóbico quanto o da OTAN.
Ainda assim, uma postura mais revolucionária não é garantia de melhor tratamento interno das opressões ou da construção de um espaço mais apropriado para o avanço da teoria e prática revolucionária contra o racismo, LGBTfobia e machismo. Recentemente, outros camaradas criticaram partidos do “campo revolucionário” (sic) do Movimento Comunista Internacional – como PCTE e KKE – por suas posturas abertamente misóginas, transfóbicas e homofóbicas [1]. Acreditamos que tais desvios derivam em última instância de uma crítica incompleta do oportunismo na história do MCI (sobretudo daquele oportunismo ligado à direção de Stálin da URSS, que se expressou ideologicamente em um desenvolvimentismo natalista, machista e pró-família [2]), e, embora não seja o caso de todos os partidos dos quais somos mais próximos politicamente (o TKP é um bom contraste positivo [3]), temos que começar esse processo de Reconstrução com uma confissão extensa e sincera: os marxistas-leninistas brasileiros, até hoje, não ofereceram ao proletariado não-branco, feminino e/ou LGBT qualquer esforço sério e prolongado de solidariedade e trabalho conjunto que justificasse a este último a confiança na direção desses primeiros.
Nossa atuação nesses setores oprimidos necessita passar por uma completa, radical, total reestruturação. E é certamente só quando essa reestruturação estiver realizada que casos de opressão internos poderão ser melhor analisados, tratados e reduzidos. Mas não podemos separar atuação externa e organização interna, como se fossem momentos estanques e cindidos – ambos aprimoram-se e potencializam-se mutuamente. E, nessa tribuna, apresentamos uma proposta de estatuto especial que esperamos que sirva, justamente, para aprimorar e profissionalizar a maneira como lidamos com as expressões das opressões na organização. Como consequência, esperamos que a adoção deste estatuto pelo Partido contribua para o acolhimento e formação de quadros profissionais dos setores oprimidos em nossas fileiras; que ele estimule militantes nas mais diversas áreas de atuação à formulação e operacionalização de trabalhos de solidariedade para com mulheres, pessoas negras, indígenas, asiáticas, LGBTs, com deficiência. Finalmente, esperamos que a efetivação prática deste estatuto funcione como um compromisso – sem exigir contrapartida – do PCB-RR com o enfrentamento interno às opressões e sua erradicação plena e radical; uma demonstração da solidez de nosso empenho em organizar e impulsionar a luta dos setores oprimidos do proletariado e das classes populares brasileiros e latino-americanos.
Conseguimos antecipar algumas reações a essa tribuna. Em primeiro lugar, portanto, ressaltamos que o documento a seguir é um esboço de estatuto – com certeza incompleto, falho e muito diferente de uma versão final, caso vá para frente. Depois: conhecemos Lênin, Bordiga e Pachukanis – realmente, tudo que está ali em baixo são apenas palavras, formas, no máximo compromissos e regulações. Mesmo se aprovado, absolutamente nada garante que seja posto em prática; todo esforço de esmiuçamento, redação precisa, definição de sanções específicas; é tudo realmente inútil se não houver vontade política e uma força correspondente para que palavras virem postura constante e sistemática. Não somos sequer ingênuos, aliás, de acreditar que um estatuto desses não seria violado muitas vezes se aprovado. A aprovação de um documento partidário como esse tem uma função completamente distinta do que teria um código penal burguês ou um conjunto de regras de uma legenda fisiológica. Queremos simplesmente que ele se torne uma arma para camaradas de setores oprimidos em nossas fileiras. Desejamos que, uma vez aprovado, um tal estatuto possa servir como plataforma em torno da qual esses militantes poderão mobilizar as bases, fazer agitação pública e empunhar contra reacionários nas mais diversas disputas políticas que possam surgir no interior do partido reconstruído, garantindo pela pressão que o acordado seja colocado em prática, que as opressões sejam tratadas. É assim – e só assim – que esperamos que esse estatuto possa ser cumprido. Evidente que, nesse sentido, a polêmica pública será sua grande aliada. Mas sua efetivação plena depende, como defendemos anteriormente, de que nossas fileiras estejam cada vez mais cheias de militantes dos setores oprimidos: retornamos para a unidade entre trabalho externo e interno.
