'Depois da tempestade, haverá um arco-íris?: para uma crítica da LGBTfobia no Movimento Comunista Internacional' (Mendes e Sagaranam)

Se Lenin dizia "raspa um comunista e encontrarás um filisteu!" no que dizia respeito às posições destes sobre as mulheres, devemos atualizar a frase e acrescentar também as concepções sobre gênero e sexualidade para identificarmos o oportunismo e vacilação.

'Depois da tempestade, haverá um arco-íris?: para uma crítica da LGBTfobia no Movimento Comunista Internacional' (Mendes e Sagaranam)
"Precisamos reavaliar a inexistência de críticas (tanto públicas quanto internas) aos posicionamentos conservadores e, principalmente, LGBTfóbicos existentes no Movimento Comunista Internacional (MCI)"

Por Pedro Mendes e Carlos Sagaranam para Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

A publicização da participação de membros do CC na PMAI, à revelia de nosso programa e do conhecimento da militância, é um dos fatores que deflagra a crise no PCB e, mais do que nunca, coloca o debate sobre internacionalismo na ordem do dia. Esse debate, tão caro a um Partido Comunista, era, infelizmente, um dos mais negligenciados e com menos participação da base em nossa organização. Um erro grave ao considerar que, por princípio, todo PC visa se internacionalizar. Como muito bem colocou o camarada Ivan Pinheiro: "[a esfera internacional] lamentavelmente é subestimada por grande parte denossa militância por não ter a dimensão de que nosso partido não é apenas nacional, mas sobretudo internacional e internacionalista." (1)

Entre os escombros da crise e o que pretendemos construir a partir disso, aproveitemos o ensejo desse debate para colaborar com a "limpeza do terreno" sobre a esfera internacional e para evitar que quanto mais tudo mude, mais permaneça o mesmo.

Nesse sentido, precisamos reavaliar a inexistência de críticas (tanto públicas quanto internas) aos posicionamentos conservadores e, principalmente, LGBTfóbicos existentes no Movimento Comunista Internacional (MCI). Se Lenin dizia "raspa um comunista e encontrarás um filisteu!" no que dizia respeito às posições desses comunistas sobre as mulheres, hoje devemos atualizar a frase e acrescentar também as concepções sobre gênero e sexualidade de todo militante revolucionário para identificarmos o seu oportunismo e vacilação.

O Partido Comunista da Grécia (KKE), chamado pelo mote "partido irmão", há muito tempo possui posicionamentos conservadores e LGBTfóbicos. Em 2016, em defesa da família, declararam:

"A origem biológica da humanidade é o resultado de uma relação sexual homem-mulher, que, como tal, interessa e é regulada pela sociedade. Objetivamente, uma criança que é criada por um casal homoafetivo, desdeos primeiros anos determinantes de sua vida, adquire uma percepção distorcida da relação biológica entre os sexos. A correta percepção dessa relação é um ingrediente essencial para o seu bom desenvolvimento psicossomático e social.” (2)

Já em 2017, votaram junto à extrema direita contra a lei que concedia à população trans a retificação da identidade degênero em seus documentos a partir dos 15 anos(3). Estes posicionamentos conservadores e LGBTfóbicos não pararam por aí, estando inclusive respaldados por suas resoluções. Em seu XXI Congresso, realizado em 2021 (!), declaram:

“Temos de enfrentar as teorias reacionárias do pós-modernismo e as visões irracionais e idealistas sobre o "gênero social", a "fluidez do gênero", [grifonosso] a construção ideológica do "direitos humanos" que delas decorrem e que influenciam as pessoas menos informadas sobre a abordagem científica desta questão. Estes pontos de vista nada têm a ver com a defesa coletiva militante de todos os direitos e liberdades individuais e sociais da classe trabalhadora, do povo, da juventude e das mulheres de origem e posição operária ou popular. A valorização da dimensão social das questões acima referidas exige um estudo dos seus antecedentes filosóficos, da sua reflexão sobre a superestrutura e da sua análise à luz da relação entre economia e política.” (4)

O conservadorismo não para na KKE e estende-se também a sua juventude (KNE). Em seu penúltimo Congresso, realizado em 2019, a KNE, de forma muito semelhante aos reacionários do Brasil, de esquerda e de direita, que tanto criticamos, colocou em suas teses sua posição conservadora em relação a legalização e ao uso de drogas e à questão de genero (5):

“KNE has a stable position and action against all drugs because they effect and alter the consciousness, they alienate the human being from the society, apart from the catastrophic consequences in basic functions of the brain, the formation of terms of addiction. We also oppose them of course because we strongly believe in the strength that every young man and woman has to fight in an organized way for their life and dreams. And this struggle requires collective struggle, knowledge, to have a clear thought and the head held high.”