De certo, alguns camaradas nos acusarão de sermos punitivistas, de querermos instaurar um Estado policial no Partido e de sermos favoráveis à “cultura do cancelamento”. Vamos dedicar algumas frases para explicitar o conteúdo reacionário dessas críticas. Camaradas: estado de constante vigilância, insegurança, medo e autoquestionamento são sentimentos padrão que qualquer militante mulher, feminizada, não-branca, LGBT, proletarizada experimenta construindo uma organização cuja maioria ainda é predominantemente masculina, branca, cis-heterossexual, das camadas médias e que possui histórico amplo de casos internos de opressões. Nenhum estatuto poderia desfazer o desequilíbrio real, material de posições e capacidade de influência que existe no partido e na própria sociedade; em verdade, isso é parte de uma tentativa leninista de limitar ao máximo o reflexo do poder originado da sociedade burguesa no partido revolucionário, como forma de caminhar rumo à hegemonia proletária em seu interior.
No mais, camaradas, é importante relembrar que a crítica comunista ao punitivismo possui como conteúdo dois fundamentos básicos. Em primeiro lugar, nos opomos aos mais diversos métodos de repressão estatal burguesa porque eles necessariamente incidem desproporcionalmente sobre o proletariado, sobre os trabalhadores em geral, sobre as classes, povos e setores oprimidos. A esse respeito, tomamos o cuidado de inserir no estatuto alguns dispositivos que consideramos úteis para impedir a instrumentalização de uma opressão para reafirmar outra – mas novamente, apenas a luta interna prática pode impedi-lo. De qualquer forma, trata-se de uma preocupação bastante legítima. Em segundo lugar, os comunistas desprezam a punição capitalista porque ela só corresponde aos interesses do modo de produção capitalista e do Estado burguês; isto é, é completamente ineficiente do ponto de vista de gestar uma sociedade mais saudável, segura ou de fato permitir a transformação da pessoa particular a partir da interação com o coletivo. Em relação a isso, também cremos que demos bons encaminhamentos: nossa proposta principal – de tomar como sanção-padrão para casos mais leves o redirecionamento de militantes para trabalhos políticos que envolvam direta ou indiretamente a solidariedade com grupos oprimidos afetados pelo comportamento – é um bom exemplo de uma forma mais eficaz de construir nos camaradas um comprometimento verdadeiro com a luta anti-opressões.
Por outro lado, defendemos explícita e abertamente expulsões e outras medidas disciplinares incisivas para quaisquer casos graves. Não há lugar em um partido revolucionário para esses militantes: mantê-los é deliberadamente escolher por comprometer a segurança de camaradas de setores oprimidos, a confiança das massas em nossa organização e nossa própria capacidade de intervenção política. Alguns desvios exigiriam um alto dispêndio organizativo – leia-se: tempo, energia, saúde mental, militantes, profissionais, dinheiro – de nosso partido para que fossem tratados de forma a garantir que não viessem a se repetir e proteger a integridade de outros camaradas. É um luxo que não podemos nos dar. Partido comunista só serve para fazer a revolução, e nosso povo precisa dela com a maior urgência. Por fim, aos camaradas que denunciam por princípio certas formas de sanção e coerção, por seu “autoritarismo” etc. etc., recomendamos a procura por uma organização anarquista ou autonomista – mas certifiquem-se de procurar bastante, porque teria que ser uma daquelas bastante estereotipadas.
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ESBOÇO DE ESTATUTO ESPECIAL PARA TRATAMENTO INTERNO DAS OPRESSÕES
Dos Processos de Disciplinamento Anti-Opressões e Da Comissão para o Combate Interno às Opressões:
1) Casos de militantes do Partido (ou eventuais coletivos) que envolveram a prática de opressões — nomeadamente, casos de discriminação por raça, gênero, orientação sexual ou identidade de gênero; assim como assédio, violência de gênero ou sexual, ou de atos que envolverem de qualquer forma de misoginia, racismo, LGBTfobia ou capacitismo não serão tratados via Processos Disciplinares regulares. Ao contrário, serão submetidos necessariamente a um processo especial e específico, que aqui (na falta de um nome) chamaremos de Processo de Disciplinamento Anti-Opressões.
2) Os processos disciplinares desse tipo passarão necessariamente por uma instância distinta e nova, chamada Comissão para o Combate Interno às Opressões (CCIO), de caráter nacional e configurada de forma autônoma das demais instâncias. Todo caso que envolver opressões terá de ser acompanhado por essa Comissão. Portanto, o processo disciplinar passará primeiro – como em um processo disciplinar regular – pela instância em que o militante acusado estiver presente, que analisará o caso e votará pelas medidas devidas, caso se comprove o ocorrido e após a pessoa acusada tiver tido acesso à ampla defesa. O veredito da instância a respeito do caso deverá estar devidamente justificado em relatoria escrita. A relatoria será então analisada pela Comissão para o Combate Interno às Opressões que poderá pedir uma nova avaliação da instância — ou de outras instâncias — caso acredite que o veredito se revelou incorreto. A Comissão terá um boletim especial interno, resguardado à militância, onde as relatorias de todos os processos de disciplinamento anti-opressões no Partido serão divulgadas à toda militância partidária, com todas as informações consideradas sensíveis para os envolvidos (por exemplo, nome e informações pessoais da vítima) ocultadas — mas nunca o nome do acusado, as acusações, o veredito e a justificativa da instância para tal veredito. Tais documentos, a serem comunicados às bases por intermédio deste boletim interno, serão atualizados conforme necessário. A partir da leitura dessas relatorias, todo e qualquer militante partidário possui o direito de pedir que a CCIO re-analise algum caso e emita seu próprio veredito, para além do veredito da instância responsável pelo acusado. Em caso de a instância responsável pelo militante acusado e a CCIO divergirem quanto ao veredito do caso, e a divergência não for resolvida pelo envio da posição e justificativa da CCIO para a referida instância e a conseguinte reabertura do debate; a questão será resolvida pela votação individual dos membros da instância e da CCIO em conjunto (os membros da CCIO serão considerados como militantes da instância com votos de mesmo peso), sendo o veredito aquela posição decidida por maioria simples. O Comitê Central do Partido jamais poderá intervir em Processos de Disciplinamento Anti-Opressões para decidir contra um veredito da instância responsável pelo militante ou da CCIO.
3) A CCIO criará um e-mail ou veículo próprio, não apenas para publicar o boletim com as relatorias dos casos para a militância interna; mas também para receber denúncias de comportamentos discriminatórios ou opressivos de militantes por parte de outros militantes ou de não-militantes. Esse canal de comunicação deverá ter pessoas destacadas da CCIO apenas para seu monitoramento. A CCIO deverá estipular um prazo de resposta máximo, específico e público, às denúncias que vierem a ser eventualmente comunicadas por esse canal. As pessoas responsáveis pelas denúncias – militantes ou não – poderão optar pelo anonimato, ou, especificamente, por não ter seu nome ou qualquer informação pessoal divulgada para fora desse veículo de comunicação da comissão, incluindo instâncias internas do Partido;
4) Na situação de algum militante partidário ter cometido algum ato que algum outro militante considere o caso de um Processo de Disciplinamento Anti-Opressões, mas que a instância específica do virtual acusado não o tenha considerado; o primeiro poderá recorrer à CCIO para que ela julgue se o caso se enquadra ou não em um ato que envolve violência contra grupos oprimidos. No caso de posição afirmativa da CCIO, um Processo de Disciplinamento Anti-Opressões será compulsoriamente aberto, independentemente da posição da instância;
5) A Comissão para o Combate Interno às Opressões será necessariamente eleita a cada Congresso ou Conferência do Partido, nunca por nominata; sempre por eleição direta e secreta, onde todos os militantes delegados do Partido e seus eventuais coletivos terão voto com peso igual e o voto será individual e não revelado aos demais militantes se assim não se desejar. Os candidatos à CCIO deverão comunicar sua candidatura durante o Congresso partidário e serão votados no mesmo período de sua etapa nacional. O CCIO será composto de no mínimo 15 pessoas, e necessariamente deverá possuir ao menos 53% (8) de seus membros sendo mulheres ou pessoas identificadas com a feminilidade; e ao menos 40% de seus membros sendo pessoas não-brancas. Deverá possuir, no mínimo, uma pessoa trans [3]. Tais requisitos serão garantidos por cotas para os resultados da votação.