A grid of beliefs is promoted, which are distorted, reactionary and very useful for the system: the glorification of subjectivism, projecting the individual experience as a way of defining reality, the appeals of the bourgeois staff to “respect diversity and self-definition”, which reaches the point of projecting drug addiction as a product of free choice, any kind of fake discriminations and unscientific theories, such as the ones about the “social gender”, which of course have nothing to do with the consistent struggle against phenomena of racism, bullying and marginalization of people that have made different choices. All the above aim at disorientating from the main fact, that the majority of the youth constitutes the new shift of the working class, that it can demand its future, its social and individual rights, only if it understands who and why are taking them away, how and with whom it can conquer them, i.e. in social terms and not simply as a sum of individual efforts.

Não conseguimos acesso às resoluções do último Congresso da KNE, realizado em fevereiro deste ano, para conferir se essa posição reacionária foi superada ou enfraquecida. Entretanto, o que fica evidente é que esses desvios no MCI existiram e ainda existem nos partidos que chamamos de “irmãos” e usamos de referência, às vezes de forma emocionada, para construção de nossa organização e a reconstrução do MCI. Tais posições não são exclusivas do KKE, sendo identificadas também em novas referências, como o Partido Comunista dos Trabalhadores da Espanha (PCTE) que em dezembro de 2022 se opôs ao Projeto de Lei pela igualdade real e efetiva das pessoas trans e pela garantia dos direitos das pessoas LGBT, conhecido como “Lei Trans”(6). É inadmissível que essas posições se mantenham e esses partidos sejam apresentados para nossa militância como o que há demais avançado no MCI, não havendo balanço crítico dessa relação nem mesmo por circular interna. Para exemplificar, quando um dos autores questionou o assistente da célula e membro do Comitê Central (CC) se haveria crítica à recente posição transfóbica do Partido Comunista da Bretanha (CPB)(7), ele respondeu que ela havia sido feita em uma bilateral. Ainda afirmou que não poderíamos criticar publicamente nas redes sociais (meses antes da crise!) pois isto poderia complicar nossa relação com esses partidos.

Ou seja, deveríamos calar não apenas nossas denúncias perante o conservadorismo e a LGBTfobia, quanto a nossa solidariedade com as pessoas trans do Reino Unido e esperar o CC ou a Comissão Política Nacional (CPN) deliberar um posicionamento público (que nunca aconteceu!) - para aí sim podermos tomar uma posição. Tudo isso para não melindrar os partidos que compõem esse MCI que está sendo gestado.

O camarada Ivan Pinheiro em seu texto “Antes que seja tarde!” corretamente pontuou que “na história do MCI, muitas vezes as mudanças de rumo na linha política, sejam à esquerda ou à direita, começam por questões e relações internacionais e desembocam nas questões nacionais”. Assim, a participação na PMAI não era um desvio à direita pontual, um caso isolado, e sim mais um dos sintomas da guinada à direita que já estava sendo operada há muito tempo, com o frentismo, o reboquismo com o PSOL, a vacilação em relação ao governo Lula, e rumava a se aprofundar na Conferência marcada para este ano.

Portanto, camaradas, questionamos: o silêncio em relação ao conservadorismo e à LGBTfobia desses “partidos irmãos” no MCI (alguns referência tanto para PCB-CC quanto para o PCB-RR), para além de expressões do relapso das nossas direções, já não apontava nossa guinada à direita?

Se nacionalmente repudiamos esses posicionamentos, porque negamos nosso papel de vanguarda internacionalista e não criticamos eles no MCI? Se nosso compromisso primeiro é com aclasse trabalhadora de todo o mundo, porque colocamos a relação com esses partidos em detrimento desse princípio fundamental de todo PC? Pode mesmo representar o avanço do programa comunista uma vitória eleitoral do KKE ou o crescimento do PCTE quando isolam e perseguem a população LGBT de seus países?

O que o silêncio a respeito do conservadorismo e da LGBTfobia no MCI grita sobre (e para) nós?