6) Os eleitos para CCIO deverão se sujeitar, logo após concluído o processo de sua eleição, a uma formação interna que envolva aprendizado sobre o tratamento de casos de violência de gênero, racial, sexual e elitista; treinamento básico em acolhimento, assistência, saúde física e saúde mental; educação sexual e cuidado. No caso de o Partido não possuir tal acúmulo ou pessoas capacitadas para conduzir uma tal formação, uma parte das finanças arrecadas pelas instâncias nacionais para o Congresso deverá ser utilizada para remunerar profissionais para este fim.
7) Membros da CCIO também terão como tarefa se debruçar sobre distintos casos de opressão que possam se manifestar internamente, formular sobre eles, e produzir documentos e textos internos que possam orientar as diversas instâncias sobre como identificar tais casos e tratá-los de maneira adequada.
8) Na condução do processo na instância responsável pelo militante acusado, o encaminhamento do Processo de Disciplinamento Anti-Opressões deverá ser prioridade em relação a todas as demais tarefas; não podendo, em nenhuma situação, ser paralisado indevidamente ou secundarizado. Na eventualidade de a instância responsável não ser capaz, por motivos diversos, de conduzir o referido processo, deverá redigir carta à CCIO explicando minuciosamente as razões para tal. Se a comissão julgar as motivações válidas, ela deverá assumir o Processo de Disciplinamento Anti-Opressões.
9) No caso de um militante partidário estar sendo objeto de um Processo de Disciplinamento Anti-Opressões e se afastar ou se desligar da organização antes deste ser concluído, a CCIO está mesmo assim obrigada a emitir veredito sobre o caso. Na situação de o/a militante demonstrar interesse de retornar às nossas fileiras, tal veredito será considerado; e o retorno só será efetivado com aprovação da CCIO.
10) No caso de recrutamentos ao Partido que envolverem pessoas com histórico de casos relacionados a opressões, o mesmo se aplica; isto é, o recrutamento deverá passar não apenas pela análise da instância responsável por ele, mas também pela da CCIO, antes de ser concluído.
11) No caso de a possível vítima ser militante partidária ou de seus eventuais coletivos, e esta militar no mesmo organismo que o acusado; ela poderá solicitar o afastamento compulsório do acusado do organismo em questão pelo período de duração do Processo de Disciplinamento Anti-Opressões; e o organismo será obrigado a fazê-lo.
12) Todo e qualquer caso que envolva acusações de estupro/violência sexual deverá ser objeto de Processo de Disciplinamento Anti-Opressões.
13) Torna-se obrigatório, a qualquer militante, o encaminhamento de qualquer denúncia que este tome ciência, independente do camarada denunciante ser a vítima da violência ou não [5]. Muitas denúncias não são encaminhadas por não haver desejo, possibilidade ou abertura para a vítima fazê-la de forma que se sinta confortável nos espaços internos da militância, mas, eventualmente, essas denúncias são compartilhadas em espaços e relações fraternas entre militantes. As consequências são que: nenhuma responsabilização é aplicada ao agressor, outros camaradas que seguem militando com ele ficam vulneráveis e os ouvintes precisam conviver com a informação da denúncia mesmo sem poder fazer nada a respeito. Assim, devemos retirar a responsabilidade da denúncia da esfera individual e passar a entendê-la como é: uma responsabilidade coletiva com o sucesso da organização, da revolução socialista e com o bem estar de nossos camaradas, concomitante ao zelo e acolhimento com o militante violentado. Em casos de comprovação de omissão de informações, a situação deverá ser avaliada, levando sempre seu contexto em consideração. Caso comprovado um acobertamento e a respectiva intencionalidade, o camarada deverá ser submetido a um processo disciplinar.
Dos Processos de Disciplinamento Anti-Opressões que envolverem a possível vitimização de não-militantes:
1) Não poderão ser concluídos sem que a possível vítima seja ouvida pela instância ou CCIO — ou, no caso de impossibilidade disso ou de desconforto por parte da vítima nesse contato — de alguém que a possível vítima considere um/a legítimo/a representante. No caso de nenhuma pessoa próxima da vítima estar disposta a falar por ela, ainda assim a instância responsável ou a CCIO deverão conduzir a investigação com o máximo de pessoas disponíveis que possuírem algum envolvimento com o caso;
2) A vítima não será obrigada, em nenhuma hipótese (até no caso de ser militante partidária) a ter contato com o acusado; nem colocada em nenhuma situação que possa considerar como de re-vitimização;
3) O Partido está obrigado a prestar acolhimento à vítima – caso possuir camaradas capacitados a fazê-lo de forma qualificada, cuidadosa e apropriada –, ou encaminhá-la a entes ou profissionais qualificados e responsáveis que possam fazê-lo. Eventuais custos serão retirados do caixa do Comitê Central;
3.1. A CCIO deve adquirir acúmulo sobre os órgãos ligados à RAPS (Rede de Atenção Psicossocial). Mesmo entendendo as limitações desses órgãos de saúde, há muito que se aproveitar deles, e portanto, é importante para a comissão compreender como eles funcionam e sugerir a cada instância de base que mapeiem onde estão. CRAS, CREAS e CAPS podem ser alguns dos serviços disponíveis nos municípios, além das Unidades de Saúde. Além disso, o conhecimento sobre tais serviços nos permite tecer críticas mais qualificadas sobre seu funcionamento.
3.2. Se houver resistência ou dificuldade da vítima em procurar esses serviços, a instância ou a CCIO deverão auxiliar nessa procura. É possível que a rede de apoio da vítima esteja enfraquecida, e que, nesse contexto, aceitar ajuda – e mais, esforçar-se em procurá-la – possa ser um desencadeador de sofrimento muito grande a essa vítima, principalmente pensando o quanto essa procura no SUS pode ser exaustiva e grande parte das vezes, ineficaz no que diz respeito a qualidade desses atendimentos, especialmente em casos de violência.
4) O Partido está obrigado, por meio da CCIO, a manter contato frequente com a possível vítima durante o processo e a informá-la de quaisquer desdobramentos deste. Ao final dele, deve ainda comunicá-la sobre o veredito e perguntar sobre seu estado e se deseja mais esclarecimentos, acolhimento ou recorrer da referida decisão. Se nenhum militante partidário houver recorrido da decisão da instância do militante acusado, a CCIO — além de analisar a relatoria do caso e concluir se ele está nos conformes — também é obrigada a julgar o caso novamente, se assim for o desejo da possível vítima.
5) A organização deverá intervir o mínimo possível na decisão da vítima de realizar ou não uma denúncia externa, legal, por meios judiciais. Essa decisão caberá exclusivamente à vítima. O máximo que o Partido poderá fazer será oferecer auxílio profissional legal se possuir militantes capacitados para tal (advogados etc.), especialmente se houver a possibilidade de a vítima e a organização sofrerem processos judiciais por difamação ou similares por realizarem tal denúncia externa.
Do acompanhamento interno de militante vítima de opressão:
1) Todos os pontos supracitados a respeito de vítimas não-militantes também se aplicam a vítimas militantes.
2) Em casos de afastamento de militante por caso de violência, o distanciamento da vítima da militância, acompanhado muitas vezes por um isolamento social, deve ser entendido com solidariedade e camaradagem por todo corpo militante.
3) Militantes da instância compartilhada pela vítima ou da CCIO deverão ser destacadas para o acompanhamento constante do afastamento, incluindo contatos frequentes visando consultar o estado de saúde da vítima, de sua rede de apoio, de suas necessidades, o oferecimento de auxílio e ajuda na procura por tratamento profissional. Tais contatos deverão ser relatados e repassados à instância, de forma que a síntese do processo de acompanhamento da vítima também conste na relatoria final do processo de disciplinamento anti-opressões.
4) A instância ou a CCIO poderão organizar tarefas específicas que visem o auxílio de militantes em estado sensível (por exemplo, de arrecadação financeira para camaradas que necessitem de tratamento médico urgente).
5) Mesmo no caso de militantes vítimas de violência que optem por não se afastar temporariamente, poderão solicitar redução ou ajuste de sua carga de tarefas durante o período que considerarem necessário.