Hoje, com as paredes de vidro estilhaçadas, podemos criticar abertamente a separação entre trabalho intelectual e manual no partido e qualificar esse tratamento como expressão da divisão racial e sexual do trabalho militante. Essa divisão, assume uma relação hierárquica entre o PCB e seus coletivos, em que o PCB pensa e qualifica a política na sua expressão principal: o “Trabalhador”, com “t” maiúsculo; enquanto os coletivos apareceriam apenas como realizadores desta expressão em seus respectivos setores identitários.

Este “Trabalhador” não passa de uma figura abstrata! Uma tentativa de fazer o particular e historicamente marcado passar por universal. Não é concidencia que as formulaçõe feitas em nome deste “Trabalhador” o marquem como uma figura que é branca, masculinista, héterossexista e cis. Enquanto isso, os coletivos, condenados como “identitários” e reduzidos a seus marcadores de raça, gênero e sexualidade, devem se manter nas antípodas não só do PCB (lembremos: quem está nos coletivos é só um simpatizante!) sendo controlados por ele, quanto do “verdadeiro” programado “Trabalhador” abstrato. Suas reivindicações particulares seriam menores e devem ser submetidas hierarquicamente dentro e fora do partido ao mais importante.

Dentro dessa logica, entendemos que a composição majoritaria dos cargos de direção do PCB por homens cis, brancos, héteros de classe média alta como o cérebro da luta e o perfil marcadamente marginalizado e oprimido das bases é um reflexo dessa relação.

Assim, o problema da divisão do trabalho militante entre PCB e coletivos, direção e base, estaria submetido a interpretação equivocada que a direção do PCB tem sobre a reprodução da forma-valor. A luta da direção do PCB, aquela do “Trabalhador”, representa o estrutural no capitalismo, o principal; e a dos coletivos, a superestrutura; assim, sendo de “importância secundária” à (e derivada) da luta do“Trabalhador”, respondendo apenas a um grupo particular e efêmero. O erro está em compreender que as “identidades” (sistema de gênero, sexo, raça) são mero apêndice do modo de produção capitalista, e não entendê-las como sua particula fundante.

Portanto, dessa visão equivocada incorremos não só na divisão do trabalho entre PCB e coletivos, responsável por um dissenso na nossa estratégia política, como também em acharmos, talvez por euforia, que o programa revolucionário poderia ter avançado com o crescimento político e eleitoral do “maior Partido Comunista da Europa Ocidental”, nossos “irmãos” do KKE, que até o presente momento ainda persegue e isola a população LGBT. O KKE e qualquer partido que coaduna com tais posicionamentos deletérios, independente de qualquer “avanço”, não pode nunca ser exemplo para nós, pelo contrário, nós devemos ser exemplos para eles.

No entanto, com a forma que atualmente nos organizamos, nós não podemos ser exemplo de nada. É daí que vem o silêncio e a falta de críticas. Fazemos aqui a lembrança que os acúmulos dos coletivos não são absorvidos pelo Partido, assim como os coletivos e seus militantes devem responder ao centralismo democratico mesmo que não participem dessa democracia. Apenas uma revisão completa da relação que o Partido tem com os coletivos, que dissolva a relação hierárquica e os incorpore não como “mão de obra” de um projeto político já decidido, mas como agentes transformadores desse mesmo projeto, permitirá que nós respondamos de maneira efetiva a classe trabalhadora e oprimida não só do nosso país como do mundo.

A crise deflagrada a partir da publicização da participação de membros do CC na PMAI coloca na ordem do dia de nossas fileiras o debate sobre internacionalismo e o dever de passar a limpo todo desvio e posicionamento vacilante que nos trouxe à atual situação. Levemos à crítica e a auto-crítica às últimas consequências para uma reconstrução revolucionária e LGBT de todo o movimento comunista.


Antes que seja tarde! (Carta de Ivan Pinheiro ao Comitê Central do PCB)(emdefesadocomunismo.com.br)

Partido Comunista da Grécia - Sobre o Acordo de Coabitação (kke.gr)

Parlamento grego aprova legislação para reconhecimento legal da identidade de género -Neos Kosmos

Communist Party of Greece - POLITICAL RESOLUTION OF THE 21ST CONGRESSOF THE KKE

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Contra el retroceso en derechos que supone la Ley Trans - PCTE

The Gender Recognition Bill and Equality Law – Communist Party of Britain