6) Militantes destacados para tomar parte no processo de disciplinamento anti-opressões (por exemplo, para conduzir investigação, entrevistas ou acompanhamento de vítima ou militante afastade), caso não forem da CCIO, deverão ter tais tarefas como prioritárias; o que implica que quaisquer outras tarefas que estiverem sob responsabilidade dos mesmos militantes e que possam atrapalhar ou atrasar a condução do processo deverão ser remanejadas para outros militantes, obrigatoriamente.
Das medidas de responsabilização a serem adotadas:
1) Todo e qualquer caso em que a instância e CCIO concluírem ser o militante acusado – independente de posição, tarefa, cargo – culpado de estupro, violêcia sexual grave, violência doméstica ou agressão física de cunho misógino, racista ou LGBTfóbico [4] terá como medida de responsabilização a expulsão imediata, sem exceções. A medida aplicada para cumplicidade em atos violentos do mesmo tipo deverá ser, igualmente, expulsão. A quebra dessa resolução por qualquer instância partidária permite a abertura de Processo Disciplinar contra os militantes responsáveis pela quebra de resoluções, a ser solicitado por qualquer outro militante;
2) Quadros públicos do partido envolvidos em casos comprovados e públicos de atos de opressão deverão obrigatoriamente realizar autocrítica pública pelos meios públicos que disporem;
3) Membros do Comitê Central do Partido envolvidos em casos de opressão estão obrigados a realizar autocrítica a todos os militantes do Partido e seus eventuais coletivos; sem exceção;
4) Na eventualidade de membros da Comissão para o Combate Interno às Opressões forem objeto de Processos de Disciplinamento Anti-Opressões, estes obviamente não terão direito de deliberar de qualquer forma sobre o próprio caso. Caso o processo resulte em um veredito que confirme o ato envolvendo opressões do referido membro, este deverá ser automaticamente e compulsoriamente retirado da CCIO, independentemente do quão “menor” venha a ser considerado o ato praticado. O citado membro afastado deverá ser substituído pelo próximo candidato melhor votado para seu cargo durante a última eleição, nessa situação.
5) Formações sobre discriminação, opressões e luta anti-opressões devem acompanhar qualquer medida aplicada contra casos comprovados de opressões por militantes partidários. Entretanto, é absolutamente indicado que não sejam as únicas medidas aplicadas. É preferível que casos de discriminação ou violência desse tipo que não sejam graves a ponto de expulsão, afastamento compulsório, afastamento de cargos de direção e medidas disciplinares mais severas; sejam tratados com o afastamento des militantes responsáveis de suas áreas de atuação pelo período considerado necessário e sua inserção em trabalhos que envolvam diretamente a solidariedade aos grupos cuja sua ação feriu — nunca como direção, mas como militante de base guiado por outros dirigentes experimentados. Um militante sindical homem que demonstrou comportamentos homofóbicos, por exemplo, poderia ser afastado de suas tarefas de inserção prioritária para auxiliar na construção de inserção em setores do proletariado cuja presença de pessoas LGBTs é expressiva, guiado e dirigido por camaradas LGBTs; ou como auxiliar na execução de trabalhos de solidariedade à população LGBT precarizada. No caso de as instâncias considerarem o militante em questão alguém sensível para se colocar diante desses grupos oprimidos para tocar um trabalho de inserção direta, pode ser o caso de ele ser responsabilizado com tarefas internas (produção de materiais agitativos e propagandísticos, tarefas financeiras e/ou organizativas) mas que ainda contribuam diretamente para o grupo social oprimido afetado por sua ação. O objetivo de tal medida é obrigar tais militantes a perceber na prática a relevância de nossa atuação em tais setores e formular sobre eles, compreender mais de perto seus problemas mais urgentes e lutas; para além de simplesmente seguir sua militância após a leitura de um texto de formação qualquer, sem muito impacto relevante em suas práticas diárias.
6) De qualquer forma, fora casos específicos referidos aqui, é atribuição das instâncias responsáveis e da CCIO a definição das medidas disciplinares a serem aplicadas; observando que é sempre recomendada a expulsão na ocorrência de quaisquer casos graves;
7) Na eventualidade de o partido e seus eventuais coletivos — seja nacional ou localmente — adotarem uma linha de ação específica que seja equivocada do ponto de vista da luta anti-opressões e que venha a contribuir para a intensificação do sofrimento e discriminação impostos a esses grupos, o Partido está obrigado a realizar, na figura da instância responsável por tal linha de ação, autocrítica pública por seus meios oficiais. No caso de um erro grave (por exemplo, a defesa de uma política de segurança pública racista), cabe Processo de Disciplinamento Anti-Opressões para os dirigentes responsáveis pela operacionalização e formulação da política; bem como o próprio Comitê Central do Partido deverá realizar autocrítica pública reconhecendo o erro, os motivos que o tornaram possível e caminhos para não repetí-lo.
Da Formação Interna Sobre Opressões:
1) Os programas de formação de toda e qualquer instância partidária e eventuais coletivos ligados ao Partido devem necessariamente incluir seções obrigatórias sobre teoria marxista do racismo, da opressão de gênero e da LGBTfobia. Todo o militante fica obrigado a se apropriar e formular teoria e política a respeito da luta contra as opressões, independente da posição que se encontra ou de sua área de atuação.
2) O Comitê Central fica obrigado a apresentar, com o prazo de 3 meses após sua eleição no Congresso, uma proposta de inserção prioritária específica para mulheres, LGBTs e negritude proletárias, bem como uma reformulação de sua política indígena. Na mesma ocasião, deverá apresentar um novo planejamento de formação de quadros que contemple a profissionalização de quadros de setores oprimidos e da formulação nacional des militantes partidários sobre a luta contra as opressões. Por fim, deverá propor um calendário anual de eventos nacionais de propaganda e formação abarcando cada um desses setores.
NOTAS:
[2] Esse ponto fica para ser desenvolvido em algum texto futuro.
[3] https://www.facebook.com/komunistlgbt/
[4] Escolhemos 40% de militantes não-brancos por ser uma proporção que acreditamos que é razoavelmente maior que a proporção real desses militantes no complexo partidário; enquanto que 53% de militantes mulheres reflete aproximadamente a distribuição da população brasileira. Uma pessoa trans de 15 é uma proporção de aproximadamente 7% – o que provavelmente, à primeira vista, também deve ser superior à proporção real na totalidade de nossos militantes. Por fim, não colocamos uma proporção de pessoas LGB como pré-requisito porque é fato conhecido que essa parcela populacional está bem representada em nossa militância, comparada à população como um todo. Talvez fosse adequado adicionar uma cota, também de 1/15 (aproximadamente 7%) para pessoas não-brancas indígenas.
[5] É assim na rede pública de saúde – portanto, plenamente aplicável ao Partido.
[6] Evitamos usar definições no estatuto, propositalmente, para evitar criar aberturas para a desresponsabilização de agressores. Alternativamente, são alguns exemplos (entre muitos possíveis) de casos que deveriam necessariamente e sem nenhuma exceção resultar em expulsão do Partido: 1) militante que praticou ato sexual não consentido contra outra pessoa, envolvendo esse ato penetração, órgãos genitais ou não; 2) militante que praticou ato sexual com outra pessoa onde, estando este primeiro em melhores condições, a vítima não tinha capacidade de oferecer consentimento – ou onde esse consentimento, onde fora inicialmente dado, foi revogado; 3) situações sexuais onde o militante possuía poder sobre o consentimento da vítima, colocando-a em uma situação onde, embora ela tenha dado o consentimento, fora por obrigação ou compulsão extrema, manifestando desconforto durante o ato; 4) militante que praticou violência física de caráter misógino contra mulheres e/ou pessoas transfemininas, em qualquer espaço; 5) militante que praticou violência física ou humilhação verbal prolongada de teor racista contra pessoas não-brancas, em qualquer espaço; 6) militante que praticou violência física de teor LGBTfóbico contra pessoas LGBTs ou identificadas como tal em qualquer espaço – especialmente se crianças em sua dependência econômica e afetiva. Enfim, camaradas, seria impossível e não-prático enumerar todas as possíveis situações; mas acreditamos firmemente que é prudente evitar definições no estatuto.